MESA REDONDA 03 – PARTE I: GESTALT-TERAPIA E ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO: DOIS CAMINHOS PARALELOS QUE SE CRUZAM

Autor: Izabela Guedes Linhares

 

RESUMO

Este artigo tem como propósito maior fazer uma breve apresentação da prática clínica do Acompanhamento Terapêutico, perpassada por alguns conceitos da Gestalt-terapia, tais como funções e fronteiras de contato, experimentos e fenomenologia. O diálogo entre esses dois saberes tem se mostrado relevante no atendimento a clientes com diagnóstico de psicose e transtorno de personalidade borderline, em se tratando de indivíduos que vivem em situações de intenso isolamento social, e que podem se beneficiar de uma prática que se propõe a colocar os acompanhados em contato direto com a vida prática e com o social.


Palavras-chaves: acompanhamento terapêutico, gestalt-terapia, isolamento social, personalidade esquizóide, psicose, borderline.

ABSTRACT
The main purpose of this paper is to present a brief consideration of clinic practice of Therapeutic Accompaniment crossing it with some concepts from Gestalt-therapy, such as functions and contact boundaries, experiments and phenomenology. The dialogue between these two areas of study has been considered relevant in the treatment of patients with diagnosis of psychotic disorder and borderline personality disorder (BPD), as these are individuals who live under conditions of extreme social isolation and who can benefit from a practice that proposes to make them establish direct contact with practical and social life.
Keywords: therapeutic accompaniment, gestalt-therapy, social isolation, schizoid personality, psycho, borderline.

“Socorro, alguma rua que me dê sentido Em qualquer cruzamento, acostamento, encruzilhada Socorro, eu já não sinto nada”22

22 Socorro, música de Arnaldo Antunes e Alice Ruiz.

INTRODUÇÃO

Ao iniciar a elaboração deste artigo, de imediato me deparei com a seguinte pergunta: foi-se o tempo em que podíamos conceber o mundo como uma coleção de partes dissociadas? E sem precisar escavar muito, eis que a resposta brota: acredito que esta visão reducionista deixou de ser suficiente -diga-se de passagem, ainda no século passado -para lidarmos com os problemas que a sociedade contemporânea enfrenta cada vez mais. As dificuldades de nossa época não podem ser entendidas isoladamente, pois vivemos num mundo superpovoado e globalmente interligado e interdependente, ou seja, tudo e todos pertencem a um grande sistema, entendendo esta palavra conforme o grego synhistanai, cuja raiz significa “colocar junto.” Logo, “entender as coisas sistemicamente significa, literalmente, colocá-las dentro de um contexto, estabelecer a natureza de suas relações.” (CAPRA, 1997, p.39)

Tendo como base esta recente ótica ecológica, onde somos um fio particular na teia da vida, e ciente da responsabilidade que temos perante os obstáculos dos tempos atuais, torna-se mais que pertinente colocarmos em pauta nosso trabalho como gestalt-terapeutas e as implicações que nossa prática incide numa sociedade tão dicotomizada. Trazendo a reflexão para um âmbito mais específico e avaliando o que tenho vivido no dia a dia do trabalho clínico, formulo algumas indagações: que lugar eu tenho ocupado na sociedade ao escolher atuar como terapeuta? Tal prática tem contribuído para um mundo mais humanizado? Que tipo de ajuda tem sido possível oferecer a clientes que relatam sofrimentos tão profundos? O que tem sido importante, em suas trajetórias, para que alcancem melhores condições de autonomia e auto-suporte?

Apesar de reconhecidos avanços sociais no campo da saúde mental, em especial a partir do movimento da Reforma Psiquiátrica iniciado, no Brasil, na década de 80, infelizmente a loucura ainda é pensada pelo viés do abandono, da exclusão, da impossibilidade e da clausura, só para citar algumas ideias que permanecem no imaginário e na conduta popular. Quais medidas nós podemos adotar, visando o acolhimento daquele que sofre com algum transtorno mental?

“Se a loucura não se encontra mais entre muros de concreto – apesar deles ainda haverem (...) – é a função do acompanhamento terapêutico que poderá levá-lo ao contato direto com a sociedade, sempre visando um regime de variação constante em seu estatuto social assim como da forma que a sociedade entende e lida com a loucura.” (ARAUJO,2007, p. 167)

Destarte, tenho escolhido trilhar um caminho que rume nesta direção: do acolhimento, da inclusão e da integração de tais indivíduos, cuja posição é particularmente tão delicada frente a uma sociedade que pouco consegue lidar com as diferenças. E para tal, venho apresentar algumas reflexões acerca do entrelaçamento do Acompanhamento Terapêutico com a Gestalt-terapia, questão absolutamente fundamental no presente trabalho.

Passo a apresentar um estudo sobre o trabalho de Acompanhamento Terapêutico que venho realizando com alguns clientes com diagnóstico de psicose e transtorno de personalidade borderline (TPB). Tomando como ponto de partida a contextualização histórica do surgimento da atividade e do termo denominado a partir de agora como AT, em seguida apresentarei uma breve conceituação destas personalidades que designo como “esquizóides”, passando, por fim, a abordar alguns conceitos pilares da Gestalt-terapia, quais sejam: funções e fronteiras de contato, experimentos e fenomenologia. Só então poderei traçar as considerações finais acerca das minhas impressões.

Peripatetizando com e entre esses saberes, espero contribuir no sentido de ampliar os significados e as reflexões dos personagens envolvidos neste cenário e que, de alguma maneira, todos possam se beneficiar com tal passeio, sejam eles acompanhantes ou acompanhados.

PERCORRENDO O AT

Ao falar em Acompanhamento Terapêutico, convencionou-se o mito de que se trata de uma terapêutica endereçada a pessoas que, de alguma forma, não conseguem ou não podem se beneficiar do consultório, visão esta que parece colaborar com a separação de “neuróticos” para um lado e “psicóticos” para o outro. Porém, devo esclarecer que seccionar não é minha intenção.

Em se tratando de uma atuação que se propõe em colocar os acompanhados em contato direto com a vida prática e com o social, eis a justificativa para a escolha do público com quem venho trabalhando: indivíduos que, em sua maioria, estão cindidos em demasia na relação consigo próprio e com o outro, colocando-se cada vez mais em situações de isolamento. É possível não só ajudar as pessoas a resgatarem atividades que aparecem comprometidas, mas também a criarem outras até então incomuns? Como transformar antigos hábitos em novas formas de relacionar-se com o mundo? E o que acontece a partir dessa prática em que o socialis23 é envolvido de forma tão imediata?

23 ETIM lat., concernente à sociedade, social, sociável.

Em Trieste, quando os primeiros raios da Antipsiquiatria começaram a surgir, Franco Basaglia lançou a proposta de um novo modelo de atendimento em saúde mental, o qual não tinha como base um único saber específico sobre a loucura ou alguma autoridade que soubesse, a priori, a melhor e a mais adequada intervenção terapêutica. Com este pensamento à frente do seu tempo, Basaglia germinou a ideia de que o rol de intervenções fosse aberto ao campo social, no qual os técnicos pudessem ser, todos, um pouco acompanhantes, termo que na Argentina e no Brasil, ganhou o nome de amigo qualificado. Foi desta maneira que surgiu o que, inicialmente, denominou-se voluntário, uma figura que desempenhava importante papel no tratamento em se tratando de ser aquele que acompanhava os usuários com dificuldades de reinserção social, desde buscando em casa os que não conseguiam sair sozinhos, até auxiliando-os em pequenas tarefas cotidianas e/ou em atividades mais complexas.

Mas como podemos pensar na expressão “amigo que acompanha”, se a proposta é desenvolver uma prática que mereça o status de clínica? Faz-se necessário ressaltar que não se está falando de uma prática pura e simplesmente assistencial, que não apresente peculiaridades terapêuticas. O AT fala de uma clínica que se propõe a gerar qualidades, irromper potencialidades. Neste sentido, nada que o difira daquela realizada entre quatro paredes. Podemos dizer, então, que toda clínica é acompanhamento, concebida nesta relação acompanhado-acompanhante? “Acompanhar na clínica teria, dessa forma, o sentido de colocar-se ao lado. Partir em caminhada ao lado do que surge enquanto outro, novo, desconhecido, devir”. (op.cit., p. 138)

Outra comparação que acontece de forma equivocada diz respeito ao espaço onde a clínica do AT acontece, acreditando-se que as inovações produzidas na passagem para um setting aberto quase sempre dizem respeito a um “afrouxamento” das técnicas de consultório, o que muitas vezes acaba passando a idéia de que o AT é uma prática clínica inferior ou auxiliar. Parece colaborar para este equívoco o fato de que ainda há uma literatura parca e dispersa sobre o tema, o que acaba transferindo boa parcela das teorias desenvolvidas em práticas de setting fechado para o campo do AT. Contudo, é justamente por o AT acontecer em um setting aberto que podemos afirmar tratar-se de uma clínica que pode se dar em qualquer lugar em que das paisagens surja um sentido, transformando qualquer lugar em um potencial clínico.

 

PSICÓTICOS E BORDERLINES: PERSONALIDADES ESQUIZÓIDES

Seguido a esta sucinta introdução do campo do AT, cujo escopo foi mapear a rua como espaço clínico para a Gestalt-terapia, parece-me oportuno fazer um esboço do que estou chamando de personalidade esquizóide, de forma que, este modo encontrado pelo indivíduo para estar no mundo, sirva como ponto de partida para as posteriores apresentações conceituais.

Nossa personalidade vai se delineando a partir da relação que estabelecemos com o mundo, este que num primeiro momento é representado em primazia pela mãe. Mas o que acontece quando esse contato inicial não pode estar atento a todas as necessidades do bebê? Se a criança não encontra estabilidade e segurança no meio ambiente, como se desenvolve seu senso de unidade?

“O processo de desenvolvimento consiste na diminuição da dependência e na progressiva diferenciação com respeito ao objeto. (...) Quanto maior o número de estratégias dissociativas para lidar com o objeto, maior seria a dependência infantil, ou a sua permanência e não superação.” (CELES, 2008, p. 55-56)

Fairbairn (1980) afirma que “o fenômeno esquizóide fundamental é a presença de dissociações no ego”, que podem acontecer em perturbações relativamente menores do sentido de realidade, até a despersonalização completa e a sensação de irrealidade. Quero dizer, com isso, que as condições esquizóides manifestas vão desde um estado transitório, como por exemplo, a experiência de déjà vu, até a esquizofrenia propriamente dita, uma experiência profunda de desunião consigo próprio, uma fragmentação do eu, um colapso do potencial do indivíduo em sustentar uma totalidade, podendo faltar-lhes um sentido essencial de si mesmos, assim como um sólido senso sobre o outro. Entre os dois extremos incluo os portadores de transtorno de personalidade borderline e os portadores de transtornos psicóticos de um modo geral, referindo-me a esses clientes como os que “não conseguem manter um sentido coeso do self por meio de uma sucessão de momentos aqui-e-agora.” (YONTEF, 1998, p. 306, grifo meu)

Ainda segundo Celes et al (op.cit., p. 56), “as principais características da dependência infantil são as atitudes incorporativas e a identificação indiferenciada com o objeto. Essas características fazem com que a perda ou o afastamento do objeto sejam acompanhadas pelo sentimento de aniquilação do ego.”

Perante um mundo ameaçador à sua precária existência, tais pessoas assumem uma postura de isolamento, guardando fechado a sete chaves seus conteúdos emocionais e demonstrando-se distante e com dificuldades em estabelecer empatia. Como as experiências vivenciadas podem ir se integrando às construções a priori destes clientes? Como eles percebem e interagem com o mundo a partir das construções subjetivas acerca de si próprios e como o AT, utilizando-se do arcabouço proposto pela Gestalt-terapia, pode auxiliar esses indivíduos herméticos a experimentar uma maneira mais nutritiva de estar no mundo?

ALGO ACONTECE NA RUA QUANDO A TOMAMOS COMO CLÍNICA

Ana, uma cliente que acompanho há aproximadamente dois anos, tem como hábito “apagar” partes das experiências que vivencia, de forma que os fatos se ajustem aos seus sentimentos. Por exemplo, a vergonha que ela demonstra sentir em virtude de se considerar uma pessoa vil e desprezível precisa ser constantemente justificada, retroalimentando sua certeza quanto a ser abjeta. Porém, tais explicações intelecto-racionais não se sustentam frente às experiências concretas (ainda que, posteriormente, ela insista em apagá-las também).

Essa cliente possui um incrível pendor artístico e no último Natal, pediu que eu lhe emprestasse uma fotografia minha, a fim de que pudesse pintar um quadro do meu perfil. Tempos depois, em um de nossos encontros, Ana entregou-me o quadro sob fortes protestos para que eu não o desembrulhasse na sua presença, pois ela considerava que tinha cometido muitos erros e, por isso, havia ficado feio. Argumentei que, para mim, não fazia sentido vê-lo sem que estivéssemos juntas; sendo assim, aguardaria o momento e o local que ela escolhesse para o fazermos conjuntamente. Algumas semanas se passaram até que ela propôs que nos encontrássemos num parque da cidade, pedindo que eu levasse o quadro. Chegando lá, ao abrir o presente, fui tomada por uma forte emoção diante de toda a generosidade de Ana. Ao lado do meu rosto, ela não só havia feito várias “homenagens” a locais que tínhamos visitado, como também usado muitas cores alegres, contrastando com sua aparência e modos soturnos. Ao olhar para o tamanho do meu colo na foto, senti que ela o havia feito numa proporção maior em relação a todo o restante do quadro. Emocionada, fui compartilhando todas essas minhas impressões com Ana, que me olhava profundamente. A despeito de toda a emoção que tomou conta do momento, imediatamente após o longo silêncio que se fez enquanto apenas nos olhávamos, Ana começou a desfiar seu rosário de justificativas para os erros cometidos em sua pintura. Foi quando um grupo de crianças que brincava nos arredores veio correndo em nossa direção, sucedendo a seguinte cena:

-Um menino: Nossa! É você! (apontando para mim)

-Eu: Sorri. Perguntei se eles tinham gostado. (Ana abaixou a cabeça e começou a chorar, soluçando discretamente)

-Os meninos, falando ao mesmo tempo: Sim, é muito bonito.

-Eu: Olhei para Ana, que timidamente retribuiu o olhar, dando um sorriso reservado.

-Outro menino: Quem pintou?

-Ana: Imediatamente balançou a cabeça negativamente e sussurrou “não”.

-Eu: Respondi para a criança que tinha sido uma artista, de quem eu tinha ganhado o quadro de presente. Perguntei se ele gostaria que eu a parabenizasse quando estivesse com ela.

-Menino: Respondeu que sim.

APROXIMAÇÕES COM A GESTALT-TERAPIA

Mediante contato, cada pessoa tem a chance de encontrar o mundo de um modo nutridor (ou não) e a diminuição da capacidade de contatar aprisiona o homem na solidão. Expansão e recolhimento fazem parte do contato, o problema é a rigidez num pólo ou noutro. Sorrir, cheirar, tocar, ver, falar, receber... “Eu estou sozinho, mas ainda assim preciso encontrar você para viver.” (POLSTER, 2001, p. 111). É através do contato que nos expressamos ao mundo e dele nos alimentamos; isso nos possibilita sentir que estamos vivos. Se o bebê não pode contar com um ambiente acolhedor e continente, à medida que essa interação organismo/ambiente acontecer de forma débil, tanto mais restará apenas um esforço do organismo em buscar seus próprios meios numa tentativa de manter a si mesmo com vida. “É apenas pela função de contato que a percepção de nossas identidades pode se desenvolver plenamente.” (op.cit., p. 112).

Estar em contato com alguém exige reconhecer que há um outro que não sou eu, o que requer separar-se para, só então, poder reunir-se novamente. Diante dessa impossibilidade de se construir enquanto unidade, com dúvidas sobre sua autonomia, os indivíduos com personalidade severamente esquizóide evitam estabelecer contato, mantendo-se fechados em seu mundo.

“Contatar é, em geral, o crescimento do organismo. Pelo contato queremos dizer a obtenção da comida e a sua ingestão, amar e fazer amor, agredir, entrar em conflito, comunicar, perceber, aprender, locomover-se; em geral, toda função que tenha de ser considerada primordialmente como acontecendo na fronteira, num campo organismo/ambiente.” (PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1997, p. 179)

Nessas personalidades esquizóides, as fronteiras parecem ser sentidas de maneira ambígua, se expressando através de vivências intercorporais primárias, dividindo a totalidade da experiência em diversas partes, como se cada experiência se ligasse por tênues fios, dando a sensação de ser uma pessoa fragmentada, incompleta.

Diante da impossibilidade de discriminar qual o evento de maior importância no campo organismo/meio – o que chamamos de awareness – quais meios o organismo encontra para ajustar-se criativamente, de acordo com suas necessidades? O objeto que é difuso, sempre o mesmo ou indiferente não é um objeto de contato, não resultando em assimilação e crescimento.
“A descrição de saúde e doença psicológica é simples. É uma questão das identificações e alienações do self: se um homem se identifica com o seu self em formação, não inibe seu próprio excitamento criativo e sua busca da solução vindoura; e, inversamente, se ele aliena o que não é organicamente seu e, portanto, não pode ser vitalmente interessante, pois dilacera a figura/fundo, neste caso ele é psicologicamente sadio, porque está exercendo sua capacidade superior, e fará o melhor que puder nas circunstâncias difíceis do mundo. Contudo, ao contrário, se ele se aliena e, devido a identificações falsas, tenta subjugar sua própria espontaneidade, torna sua vida insípida, confusa e dolorosa.” (op.cit., p. 49)

Estou chamando de self o sistema completo de contatos, que varia de acordo com as necessidades orgânicas imperantes e os estímulos ambientais imediatos. Dessa forma, localiza-se na fronteira do organismo, mas a própria fronteira não está isolada do ambiente; ela entra em contato com este, pertencendo a ambos, ao organismo e ao ambiente. Pensando em termos da própria forma que os seres vivos têm pra se organizar,

“o metabolismo celular produz componentes e todos eles integram a rede de transformações que os produzem. Alguns formam uma fronteira, um limite para essa rede de transformações. (...) No entanto, essa fronteira membranosa não é um produto do metabolismo celular tal como o tecido é um produto do tear, porque essa membrana não apenas limita a extensão da rede de transformações que produz seus componentes, como também participa dela.” (MATURANA, 2007, p. 52-53)

Como o modo terapêutico da Gestalt-terapia pode ser conclamado à presença nesses espaços rotineiros, desconhecidos, inexistentes, assustadores, propiciando que as interlocuções se tornem múltiplas e imprevistas, tecendo uma teia de continuidade e constância, tanto física quanto psíquica, visando promover o poder criativo de reintegração dessas partes que aparecem tão desconectadas?

Os experimentos práticos em Gestalt-terapia têm como um dos propósitos principais intensificar a awareness do contato do ser no mundo, condição que não é objetiva e imutável, mas uma potencialidade que no contato se atualiza. O ego dissociado fica impossibilitado de funcionar dentro do sistema de identificações e alienações e “por meio do experimento o indivíduo é mobilizado para confrontar as emergências de sua vida, operando seus sentimentos e ações abortados, numa situação de segurança relativa.” (POLSTER, 2001, p. 238)

O contato direto com o socialis, que o AT proporciona, gera uma multiplicidade incalculável de experimentações. Um bar cheio de pessoas se confraternizando, um pedido de informação de terceiros, um temporal que desaba repentinamente, um convite para participar da festa de uma criança num jardim público, um medo ao encontrar uma pessoa conhecida – falo de um corpo em pleno estado de afetação24 num momento de tempo presente. Não é um ensaio para um acontecimento futuro nem tampouco um ato póstumo de algo que já aconteceu. Evocamos o sistema de ação do indivíduo, numa tentativa de oposição ao tentador hábito de “falar sobre”, podendo resgatar sensações como “sou eu quem estou sentindo, percebendo, fazendo e/ou escolhendo tal coisa.”

24 Ato ou efeito de afetar-se.

A fenomenologia, “ciência descritiva das essências da consciência e de seus atos” – conforme a definia Husserl, é um importante pilar da Gestalt-terapia. Ao entendê-la como a análise da dinâmica da alma, esta que dá aos objetos do mundo um sentido (ao invés de contemplar um universo estático), tratamos a consciência sempre como consciência de algo. “Consciência-de-alguma-coisa” e “objeto-para-um-sujeito” se definem, pois, a partir de uma correlação, sem a qual nada existe. Portanto, estamos falando de uma consciência absolutamente intencional, pois o que se passa na nossa mente não ocorre no vazio, está sempre visando alguma coisa; o significado que o cliente dá ao mundo fala a partir do seu horizonte existencial.

Do acompanhante é requerido manter seus valores, crenças e necessidades “entre parênteses”, suspendendo qualquer opinião de valor frente à compreensão daquilo que se apresenta como percepção-percebida do cliente. O indivíduo ao relatar o seu estado de alma não está apenas sendo reflexivo, mas também demonstrando como se dá o seu acesso ao mundo. Se, durante as “saídas”25, nos situamos no aqui-e-agora, atentos ao nosso cliente como um todo, percebemos que ele se auto-revela permanentemente – a nós, cabe descrevê-lo fenomenologicamente, demonstrando compreensão. O que se mostra não deve ser interpretado, julgado ou tratado como a priori pelo acompanhante, pois, neste lugar, o papel que desempenhamos é o de acompanhar o fluxo da energia que transborda de um mundo desconhecido, oferecendo nossa presença para fazer este passeio ao lado, “desde que tal participação contemple a prioridade da relação que se estabelece: que esta possa servir ao indivíduo que procura a terapia, para que ele alcance, autonomamente, sua satisfação, seu reequilíbrio organísmico”. (RODRIGUES, 2004, p. 154)

25 Termo comum, entre os acompanhantes, usado para designar as sessões de AT.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No exemplo relatado, Ana pôde vivenciar a confrontação entre sua ideia nefasta a respeito de si própria e o impacto que sua obra de arte provocou nas crianças. O que aconteceu que os meninos não se afastaram, ao contrário, se aproximaram? Que emoção isso desencadeou em Ana? Como ela escolheu se perceber ao receber os elogios, ainda que indiretamente? Ela fez algo para não aceitá-los? De que maneira o contato com o outro, e com suas próprias emoções, pôde ser vivenciado no aqui-e-agora a partir de um evento inesperado, dificultando que ela pudesse usar qualquer justificativa desatualizada para lidar com a situação? O que ela decidiu fazer com essa experiência?

Transformar – formar novas feições – eis um grande desafio! Modificar-nos, expandir-nos, recriar-nos a cada instante. Como estamos falando em AT, uma prática atenta à ocupação dos mais diversos territórios, e refletindo sobre o lugar que eu ocupo ao atuar como gestalt-terapeuta, acredito que uma das minhas responsabilidades é vislumbrar potencialidades que podem transformar pessoas, vidas, oferecendo o suporte necessário para que o cliente se perceba como aquele que escolhe qual papel ele quer assumir: o de “doente” ou o de potencialmente capaz de adquirir saúde e melhor qualidade de vida. O convite é lançado, mas apenas ele pode decidir de qual lado realmente deseja viver. E assumir a responsabilidade de estar junto ao outro nesse processo de resgate de humanidade é uma tarefa complexa, porém fascinante. É ter a oportunidade de me reunir com minha própria humanidade.

As inquietudes frente às demandas da contemporaneidade servem para nos fazer querer deixar o status quo. Seja no lugar de terapeuta, seja no do cliente, os desafios, os empecilhos, as angústias servem como molas propulsoras para o crescimento. Estamos no mundo, onde tudo e todos se transformam a todo instante. O tempo nos pertence, assim como a liberdade de re-escolher – sempre – o que e quem somos. Acreditar na possibilidade verdadeira de mudança e aceitar as diferenças a partir do que cada um escolhe para sua vida, me enche de esperança quanto à verdadeira possibilidade de crescimento individual, frutificado numa sociedade mais generosa, tolerante e humanizada. Lembrando (e homenageando) o saudoso homem-do-bem e dramaturgo, Augusto Boal:

“temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida. Atores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade; é aquele que a transforma."26

26 Mensagem em homenagem ao Dia Internacional do Teatro, 2008.

Após caminhar até aqui, finalizo este percurso mirando o horizonte. O que encontrarei pela frente? A estrada, assim como os que se põe a caminhá-la, é um eterno vir a ser. Assim como afirmava Sancho Pança, o fiel escudeiro de Dom Quixote de la Mancha, os dois maiores caminhantes da literatura mundial:

“cavaleiros de aventuras vem a ser um sujeito que em duas palhetadas se vê desancado, o imperador. Hoje está a mais desditada criatura do mundo, e a mais necessitada, e amanhã terá duas ou três coroas reais.” (CERVANTES, 2002, p. 97)


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