MESA REDONDA 04: A CRÍTICA À SOCIEDADE COMO CONFLUÊNCIA
Autor: Raphael Henrique Moreira
RESUMO
O propósito deste trabalho é investigar o ato de julgar os fenômenos
contemporâneos da sociedade a partir da ótica da confluência,
apresentada pela Gestalt-terapia. Inicialmente busca-se uma fundamentação
da visão de ser humano desta abordagem, através de um desdobramento
sobre a noção de observação, aceitação,
mudança paradoxal, mantendo uma articulação com a sociedade.
Posteriormente faz-se uma observação do campo da Gestalt-Terapia
Comunitária com o objetivo de observar outras formas de relacionamento
com a sociedade que possibilitem contato, contrastantes portanto com o julgamento.
Palavras-chave: confluência, crítica, julgamento, sociedade, comunidade.
ABSTRACT
The purpose of this work is to investigate the act of judging the contemporary
phenomenons of society throw the eyes of confluence, presented by Gestalt Therapy.
At first it is searched groundings for the human being’s view of this
approach throw a development of the notion of observation, acception, paradoxal
change, keeping an articulation with society. Later on there is an observation
of the field of Community Gestalt Therapy with the objective of observing others
forms of relationship with society that allows contact, in constrast with judgement.
Keywords: confluence, criticism, judgement, society, community.
INTRODUÇÃO
As reflexões sobre a contemporaneidade são influenciadas pela
importância de um olhar crítico. O objetivo de se manter tal olhar
é o progresso da humanidade. Acredita-se que dessa forma encontra-se
uma verdade, distingue-se o certo do errado. Desse modo parte-se da crença
de que o que seria crescimento pode ser estabelecido a priori da experiência,
da vivência atual, podendo então virar uma meta que guia nossos
atos.
Por crítica à contemporaneidade, entende-se a ótica “não
deveria ser” do fenômeno, que implicitamente ou explicitamente deixa
claro um “deveria ser…”. Restringe-se, portanto, exclusivamente
ao ato judicativo de adjetivar as qualidades da sociedade contemporânea.
A partir da noção de confluência da Gestalt-Terapia, será
abordado esse julgamento da sociedade como uma tentativa de restauração
da igualdade entre os membros, evitação do encontro com a diferença
que contribui para uma estagnação desse coletivo.
O presente trabalho enfoca a contribuição que a visão de
ser humano da Gestalt-Terapia pode ter para a forma como são vistos os
fenômenos da contemporaneidade. Em contraste à posição
crítica será apresentada uma proposta na base da observação
em massa, e a fundamentação teórica de que esse pode ser
um de jeito algo novo e uma possibilidade de uma melhor organização
acontecer.
ACEITAÇÃO E SOCIEDADE
A Gestalt-Terapia, a partir do conceito de ajustamento criativo que embasa a
sua prática, afirma que o organismo se ajusta ao ambiente da melhor forma
possível. Em congruência com essa noção, temos que
esse coletivo chamado sociedade está se ajustando da melhor forma possível,
uns aos outros. Nós somos o nosso melhor no momento. Isso não
significa que está satisfatório, somente quer dizer que não
poderia ser diferente do que é, considerando o presente. Também
não significa que não poderá ser mais satisfatório
futuramente, pois novas experiências podem reorganizar de modo a levar
a um ajustamento mais satisfatório. Mas para que novas experiências
sejam assimiladas por cada organismo que compõe a sociedade, precisamos
partir da massa que somos agora, para que com o foco presente possamos participar
dessa nova experiência com toda a nossa potencialidade:
No diálogo posso mover-me no sentido de aceitar-me como sou e tornar-me disposto a enviar as mensagens de maneira clara. Posso mover-me no sentido de aceitar você como você é, aceitando as suas mensagens sem distorção. Juntos, movemo-nos no sentido da compreensão e aceitação mútuas, à medida que descubro e torno-me nós dois no diálogo. Quando vejo a situação do seu ponto, posso perceber que no momento essa era a única coisa que você podia fazer – e que o meu ressentimento e a sua não expressão, eram a única coisa que eu podia fazer. O tempo passa, e eu não posso voltar para mudar nada. Volte cinco minutos no tempo, na sua imaginação: Há alguma coisa que naquele momento você poderia ter feito diferente? Nesse momento, há alguma coisa que você possa fazer que não está fazendo? Talvez você tenha um sentido de escolha, mas esta escolha também é parte do seu ser neste momento e, surge da sua vida, do seu fundo, dos seus desejos, etc. Aceitação é dizer ‘sim’ àquilo que é, inclusive o ‘ser’ do meu desprazer com algumas das coisas que são. Aceitação entra quando a não-aceitação se rende à natureza das coisas e fatos. Não é algo que eu faço: é algo que permito. (STEVENS, 1977, p. 353).
Da mesma forma a sociedade é agora o que ela pode ser nesse momento,
e também não poderia ser diferente. Assim como a crítica
é a única possibilidade crítico naquela hora. Uma mudança
acontece no momento em que me deparo com a alteridade, e para tal, preciso estar
no presente, com aquilo que é, pois só me deparo no aqui agora.
Se ficarmos enquanto coletivo com um ideal ou com o julgamento do que é
atual, perdemos atenção do que somos agora e não temos
ponto de partida e não temos como sair do lugar.
Tomemos, por exemplo, o consumismo, fenômeno contemporâneo muito
criticado atualmente na sociedade. Ainda que consideremos o consumismo como
um sintoma, comum a vários indivíduos, no trabalho psicoterápico,
o juízo de valor do consumismo de nada contribuiria para uma mudança
desejada por esse cliente. O sintoma está na superficialidade, ele é
o melhor ajustamento possível para dar conta de uma necessidade que não
encontra ou evita encontrar vazão no ambiente de forma satisfatória.
E essa necessidade subjacente só pode emergir, ou seja, se tornar clara,
se o pólo sistema de orientação1
focalizar o que acontece no presente, portanto o que é, e no caso o próprio
consumir. Essa necessidade não tem como surgir na observação
do que esse sintoma “deveria ser”, pois não tem nenhuma relação
com este.
1 O termo “sistema de orientação e manipulação” refere-se à integração entre o sistema sensório e o sistema motor. Esta denominação foi apresentada por Perls no texto “Teoria e técnica da integração da personalidade”.
Ainda assim é necessário levar em consideração que consumir em excesso não é necessariamente um sintoma, que excesso é relativo, e que o único que pode realmente dar-se conta de se aquela forma é satisfatória ou não é o próprio indivíduo em questão.
Na crítica do sintoma focaliza-se o que o ajustamento não deveria
ser, desconfirmando a melhor possibilidade que aquele organismo ou aqueles organismos
têm para sobreviver naquele momento. E poder ficar com o que o fenômeno
é, aceitá-lo, é validar a sua existência: “Aceitação
é uma questão de descobrir os meus laços e então
soltar a minha interferência, o meu evitar, a minha luta, o meu apegar-se,
etc.” (STEVENS, 1977, p. 352).
A aceitação é nesse sentido uma concentração
do sistema de orientação, uma postura ativa, que nada tem a ver
com o embotamento da agressão, que transforma em passividade através
da racionalização, comumente chamado de conformismo. Sobre agressão
e sua relação com ressentimento e culpa temos:
Em relação aos nossos companheiros, quando estamos bem, sentimo-nos
gratos, temos uma sensação de contato harmonioso; quando estamos
mal, atacamos e tentamos modificar o ambiente. Se nós nos impedimos de
agredir, então sentimos ressentimento e culpa. (PERLS, 1977, p. 61).
A sociedade é o que dela fazemos. É uma construção
das diferentes forças no campo de todos os indivíduos que dela
participam. Os valores da contemporaneidade
são criticados como se fossem externos, e como se a construção
desses mesmos não tivesse a participação, de diferentes
formas e intensidades, de cada indivíduo.
A experiência com essa construção coletiva é singular, e a tentativa de expandir essa experiência única para os demais participantes através da crítica ignora exatamente essa alteridade. A vivência é vista como absoluta, única e portanto o direcionamento que dela encontra-se serve para todos. Essa singularidade óbvia da experiência é alienada, e o que fica em seu lugar é a expectativa de ter uma moral absoluta como guia ou poder guiar os outros com ela (culpa ou ressentimento). Aceitar não é deixar de discriminar, e sim ver o que é e não o que deveria ser, para assim poder discriminar. Mas essa discriminação é organísmica, pessoal, não é possível saber o que é bom a priori para o coletivo, isso não é acessível através da experiência com esse coletivo, é uma suposição. A sociedade vai surgir da inter-relação de cada discriminação. Perls discursa sobre uma moral organísmica e sobre a projeção da experiência:
O próximo passo é que em vez de nos apropriarmos de nossas experiências
projetamo-las e jogamos sobre o estímulo a responsabilidade pelas nossas
respostas. (Isto poderia acontecer porque ficamos assutados, com medo de nosso
excitamento e fugimos da responsabilidade, etc., etc.). Nós dizemos que
o aluno, o filho, o boxeador, o amante, o livro, o quadro, ‘é’
bom ou ruim. No momento em que rotulamos o estímulo de bom ou ruim, nós
tiramos o bom e o ruim da nossa própria experiência. Eles tornam-se
abstrações e os estímulos-objeto são então
correspondentemente arquivados. Isto não deixa de ter consequências.
Uma vez que tenhamos isolado o pensamento do sentimento, o julgamento da intuição,
a moralidade da autoconsciência, a deliberação da espontaneidade,
o verbal do não-verbal, perdemos o ‘eu’, a essência
da existência e tornamo-nos robôs humanos, frígidos ou neuróticos
confusos. (PERLS, 1977, p. 52-53).
Considerando a singularidade com que a satisfação ocorre não
é factível considerar “o” certo, somente. Para considerar
qualquer mudança numa sociedade é necessário enxergar que
essa experiência é diferente, e isso é o que é. E
observando o que é abre-se espaço para a possibilidade de ver
necessidades genuinamente em comum.
A TEORIA PARADOXAL DE MUDANÇA
Beisser, a partir da teoria da Gestalt-Terapia cunha o termo ‘Teoria Paradoxal
de Mudança’, para falar da concentração da atenção
no fenômeno como ele é, pois, pois a tentativa de mudança
não gera modificação alguma, somente é possível
mudar se o investimento estiver pleno no que se é naquele momento, aí
faz-se possível paradoxalmente uma mudança (BEISSER, 1980). Da
mesma forma, ele amplia a visão individual para o que chama de ‘Teoria
Paradoxal de Mudança Social’:
Acredito que a mesma teoria de mudança aqui esboçada também
é aplicável aos sistemas sociais, que a mudança ordenada
dentro dos sistemas sociais se realiza na direção da integração
e do holismo; creio ainda que o agente de mudança social tem como sua
função principal trabalhar com (e em) uma organização,
para que esta possa mudar sistematicamente com as variações no
equilíbrio dinâmico, dentro e fora da organização.
Isso requer que o sistema se torne cônscio dos fragmentos alienados internos
e externos, para poder integrá-los nas principais atividades funcionais
por processos semelhantes à identificação no indivíduo.
Primeiro, existe uma conscientização, dentro do sistema, de
que existe um fragmento alienado; em seguida, esse fragmento é aceito
como uma consequência legítima de uma necessidade funcional que
é então explícita e deliberadamente mobilizada e recebe
energia para poder operar como uma força explícita2.
Isso por sua vez, leva à comunicação com outros subsistemas
e facilita um desenvolvimento integrado e harmônico de todo o sistema.
(BEISSER, 1980, p. 114).
2 Grifos meus
O autor demonstra na parte grifada como o método utilizado na Gestalt-Terapia
pode ser utilizado de uma forma social. Primeiramente mencionando o pólo
orientação do sistema orientação/manipulação,
aponta para a necessidade de awareness sensorial. O ‘fragmento alienado’
mencionado é a própria diferença entre os diversos subgrupos
que compõem a sociedade. Somente percebendo que essa diferença
existe e ficando com isso, com a sua existência, ou seja mantendo seu
foco, abre-se então
a possibilidade para emergir a necessidade dos diferentes indivíduos
participantes, o excitamento. Considerando o pólo manipulação,
Beisser fala em mobilização e operação de energia,
o excitamento tem então possibilidade de surgir para construir uma nova
forma mais satisfatória de regulação deste coletivo, uma
forma que só se torna possível frente a este excitamento, é
concebida agora.
Considerando um ideal perdemos a oportunidade de descobrir algo novo, realmente
novo que poderia surgir desse encontro, e tomamos o caminho a ser traçado
como algo velho e já conhecido, e seguimos em busca de um ideal futuro:
When people resign themselves, out of fear and loss of faith in either themselves
or their environment, to living amid what they already know too well, the outcome
is stagnation, boredom, and deadness. It is life without any vitality or excitemenent,
life as a fixed stare at a portion of one’s world, subjecting it to stereotyping
and projection. The disturbances of contact as Gestalt Therapy views them –
introjection, projection, retroflection, confluence – represent anxiety
at work substituting the known for the unknown 3
(MILLER, 1990, p. 27).
3 Tradução: Quando as pessoas se resignam, por medo e perda da fé nelas mesmas ou no seu ambiente, a viver em meio ao que elas já conhecem bem demais, o resultado é a estagnação, o tédio, e o amortecimento. É a vida sem nenhuma vitalidade ou excitação, a vida como um olhar fixo para uma parte do seu mundo, submetendo-o à esteriotipia e à projeção. Os distúrbios de contato tais como a Gestalt-Terapia os vê – introjeção, projeção, retroflexão, confluência – representam a ansiedade em funcionamento substituindo o conhecido pelo desconhecido.
CONFLUÊNCIA, PERSUASÃO E SOCIEDADE
A confluência é uma condição de indiferenciação.
Ela é fisiológica quando ainda assim existe uma disponibilidade
para o fundo se diferenciar. Quando esse estado se torna rígido, e o
que está dessensibilizado não pode mais ser reconfigurado frente
ao ambiente então temos a confluência como evitação
de contato:
A sensing and the object sensed, an intention and its realization, one person
and another, are confluent when there is no appreciation of a boundary between
them, when there is no discrimination of the points of difference or otherness
that distinguish them. Without this sense of boundary – this sense of
something other to be noticed, approched, manipulated, enjoyed – there
can be no emergence and development of the figure/ground, hence no awareness,
hence no excitement, hence no contact!.4 (PERLS,
HEFFERLINE & GOODMAN, 1951, II, p. 365).
4 Tradução: O que sente e o objeto sentido, a intenção e sua realização, uma pessoa e outra, são confluentes quando não há apreciação de uma fronteira entre eles, quando não há discriminação dos pontos de diferença ou outredade que os distinga. Sem o senso de fronteira – essa noção de algo outro a ser notado, abordado, manipulado, aproveitado – não tem como ter emergência e desenvolvimento de figura/fundo, por conseguinte não há awareness, por conseguinte não há excitamento, por conseguinte não há contato!
O termo apreciação, no sentido de olhar, observar, notar a diferença, é ponto primário para a experiência de contato. Quando o foco está no que a sociedade deveria ser, ou do que ela não pode ser, que surge do que o que pensador quer para satisfazer sua ansiedade frente a novidade que pode transformar o que está assimilado nele, perde-se o foco da diferença que existe.
É nesse encontro com a diferença que algo poderia ser modificado
em ambos os pólos organismo/ambiente. O foco em algo fantasioso (o que
deveria ser ou o que não deveria ser) visa somente o referencial de julgamento,
não há apreciação da diferença. Indiferenciado
que fica com somente um ponto de vista como norteador, o desenvolvimento figura/fundo,
awareness e contato ficam impossibilitados. Não ocorre mudança
nenhuma.
No encontro comunitário, frente as diferenças na forma de encarar
um certo conteúdo se houver possibilidade de escuta, mesmo que pontos
de vista não sejam modificados, ainda sim, poderá haver a experiência
de ser aceito em sua diferença e aceitar a diferença do outro.
Isso já é algo novo, diferente de somente ter uma visão,
pois é possível compreender o que faz outros a terem tal ponto
de vista, e essa compreensão muda a forma como posso estar com essas
pessoas. Mas se a atenção não está no que emerge
no campo organismo/ambiente, e sim somente no pólo organismo ou somente
no pólo ambiente, e se o desequilíbrio entre os pólos não
é tolerável, ou seja, na confluência, ou vai ser tentado
a restauração do equilíbrio, ou será necessário
o isolamento:
If a discrepancy in their views becomes manifest, they cannot work it out to
a point of reaching genuine agreement or else agreeing to disagree. No, they
must either restore the disturbed confluence by whatever means they can or else
flee into isolation. The latter may emphasize sulking, withdrawing, being offended,
or in other ways putting the brunt upon the other to make up; or, despairing
of restoring the confluence, it may take the form of hostility, flagrant disregard,
forgetting, or other ways of disposing of the other as an object of concern.5
(PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1951, II, p. 368).
5 Tradução: Se uma discrepância de ponto de vista se manifesta, eles não conseguem resolver até um ponto de concordância genuína ou então concordar em discordar. Não, eles precisam restaurar a confluência perturbada de qualquer maneira que puderem ou então fugir para o isolamento. O segundo caso pode enfatizar mal humor, retirada, ficar ofendido, ou outras formas de botar um peso para o outro fazer as pazes; ou desesperando-se para restaurar a confluência, pode tomar a forma de hostilidade, flagrante indiferença, esquecimento, ou outros modos de dispor-se do outro como um objeto de interesse.
Duas são as opções para restaurar a igualdade na confluência, ajustar o outro a si, ou se ajustar ao outro. Considerando uma relação de forças já naturalmente desigual como o organismo e a sociedade (ambiente), a segunda opção é a mais comum e mais comentada. Ainda assim a primeira aparece nas diferentes formas de comunicação em massa, como televisão, jornal, livros e artigos científicos, onde a crítica dá uma possibilidade mais ampla de ajustar os outros à visão do crítico. A censura à contemporaneidade pode variar desde a persuasão até a intimidação. Essas formas de tentativa de confluência ficam assim expressa:
To restore interrupted confluence one attempts to adjust oneself to the other
or the other to oneself. In the first case one becomes a yes-man, tries to make
up, frets about small differences, needs proofs of total acceptance; one effaces
his own individuality, propitiates, and becomes slavish. In the other case,
where one cannot stand contradiction, one persuades, bribes, compels or bullies.6
(PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1951, II, p. 368).
6 Tradução: Para restaurar a confluência interrompida, esse tenta ajustar-se ao outro, ou o outro a si. No primeiro caso torna-se um homem-do-sim, tenta fazer as pazes, preocupa-se com diferenças pequenas, precisa de provas de aceitação total; Ele apaga sua própria individualidade, perdoa, e se torna escravo. No outro caso, no qual ele não consegue aguentar contradição, ele usa de persuasão, suborna, compele, ou intimida.
Perls, Hefferline e Goodman (1951) demonstram como no contato a diferença
pode ser respeitada. O respeito ao assimétrico é condição
primordial para um diálogo, para essa apreciação de algo
outro a mim mesmo. A variedade na contemporaneidade, inclusive os ajustamentos
não saudáveis de terceiros, é o material
que proporciona qualquer mudança, pois deixa de frente com isso que é
diferente, somente nesse encontro que pode-se ser minimamente modificado:
When persons are in contact, not in confluence, they not only respect their
own and the other’s opinions, tastes, and responsabilities, but actively
welcome the animation and excitement that come with the airing of disagreements.
Confluence makes for routine and stagnation, contact for excitement and growth.7
(PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1951, II, p. 368).
7 Quando as pessoas estão em contato,
e não em confluência, elas não só respeitam as opiniões,
gostos e responsabilidades suas e dos outros, mas ativamente recebem a animação
e excimento que vem com o ventilar da discordância. Confluência
contribui para a rotina e estagnação, o contato para o excitamento
e o crescimento.
Na Confluência no pós-contato, os sentimentos representativos são
a culpa e o ressentimento (que é a demanda de que a outra pessoa sinta
culpa). Na culpa o organismo se depara com a idéia com que se identificou,
ou a ideologia alheia e deixa de lado a experiência que viveu. No ressentimento,
o organismo somente leva em consideração sua necessidade ou a
moral a que está ligado e ignora ou não admite a possibilidade
do outro fazer algo diferente disso:
The aim of these inconclusive attitudes of nagging oneself or nagging the other
party, guilt and resentment, is to restore the upset balance and mend the intolerable
situation of broken confluence. What is avoided in such cases is actual contact
with the person as a person, whether this contact were to take form of an explosion
of anger, a generous act of understanding and forgiveness, enjoying the other’s
pleasure, being frank about oneself, or any one of a number of other actions
that would be possible and appropriate if first consideration were not given
to slavish restoration of the status quo.8 (PERLS,
HEFFERLINE & GOODMAN, 1951, II, p. 370).
8 O objetivo dessas atitudes inconclusivas de importunar a si mesmo ou importunar o outro, culpa e ressentimento, é restaurar o equilíbrio perturbado e consertar a situação intolerável da confluência quebrada. O que é evitado nesses casos é o contato real com a pessoa como uma pessoa, seja esse contato fosse tomar a forma de uma explosão de raiva, um generoso ato de compreensão e perdão, curtir a satisfação do outro, ser sincero, ou qualquer outra ação que seria possível e apropriada se a importância maior não tivesse sido dada à escrava restauração do status quo.
O discurso confluente se torna um jogo de certo e errado, como se uma moral absoluta pudesse fornecer a verdade que ficará de parâmetro para a restauração da paz. Da mesma forma, a crítica à sociedade aparece como uma tentativa de reatar a confluência entre a sociedade e o crítico, demonstrando através de racionalizações persuasivas o quanto essa sociedade está errada:
Julgar-se dono da verdade, é um benefício colateral predominante
na persistência, comum nos pacientes que avaliam qualquer conflito entre
si e os outros, em termos de certo-errado, bom-ruim. Eles pensam que a única
forma de resolver um conflito é que uma das pessoas admita ser culpada,
ruim ou estúpida. Uma vez que admitir estes juízos é algo
humilhante e degradante, muitas pessoas persistem em seus ressentimentos, esperando
que o outro veja a luz e se humilhe admitindo estar errado. (TOBIN, 1977, p.
164).
O julgamento aos fenômenos contemporâneos apresenta-se, sob essa
perspectiva, como um ressentimento pela falha em comportar-se do jeito “certo”.
A satisfação está diretamente relacionada à espontaneidade,
é um fluxo natural. Ainda que houvesse uma mudança em prol do
que é “certo” o status quo permaneceria insatisfatório
pois a alteração não teria surgido de necessidades simultâneas,
seria um ato coletivo de confluência.
GESTALT-TERAPIA E COMUNIDADE
Uma forma prática encontrada de utilizando-se da proposta da Gestalt-Terapia,
focar as questões ‘indivíduo e sociedade’ de uma forma
diferente da encontrada nos consultórios clínicos são os
encontros em grupos de larga dimensão ou comunidades.
Polster (1999) descreve encontros feitos em uma cafeteria na década de
60 que reuniam até 250 pessoas, os chamados “encounter groups”.
Dentre as dificuldades encontradas nessa experiência, ele destaca a de
ter uma continuidade, como muitos encontros religiosos conseguem ter, além
de muitas reuniões focarem necessidades individuais, quando buscava-se
uma participação das pessoas de uma forma abrangente.
A intenção em grupos de grande proporção não é ter uma atenção individualizada, pois isso seria inviável, mas manter atenção nos fenômenos presentes. Se referindo a esses grupos no que posteriormente chama de Life Focus Communitites, ele diz:
A key influence in the Life Focus Communities will be a familiar psychotherapeutic
precedent: direct focus on the way people think, feel, move, strategize, invent,
and communicate. Such sharp therapeutic focus in private therapy results in
mind-altering perspective and behaviours.9 (POLSTER,
2006, p. 75)
9 Tradução: Uma influência fundamental no Life Focus Communities (Comunidade de foco na vida) será um precedente psicoterápico familiar: foco imediato na forma com que as pessoas, pensam, sentem, movem-se, fazem estratégias, invetem e comunicam-se. Tal foco terapêutico tão direto na terapia particular resulta em reconfiguração da perspectiva mental e comportamento.
Polster (2006) destaca a importância de se ter um ambiente benigno, uma
atmosfera sem demanda nesse grupos de grande proporção. É
uma forma de se manter um ambiente seguro. Polster fala de duas formas de encarar
um fenômeno, verticalmente e horizontalmente. Verticalmente, como na terapia,
descobrindo a serviço de que situação inacabada um determinado
sintoma, a procrastinação por exemplo, acontece. Horizontalmente,
propício nos Life Focus group, tem-se a experiência de não
ser rotulado dessa forma, de ouvir experiências possivelmente opostas
ou similares, ser aceito, ser exposto a propostas para tentar diferente e a
oportunidade de dividir como foi essa tentativa. Isso não garante que
a procrastinação será resolvida, mas dá a ele uma
oportunidade para tal, e dá a rica experiência da troca comunitária.
Polster acredita no poder das atividades que possibilitem awareness sensorial,
dando importância a uma experiência mais básica e primordial
que aconteça em um grande grupo. Essa percepção é
importante para possibilitar a continuação do processo de contato:
With this progression in mind, we will encourage simple awareness of simple
experience, as it is represented in personal observations such as I was disapointed
in… or i am confused by… or i love to read…I have always hated
being an only child. These expressions may not seem to count for much, but such
simple statements are the anchors for a greater complexity, born in simple begginings.
These simple communications, small by themselves, build the force of their drama
through the swelling of interest as the stories unravel and the person moves
to clarity and completion. This awareness continuum, as it is called in Gestalt
Therapy, is imbedded with a directionalism that guides people through a complex
dynamic of inner processes toward the person’s very own goals.10
(POLSTER, 2006, p. 79).
10 Tradução: Com a progressão em mente, vamos encorajar awareness simples de experiência simples, assim representadas por observações pessoais como eu me desaponto com… ou eu fico confuso com… ou eu amo ler… eu sempre odiei ser filho único. Essas expressões podem não parecer muito, mas tais afirmações simples são a âncora para uma complexidade maior, nascidas em começos simples. Essas comunicações simples, pequenas como são, fazem crescer a força de seu drama através do aumento de interesse quando as histórias se desenrolam e a pessoa move-se em direção à claridade e finalização. Esse continuum de consciência (awareness), assim como é chamado na Gestalt-Terapia, está relacionado com o direcionamento que guia as pessoas pela dinâmica complexa dos processos internos em direção aos objetivos próprios das pessoas.
Polster especificamente enfatiza a importância de poder perceber o que há de comum entre as pessoas na experiência em grandes grupos. E com esse ponto objetiva a polaridade da observação da diferença. Sobre esse paradoxo ele diz:
Neither the psychotherapy profession nor Western religions have sucessfully
balanced the paradoxical needs. What they have done is what people often do
when facing paradox. They have specialized, each avoiding the dilemma by reducing
attention to what the other side of the paradox requires. Religion, in emphasizing
communal measures has created too much enphasis on universality and conformity
while psychotherapy has focused too much on individuality.11
(POLSTER, 2006, p. 97).
Litchenberg desenvolve sua tese de em congruência com a visão de
Polster, colocando a importância de formas saudáveis de não-saudáveis
de se relacionar em sociedade e a necessidade de se observar ambas:
11 Tradução: Nem os psicoterapeutas nem os religiosos
ocidentais conseguiram balancear de forma bem sucedida as necessidades paradoxais.
O que eles fizeram é o que as pessoas normalmente fazem quando encontram
um paradoxo. Eles se especializaram, cada um evitando o dilema reduzindo atenção
para o que o outro lado do paradoxo exige. A religião, enfatizando o
que há de comum gerou ênfase demais na universalidade e na conformidade
enquanto a psicoterapia focou demais na individualidade.
We human beings need to be seen as we are, accepted in our best behaviour but also in our worst, supported in our complexity, recognized in our ambiguity, encouraged in our efforts to become complete. Unsucessful social reformers and revolutionaries are tipically purists […] For us to became contemporary subjects of the realm, we need both support in our limitations and challenge of our strengths.12 (LITCHENBERG, 1990, p. 6).
12 Tradução: Nós seres humanos precisamos ser vistos como somos, aceitos nos nossos melhores comportamentos mas também nos piores, apoiados em nossa complexidade, reconhecidos em nossa ambiguidade, encorajados em nossos esforços de sermos completos. Reformadores sociais mal-sucedidos e revolucionários são tipicamente puristas […] Para nos tornarmos sujeitos contemporâneos do nosso domínio, nós precisamos de ambos suporte nas nossas limitações e desafio nas nossas resistências.
Esse encontro em comunidade tem o diferencial de buscar possibilitar a construção
de suporte para lidar com o deparar-se com algo novo e visto como ameaçador
no lugar de exigir do mesmo capacidade que esse indivíduo não
tem ainda, e permitir a escolhe de nunca ter e ainda sim pertencer ali, e apesar
disso ter outras semelhanças. O ser humano é relacional, o encontro
permite uma experiência diferente do isolamento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se existe a necessidade de se reconsiderar a forma como a sociedade acontece
contemporaneamente é necessário então estar em coletivo
visando uma observação dos fenômenos de massa. Uma observação
na vivência com foco no presente, percebendo como são esses fenômenos
e como cada um se relaciona com ele, qual a tendência na atenção
ao observar um pouco mais, as diferenças, semelhanças, a identificação
e a alienação, de que outra forma poderíamos fazer. Talvez
a moralidade não seja reconsiderada e sim a forma de se estar com ela.
As duas formas de estar com outrem podem ser consideradas, tanto a necessidade
de se diferenciar quanto a de pertencer e ter uma vivência congruente.
Na consideração sobre o ambiente estas vivências podem estar
polarizadas e vistas como contraditórias. A integração
dessas polaridades é o que a Gestalt-Terapia propõe como possibilidade
para tal paradoxo.
Se o que se apresenta é uma tendência à responsabilização de uma entidade “sociedade” pode-se convidar a olhar para a participação individual no fato. Se o fenômeno que emerge é o julgamento da diferença tem-se a proposta de observar essa diferença e/ou o sentimento que emerge e/ou seu oposto reparar a semelhança. Ainda que para um indivíduo específico olhar sua participação, por exemplo, seja demais e este não consiga manter o foco, ele ainda tem oportunidade de ver outras pessoas terem essa experiência, e olhar para uma repercussão em larga escala pode ser possível para ele e isso em si pode ser novo e transformador.
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