MESA REDONDA 04 – PARTE II: A ÉTICA COMO SUPORTE: SOLUÇÃO OU UTOPIA PARA UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO?


Autores: Claudia Baptista Távora, Laura Cristina de Toledo Quadros e

Luciana Loyola Madeira Soares

 

RESUMO

Esta mesa é fruto de uma bem sucedida experiência no II Congresso Estadual de Gestalt no Rio de Janeiro realizado em outubro de 2008, cujo tema foi ‘A Gestalt em ação num mundo em transformação’. A comissão organizadora do referido congresso convidou as autoras para que falassem sobre o tema da ética em Gestalt-terapia a partir do título que ora reeditamos.

 

INTRODUÇÃO


Desta vez pretendemos junto à comunidade gestáltica do Brasil ampliar a discussão em torno de um tema que se faz imprescindível à prática psicoterápica em nossa abordagem. Para chegar a compreender algo entendemos que é preciso fazer várias aproximações para o mais amplo exame do tema em foco, contrastando a diversidade dos olhares e enseja o exercício do diálogo ao trazer diferentes vozes, escutas, ecos e impactos.

A coexistência entre o bem e o mal no mundo natural e no mundo das construções humanas se torna uma questão importante na contemporaneidade, intensificando a complexidade da vida e dos modos de pensamento e intervenção sobre a mesma. Em meio à desconstrução de valores universais e do fim dos grandes esquemas ou ideais metafísicos, questões como as do bem, da justiça e da verdade são de delicada abordagem no domínio dos mal-estares vividos e/ou temidos. Considerando que ética não é moralismo, questionamos a possibilidade de utilizá-la como suporte para esse mundo complexo. Perguntamos sobre qual seria o limite entre o humano e o desumano e sobre o que poderia fazer uma real diferença em termos de atuação e intervenção psicoterapêutica.

Dentro do tema do ‘limite’, traremos também à discussão a condição do homem contemporâneo diante da perspectiva da finitude e da temporalidade.

Na discussão proposta pelos integrantes da mesa, alguns temas da abordagem gestáltica serão confrontados com essas questões, destacando a face do outro como fonte primeira de conflito e de responsabilidade em nossa prática – e enfatizando o presente como o tempo e o lugar de exercício das tentativas legítimas de potencialização e desenvolvimento da vida e do humano.

Apresentamos ética como busca permanente do sentido para a vida a partir das relações, portanto, numa noção essencialmente dotada de cunho intersubjetivo. Entendemos ética como intrinsecamente relacional, como reciprocidade interpessoal, abarcando amplas possibilidades humanas. Indicaremos que ser ético é sempre em relação a alguém, não sendo necessário seguir regras para isso, porém buscando o que há em comum em termos de perspectivas, sonhos, realizações e sofrimentos do sujeito contemporâneo.

A Gestalt-terapia apoiada na noção e na experiência de mutualidade, valoriza a dimensão dialógica da produção de subjetividade. Destacaremos então a dimensão social de nossa abordagem terapêutica na gênese da ética do sujeito em seu contexto relacional. A discussão será ampliada para a própria atitude ética do gestalt-terapeuta em meio às relações no mundo contemporâneo. Explicitaremos ainda que normas regulam o exercício das liberdades, mas não consistem no nascedouro da ética e que, portanto, o próprio código disciplinar das profissões, chamado de ‘Código de Ética Profissional’, mesmo sendo indispensável, não pode (nem pretende) esgotar o horizonte da ética.

Para fundamentar nossa reflexão recorreremos a autores como Martin Buber, Emmanuel Lévinas, Walter Benjamin, Zygmunt Bauman, Paulo Freire, Walter F. Ribeiro, Afonso H. Fonseca, Olinto Pegoraro, dentre outros.

I -A ÉTICA UTÓPICA DA AMOROSIDADE DO SER FINITO


“É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...” (Renato Russo)

Se considerarmos Ética, amorosidade e finitude, vislumbramos a possibilidade de desdobrar afetos em plena incerteza do amanhã. No contexto contemporâneo, como podemos integrar o sentido e o impacto dos acontecimentos que, por vezes nos chocam, por vezes já estão “assimilados”no cotidiano sem julgamentos e sem “abandonar” a dimensão humana ?

Recorremos a Buber, que desenhou a ética da amorosidade enquanto Encontro nas diferenças. Éticas das diferenças, do amor ao diferente, de ser amado na diferença. Do respeito à singularidade do sujeito que ama buscando o mínimo em comum com o outro humano, com os humanos. Para ele, a ação amorosa é a dialogicidade.

O pensamento de Buber nos ajuda a pensar a ética da Gestalt-terapia: ética da diversidade, da inclusão, da ação transformadora. É a possibilidade de estar com o outro no exercício da dialogicidade, numa relação entre diferentes onde privilegia-se a diferença, sendo assim, a melhor maneira de descobrir-se e de criar-se.

Entendemos que na Gestalt-terapia praticamos uma dialogicidade da esperança, como nos diz Afonso Fonseca. Não da espera passiva, mas da ação, da incompletude, da permanente busca do encontro com o outro, de encontrar-se consigo mesmo na finitude de nossas existências.

Não seria isso o que temos em comum com todos os humanos: a noção da finitude?
Se for assim, o que nos resta esperar? Amar seres que são para a morte?

Se, na tradição do mundo ocidental o nascimento provoca, ou ‘tem que provocar’ alegrias e comemorações, a morte/finitude provoca ou ‘tem que provocar’ horror, pânico, angústia. No entanto, a supervalorização destes marcos joga para segundo plano muitos outros sentidos do nascimento e da morte. Aqui privilegio o mesmo que em meu ofício de terapeuta: o que toca tanto a fé quanto a perda de crença no poder de transformação, a própria perda do sentido da vida.

Observamos que somos instados a desistir de crer na potência criativa do encontro entre humanos. Não há como ficar impassível diante disso. Ex: ‘ninguém mais presta’, ‘não dá para confiar em ninguém’, etc.

Como terapeutas, é plausível apostar no humano desconectado de sua própria condição humana, fragmentado, pretensamente auto-suficiente, consumista, imediatista? É mais fácil deixar-se levar pelos deveriaismos? Funcionar por hábito que por auto-regulação? O que então nos dá suporte ético nesse cenário?

O sentido utópico da ética. Ética e utopia são inseparáveis.
Utopia é lugar nenhum, exceto para quem aposta em criar-se, criando um caminho. É lugar nenhum, mas faz-nos caminhar.
Os utopistas caminham vislumbrando sempre melhores possibilidades.
O pessimismo da razão e o otimismo da vontade fundem-se na formulação da utopia e esta, aponta para a reformulação.
Utopia entendida enquanto renúncia ao fatalismo.

O próprio Afonso Fonseca escreveu que “Fatal mesmo é crer na fatalidade.”
Mesmo a morte/finitude não é de fato o fim de todas as coisas.
Mesmo os que já morreram legaram-nos sua vitalidade. Sua ausência faz surgir novas configurações, novas histórias.

A utopia fala de nós mesmos, de nossos sonhos, medos, desejos, cultura, e, principalmente daquilo que acreditamos que possa acontecer a partir de uma ação conjunta.
Utopia só existe e faz sentido no contexto do coletivo. Ela emerge da dialogicidade. É algo que se tece junto.

Ela não é sonho, pois não é falta de realidade. O sonho não é sujeito à ideologia, enquanto que a utopia vem da tentativa de empurrar o sonho para a realidade, apoiado em convicções ideológicas, filosóficas, teóricas, direcionando-nos para um propósito que se encarna numa ação que se propõe transformadora.

Paulo Freire, que se afirmava utopista, nos ilumina ao crer no diálogo como encontro de homens que se pretendem mais lucidamente humanos. Ele trabalhava pela libertação da palavra autêntica, para que cada um pudesse chegar a dizer, no âmbito do diálogo, sua própria palavra.
Sua aposta na dialogicidade está inteiramente articulada nas formulações de Martin Buber. Este afirmava que palavreado não é sinônimo de diálogo autêntico. Dialogar é falar ao outro, numa perspectiva de mutualidade, e é o que permite possibilidades até então não experimentadas.

Talvez nós, gestalt-terapeutas sejamos utopistas, pois acreditamos que possa haver renovação quando tudo parece perecer.

Como terapeutas sabemos que não podemos tudo, mas sempre acreditamos que podemos fazer algo, como ouvir, respirar, estar com o outro.

Se acreditamos num ser humano ativo, criativo, capaz de dar forma a sua existência a cada momento; se acreditamos na capacidade de formular projetos e de reformulá-los; se acreditamos em promover escolhas cada vez mais responsáveis; se apostamos em sonhar, desejar, criar, transformar; se apostamos em conviver com as diferenças e, a partir delas, crescer...

Se acreditamos que a relação é sempre nova, pois é atualização, mesmo que o vínculo seja antigo...

Então, somos utopistas.
Por outro lado, a utopia é tanto fascinante quanto ambígua. Convém então lembrar de Walter Ribeiro, quando diz dos perigos a que estamos expostos em nossa onipotente profissão se nos acreditarmos os salvadores da humanidade.

Também Jacob L. Moreno, criador do sistema Psicodramático, que muito cedo em sua vida, após uma queda durante uma brincadeira ousada na qual quebrou um braço, descobriu que podemos até brincar de ser Deus, mas que nunca poderemos sê-lo de fato.

Mauro Amatuzzi, baseando-se em Buber, afirma que a relação terapêutica não pode ser traduzida como diálogo pleno, pois há uma diferenciação de papéis que é essencial para a definição do contexto. Portanto, a desigualdade é incompatível com a mutualidade. No entanto, ele insiste que mesmo assim, em plena diferença, a mutualidade, a fecundidade do diálogo é o que deve ser buscado pelo terapeuta.

Um dos maiores riscos a que estamos expostos como terapeutas é defendermo-nos de nossa própria angústia existencial tentando impor ao outro um modo se ser, um projeto de vida. Nada pode ser mais autoritário e menos dialógico que isso. Aí não há nada de ético ou utópico.

Para sermos eticamente utópicos e utopicamente éticos precisamos contar com o suporte de nossos propósitos como terapeutas: a noção de que ali estamos desdobrando-nos em disponibilidade para acompanhar o outro no desvelar recursos para realizar suas melhores possibilidades existenciais. Podemos legitimar o outro sem, contudo concordar com ele. Não podemos oferecer certezas para nenhum de nós, nem prever o que vai acontecer a partir de nosso encontro.

Ali somos seres para o encontro.
Amorosamente éticos e utopistas em nossa finitude e na crença nas ilimitadas possibilidades da existência.Agimos assim não só no âmbito profissional, mas porque nisso acreditamos e desta maneira escolhemos viver, com todos os conflitos que isso comportar.

 

II -A ÉTICA COMO SUPORTE: O QUE FAZ A DIFERENÇA QUANDO TUDO PARECE IGUAL?

Quando vivemos – ou parece que vivemos -sob uma espécie de ditadura da falta de alternativas à grande confusão e desencanto global, os termos ou as palavras podem assumir sentidos diferenciados, muitas vezes bem distanciados de seu sentido original. Afinal, até a ética já tornou-se, recentemente, bandeira oficial, passando a incorporar os discursos dos poderes executivo, legislativo e judiciário! Assim se revelando mais como um ethos punitivo generalizado, uma caça às bruxas

– às vezes às fadas -não chegando porém a nos retirar da condição de impotência pública que tanto nos incomoda.

Vale ressaltar que, assim como alguns acontecimentos recentes, mesmo no âmbito do mundo natural o bem e o mal coexistem. Se é assim no mundo natural, o que esperar então do mundo cultural, do mundo das construções humanas? Não haveria de ser também assim? Bem e mal de nem tão simples distinção? Considerando a possibilidade do suporte na contemporaneidade,nos deparamos com o fim das grandes meta-narrativas ou dos grandes esquemas metafísicos – o Racionalismo, o Iluminismo, a Democracia, a Civilização, a Ciência, os Direitos Humanos, a Política, a Moral, o Proletariado, o Socialismo – as coisas se complexificaram, daí se dizer haver sido criado um deserto de valores e projetos. E nós não só sofremos mas também participamos ativamente de, pelo menos, parte dessa grande desconstrução, por meio da cultura geral e psi de nossa geração, que contestou de forma radical diversas tradições e contribuiu para a aceleração da velocidade das mutações.

O que pode dar suporte a esse mundo tão complexo? O que pode sustentá-lo? Na falta de respostas simples, lembramos uma das versões da criação do mundo, que diz que assim que Deus o criou, olhou para ele e disse: “Oxalá se sustente!”, assim como se diz face a um recém-nascido que não sabemos se vai vingar)

Essa transformação e desconstrução geral realiza algo de positivo? Porque o universal, sejam mesmo os valores universais, dificilmente sustenta esse suporte. Mas algum suporte é, sem dúvida, necessário, face à complexidade da vida humana no mundo contemporâneo. Mundo que é múltiplo em diversos sentidos: por um lado, nos confrontando com a desapropriação de boa parte daquilo que criamos como espécie, por exemplo, a tecnologia; por outro lado, nos confrontando com a alteridade, com a face do outro, próximo ou distante, como fonte primeira de conflito e de responsabilidade; por fim nos assombrando com o repertório muito estreito de alternativas para o tamanho e a profundidade das mazelas e dificuldades do presente.


Então aqui nos perguntamos se a ética pode ser suporte para esse mundo e as transformações pelas quais ele passa. Mas de que ética se fala?

Lembrando as revoluções de pensamento de que participamos, consideremos uma das mais importantes contribuições de Nietzsche à filosofia -a destituição da idéia de busca e chegada à verdade. Então, vamos lembrar que ética não é dogmatismo, não é messianismo, não é moralismo, não é metafísica. É, ao contrário, tema muito delicado, para o qual não vale simplesmente proclamar a si ou a quem quer que seja juiz da humanidade; muito menos achar que a própria preferência é uma ordem, seja ela qual for e sustentada por que teoria for; ou ainda defender a própria posição “óbvia” contra “o mal em si”, em prol do “bem em si”. Pois afinal, o que é isso, o bem?

Há especialista em direito de família que acreditam que as leis e o direito viriam para regular, no campo das relações entre os homens, aquilo que a psicologia, seja a do homem comum ou a dos especialistas, não consegue. Mas até que ponto o direito o conseguiria? É possível e/ou desejável seguir a lei, todas elas? Elas garantiriam o exercício do bem comum e da justiça?

“É preferível cultivar o respeito do bem que o respeito pela lei”, dizia Henry David Thoreau. (Em Civil Disobedience, 1849, pregava que todo homem teria o direito de desobedecer a uma lei, caso ela transgredisse a outra superior, moral, natural e, principalmente, fundamental do homem. Será possível contextualizarmos tal princípio à atualidade?

Acompanhando as discussões mais atuais dos Conselhos de Psicologia sobre Ética, busca-se justamente a ênfase na ruptura com o paradigma que prega uma verdade absoluta. A Ética se contrapõe a esse sentido transcendente e fala de um sentido imanente, pensando o convívio comum com respeito a uma singularidade e não apenas na submissão a códigos e critérios externos, aos quais não se reduz. Assim, passa a envolver o exercício permanente do pensamento avaliando situações e acontecimentos, escolhas e caminhos, em termos de potencialização da vida, ou seja, do aumento das capacidades de existir e de criar do corpo e da mente.

Segundo Foucault, ética seria um tipo de relação que estabelecemos conosco mesmos e com os outros e também , uma prática refletida de liberdade, da margem mínima e relativa de liberdade que possuímos a cada situação, face aos exercícios de poder que permeiam a vida social. Segundo Spinoza, também, a ética, diferentemente da moral como assujeitamento e obediência, seria o espaço da liberdade , escolha e decisão pessoal. Então, nada de senhores da verdade, do bem ou da justiça? Isso parece bom!?! Mas será que sabemos usar essa liberdade?

Imaginemos as vantagens de estarmos todos entregues à nossa própria sorte!?! Sem ter quem nos cerceie e nos limite, mas também quem olhe por nós e nos conduza!?!... Não corremos o risco de acabar como os cegos de Saramago e Meirelles que têm de se arranjar sozinhos em seu cárcere e para fora dele? Ou como os cidadãos da Gotham City de Batman, sombria e devastada pela ambigüidade e pela força destrutiva do Coringa que quer encontrar e acionar o mal presente em cada um de seus cidadãos? Isso não nos levaria justamente ao animalesco e ao desumano, ao absurdo e ao desespero? Não é isso que temos visto acontecer na vizinhança e nos mais longínquos lugares?: É possível ainda mover pensamento e sentimento para descobrir ou inventar novas formas na unidade bruta desse mundo? Novas formas de ser só e com os outros?

Para não permanecer presos a essa “herança sem testamento” que recebemos do mundo moderno (Adauto Novaes, Mutações, p. 9)... talvez seja preciso então andar na contramão da estereotipia. Pois por mais complexo que seja, o homem contemporâneo só pode ser mesmo entendido como esse que não é mais uma idéia determinada, esse que não pode viver sem várias idéias, sem essa multiplicidade contraditória de visões, que não pode ter um ponto de vista apenas, não pode pertencer a uma única nação, uma única língua, uma única confissão, uma única física – sequer a uma única psicologia.Sua ética decorre de seu modo de vida e da relação mútua de diversas soluções com as quais ele segue vivendo. (Adauto Movaes citando Paul Valery, p. 11-12).

 

III -ÉTICA: SOLUÇÃO OU UTOPIA?


“Cada um deve estar plenamente consciente de que sua própria vida é uma aventura, mesmo quando se imagina encerrado em uma segurança burocrática; todo destino humano implica uma incerteza irredutível, até na absoluta certeza, que é a da morte, pois ignoramos a data. Cada um deve estar plenamente consciente de participar da aventura da humanidade que se lançou no desconhecido em velocidade, de agora em diante, acelerada”

Edgar Morin – 2001 Quando Heidegger (1946) refletia sobre o que é ser humano numa perspectiva existencial ontológica e estabelecia a diferença de modo de existência, pela qual o homem tem um mundo e está no mundo e dizia que a linguagem é a casa do ser, ele realizava “uma espécie de descentramento do ser humano, cuja tarefa passa a ser guardar o ser, e cuja essência passa a ser corresponder ao ser; [....] (p. 58) para o que é preciso ouvi-lo, refleti-lo, como a um vizinho. A ética, ao contrário da posição humanista clássica que assume o ser humano como dado essencial, de antemão (para aplicar-lhe métodos de domesticação, treinamento e formação), só pode existir a partir de uma exercício intenso e contínuo de humildade.

Quando Heidegger dizia que “o ser, se é que de fato é algo, é o futuro”, que o ser (mas, se se quiser, Deus ele próprio) é sempre outro, ou o outro, criava um terreno gigantesco onde essa definição do ser iria se dar.

Por isso preferimos pensar “ser humano” como uma expressão composta de um verbo e um adjetivo a pensá-lo como um substantivo. Pensar o processo de procura do encontro do ser com o humano.

Ética, nesse sentido, é o terreno onde se pode trabalhar pelo engrandecimento e capacitação das pessoas comuns, elevação da vida cotidiana dos homens e mulheres comuns a um nível mais alto de intensidade, seja ao menos e simplesmente pela capacidade de sonhar mundos melhores e lutar por eles aqui e agora.

Dessa forma, preferimos compreender a Ética mais como utopia do que como solução visto que tal termo pode nos remeter à idéia de soluções radicais ,autoritárias e ditatoriais, como por exemplo as diversas “soluções de extermínio”.Ética como utopia combina mais, mas requer uma atualização no sentido mais contemporâneo dessa palavra:


Esse sentido vai além das concepções originais, que oscilavam entre utopia como “o bom lugar, lugar ideal” ou “lugar nenhum, inexistente”, daí se desenvolvendo para “plano de governo imaginário ideal” ou “projeto quimérico” (ver Thomas More, 1516).


Torna-se uma “visão de mundo inserida no tempo, na construção, que tematiza o presente de forma dramática e diferente” (Távora), encontrando somente aqui a promessa ou esperança de um futuro, como propus em outras ocasiões.

Utopia não como outro mundo, mas como uma espécie de duplo desse mesmo mundo em que vivemos. Não a negação do real em nome do ideal, mas o reencontro com o real, a reconciliação com o que existe, tanto quanto possível, sem abandono da espera da “inocência do devir” (l’amor fati de Nietzsche). Algo parecido com aquilo que procuramos em nosso trabalho cotidiano, em nossas viagens acompanhando pessoas que se encontram consigo mesmas, se estranham de si mesmas, se projetam e se supõem outras a cada passo do caminho, também a cada encontro e desencontro com outras pessoas.

O Homem, este Ser capaz der tantas nuances, um projeto sempre inacabado, em constante movimento, em busca de uma plenitude por vezes idealizada. O Homem é um ser-no-mundo que realiza sua existência no Encontro. Assim, façamos de contexto, integração, cultura e sociedade. A convivência exige uma aproximação que, além do respeito, pode gerar formas de nortear nossas ações produzindo uma realidade social que representa nosso modo de conduzir as relações.

O que vivemos hoje não deve nos deixar na platéia, mas sim nos incluir como atores sociais de uma realidade que não está distante. Ela está aqui. Nós somos este tempo e somos este mundo também. Esta não deve ser uma realidade naturalizada, porém pode-se constituir num processo reflexivo.

Se ética é o senso de reconhecer e desenvolver ações justas e respeitosas para com os outros e, porque não, para conosco, podemos aprofundar nosso olhar neste cenário tão acelerado de acontecimentos.

A experiência existencial de indignação diante de situações violentas ou injustas nos traz a possibilidade de validação do Humano sem maniqueísmos ou valores corretivos, pois Ética não deve ser reduzida ao campo normativo ou às regras de conduta. Também não pretendemos reverenciar o caos, mas consideramos fundamental a idéia de um mundo onde as diferenças possam coexistir gerando conflitos, confrontos, negociações e aproximações possíveis.
Uma sociedade mais justa e mais livre não é a utopia da igualdade, mas sim a tolerância e a convivência com a diversidade pois
“Se queremos liberdades, é preciso margens de desordem, tolerância a anomias e aceitação da possibilidade do crime. Tudo que se baseia na liberdade e na criatividade está no limite da desordem e do risco de desintegração” (Morin, 2002, p.199).
Estamos diante da complexidade não alcançável pela via da causalidade o que representa, de fato, um desafio para as Ciências Humanas neste momento de transição onde o caos e a desordem se interpõem às certezas e às estruturas constituídas até então. Mas, como ainda nos diz Morin (2002)

“Como a complexidade comporta necessariamente antagonismos e incerteza, a sua fragilidade não nos permite fixar uma excelência durável. A excelência complexa só pode ser incerta, mutante, modificável, sem otimização definitivamente determinável” (p 199).

A Gestalt-Terapia é uma abordagem que trabalha com uma visão de homem contextualizada numa integração corpo, mente e ambiente. É uma abordagem de vanguarda que inclui os aspectos sociais sem uma perspectiva determinista e é essa a principal característica desta proposta. Segundo Perls:

“O homem que pode viver um contato intimo com sua sociedade, sem ser tragado por ela nem dela completamente afastado, é um homem bem integrado...O objetivo da psicoterapia é justamente criar tal homem” (1981, p-40).

Dessa forma, a Ética se constitui na implicação, no engajamento e no envolvimento, pois ela está relacionada à opção de realizar a vida. Ela se propaga na ação quotidiana através da sensibilidade e se estabelece nas relações.

Apesar de podermos transmiti-la a partir da reflexão, ela não é uma disciplina escolar, mas é uma experiência viva que pode reverberar em qualquer contexto ou situação.

Se pensarmos num mundo e na humanidade como um processo, talvez tenhamos que nos desapegar da idéia de solução. Não há solução visto que esta não é uma solução matemática. Participemos da vida deste momento histórico deixando de lado o confortável lugar de expectadores.

O predomínio da lógica econômica pode esmagar a lógica da solidariedade. As versões menos glamurosas da realidade estão gritando à nossa porta. Não podemos mais ignorá-las ou segregá-las.

O geógrafo Nilton Santos debate a globalização distinguindo-a em três aspectos: a globalização como fábula, que representa o mundo como no9s fazem ver; a globalização como perversidade que traduz o mundo como ele é e, o que ele nomeia de “outra globalização”, o mundo como ele pode ser. Para ele, é fundamental pensar um mundo novo a partir de nós próprios.

O lugar ideal é o lugar possível. Se não podemos fazer, podemos sentir. Se o único tempo “real” é o agora, enfrentemos o que emerge neste momento. Enquanto estivermos vivos, podemos acreditar num mundo melhor, entendendo-o não como um mundo asséptico, sem violências, injustiças, tristezas, medos ou agressividade.

Tais sentimentos também necessitam de espaço. Porém podemos acreditar no diálogo, na interação, para que não fiquemos polarizados entre o bem e o mal, certo ou errado. Fluidez e criatividade serão sempre possibilidades infinitas.

 

IV -CONSIDERAÇÕES FINAIS


Sonhadores? Utopistas? Estamos vivos, experimentando cada momento em seus sabores doces ou amargos, mas ainda acreditando. A consciência de que nosso conhecimento e nossos valores são construções sociais não significa que devemos abandoná-los ou pensar que não devem existir valores.

O mundo parece feio e sujo, degenerado e degradado. E de fato deve estar. Mas do mesmo modo como a saúde exige a doença para se conquistar, pode ser que esse mundo que se coloca como tão problemático e merecedor de questionamento seja justamente o que demanda do ser humano a sua superação e exercício maior de dignidade.

Assim, bem mais que solução ou ainda um pouco mais que utopia, preferimos propor que a ética seja uma rima para o mundo contemporâneo, para a vida como ela é, enraizada no humano, no vivido e na experiência.

A maior diferença que podemos fazer está no que escutamos, no que vemos, no que sublinhamos, onde marcamos a importância, por exemplo menos no sintoma e mais na capacidade de invenção, multiplicação, do suporte para autonomia relativa e efetiva, auto-produtora de si e das transformações da experiência real.

Por falar em rima... Essa ética rima com experiência vivida, não descida do céu, mas nascida diretamente na terra, ou no “mundo da vida” como dizia Husserl.

Mas rima também com outras palavras de quem há muito quis rimar com o mundo, mundo... nosso Drummond:

“Não serei o poeta de um mundo caduco/ também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros/ Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.” (Carlos Drummond de Andrade)

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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