MINI-CURSO 02

A FERIDA QUE NÃO FECHA – TRATANDO ADULTOS VÍTIMAS DE ABUSO SEXUAL NA INFÂNCIA

 

Luiza Medeiros e Helena Jucá Vasconcellos


RESUMO

Em meu trabalho como psicóloga clínica atendo adultos que sofreram violência sexual quando crianças. Tenho vivenciado nestes atendimentos, que as “feridas do passado” permanecem abertas e presentes afetando drasticamente a vida dessas pessoas. Este mini – curso pretende compartilhar teoria, métodos e intervenções gestálticas que possam favorecer um melhor atendimento para essa demanda clínica.

INTRODUÇÃO

Apesar do incesto ser um tabu e uma transgressão e da impossibilidade cultural de haver envolvimento sexual entre crianças e adultos, em minha prática clínica me deparei com um grande número de adultos vítimas de violência sexual na infância. Mesmo com essa extensa demanda clínica, pouco é escrito sobre esse tema, principalmente a partir da visão fenomenológica existencial. O abuso sexual se caracteriza como toda ação sexual entre duas ou mais pessoas de qualquer sexo e uma criança ou adolescente, em que o adulto se propõe a obter prazer a partir da imposição e da sedução (Azevedo e Guerra, 1989 apud Braun, 2002).

Em casos de abuso, o adulto que deveria preservar a segurança e a dignidade da criança, usa da relação estreita que tem com a vítima e abusa da confiança e do poder como responsável para se aproximar e satisfazer suas próprias necessidades, praticando atos sexuais que a criança/ adolescente considera inicialmente como de demonstrações afetivas e de interesse. Meu objetivo neste mini -curso é abordar o assunto a partir de uma perspectiva teórica e metodológica gestáltica, ampliando o foco através de um panorama familiar. Acredito que com isso haja a possibilidade de se construir uma ponte que permita ao terapeuta criar uma maneira eficiente de proceder e ajudar a amenizar o sofrimento de adultos vítimas de violência sexual na infância ou na adolescência.

CONCEITOS BÁSICOS

Um abuso pode ser considerado um mau uso ou um desregramento. A pessoa que abusa é aquela que se excede limites e invade fronteiras. Para existir abuso sexual na infância/ adolescência é preciso existir uma falha das pessoas responsáveis em cuidar da criança/ adolescente, permitindo que ela seja exposta a situações sexuais inadequadas, na maioria dos casos com adultos que acarretam em graves seqüelas físicas e emocionais. Normalmente o agressor é alguém em quem a criança confia.

Crianças passivas e dependentes costumam ser o alvo preferido dos autores de abuso, geralmente são pouco vigiadas e vulneráveis emocionalmente. Segundo Pia Mellody (1989, apud Cukier, 1998) há abuso sexual quando o relacionamento com o filho é mais valorizado pelo pai do que com o cônjuge. Atualmente considera-se que os pais abusam da criança sempre que há um desrespeito na hierarquia da relação pais e filhos. Cukier (1998: 32) afirma que “O vínculo pais – filhos pressupõe uma hierarquia em que duas pessoas adultas resolvem ter uma criança que serão responsáveis até crescer”.

É possível considerar que, “no caso de abuso sexual de menores, existem, na maioria das vezes, dois agressores” (Hellinger, 1996: 27). Aquele que cometeu o ato geralmente fica em figura perante a criança, a família e a sociedade, porém acredita-se na existência em segundo plano de um pacto secreto na família que envolve amplamente o contexto familiar onde todos os membros estão comprometidos. A família incestogênica é uma família disfuncional e todos os seus membros precisam de intervenção terapêutica, não só o agressor (Braun, 2002). Nesse tipo de família, a criança normalmente tem muito medo de falar e o adulto tem medo de ouvi-la (Cukier, 1998). Ela teme a punição ou capta no campo a incapacidade dos adultos de protegê-la da violência do agressor, se sentido desprotegida.

Porém, quando por qualquer motivo o agressor entende que a criança começa a compreender seus atos como abusivos ou, ao menos, como anormais tenta inverter os papéis, impondo a ela a culpa de ter aceitado seus “carinhos”. Neste contexto, por medo muitas vezes a vítima chega até a idade adulta sem nunca ter revelado a agressão. Além disso, pode haver sentimento de culpa da criança por acreditar ter permitido a agressão e por experimentar de algum prazer físico numa situação que é geralmente aversiva (Braun, 2002).

A criança se sente insegura por imaginar que realmente não seria ouvida ou acreditada se revelasse o abuso; envergonhada tanto pelo que se passa com ela, como pela sua impossibilidade de denunciar e ameaçada por aquele de quem habitualmente depende física e emocionalmente. Nesta configuração se fecha em silêncio para o grande alívio de todos os envolvidos direta e indiretamente na violência. Por esses e outros motivos, as crianças e/ ou adolescentes têm receio de compartilhar o que se passou com eles e podem guardar esse segredo até a idade adulta. Porém, o que não foi revelado fica presente, através de graves sintomas, causando disfunções na forma da pessoa fazer contato com o mundo.

De acordo com Miller (1997:14), “a verdade nos é tão essencial, que o preço de sua perda é adoecer gravemente.” A maioria das pessoas que sofreram abuso sexual na infância e/ ou adolescência procura atendimento psicológico muitos anos depois do ocorrido. É pouco comum que essas pessoas construam logo no início do processo terapêutico uma conexão clara entre a violência sofrida e a queixa que as trouxe ao tratamento. Inicialmente o que traz essas pessoas à terapia não é o abuso sofrido, mas variados tipos de conflitos e dificuldades como: manifestações psicossomáticas, comportamento agressivo, perturbações no sono, perturbações na sexualidade, baixa auto-estima, dificuldade de fazer vínculo, isolamento, sentimento de desamparo, impotência, vergonha, problemas relacionados com a alimentação como obesidade, bulimia e anorexia, depressão, ideações suicidas, dependência química e uma série de outros transtornos psiquiátricos.

É possível compreender a conexão existente entre os sintomas físicos, psicológicos e comportamentais e a violência sexual sofrida na infância, usando como suporte a visão holística, fenomenológica e humanista da Gestalt-terapia, que traz reflexões acerca de como perceber os conceitos de saúde e doença. Hycner (1995:58), a partir da filosofia de Buber, enfatiza que “a "patologia" é vista como um distúrbio da existência inteira e como uma "declaração" do que precisa ser atendido para que a existência dessa pessoa se torne mais integrada”.

A visão positivista desta abordagem identifica o sintoma como uma maneira de ajustamento criativo, ou seja, uma criação sábia da pessoa em busca de se harmonizar no campo organismo/ ambiente. Porém, quando o que inicialmente é uma capacidade saudável de auto -regulação se cristaliza e se transforma em uma forma de contato disfuncional, o livre fluxo de movimento na vida é impedido gerando desequilíbrio físico e emocional.

Suponho de acordo com a minha vivência clínica e usando como base os norteadores teóricos da Gestalt -Terapia que os sintomas produzidos pela violência sexual sejam uma forma de auto-regulação cristalizada que apontam para situações inacabadas e para necessidades não atendidas na infância que podem estar relacionadas ao pacto de silêncio feito para manter a homeostase familiar e aos sentimentos de culpa e medo que apontam para dor da criança presente no sintoma do adulto.

PRÁTICA CLÍNICA

Observei que em 95% dos casos atendidos o abuso foi revelado pela primeira vez no ambiente terapêutico. Notei também que em 60% dos casos, o agressor era alguém da família da vítima, 25% eram pessoas próximas da família e apenas 15% eram desconhecidos da vítima. Esses dados apontam e corroboram com pesquisas sobre abuso sexual de crianças e adolescentes (Braun, 2002). Estatística Clínica – Consultório (Entre Maio de 2001 até Fevereiro de Particular 2009)


Sexo da vítima Feminino: 90% Masculino: 10%


O tempo para que a revelação aconteça na terapia depende da urgência da necessidade da pessoa e/ ou da qualidade do vínculo estabelecido entre o terapeura e o cliente. “O passado tem uma tarefa. Enquanto essa tarefa não for cumprida, o passado nos apresentará -a despeito de todos os controles -impregnado do sentido dessa tarefa”. (Van den Berg, 2003 p. 71).

É importante compartilhar que, para que o trabalho terapêutico ganhe amplitude após a revelação, é importante que o contexto atual e todos resíduos do passado presentes no campo sejam considerados.” O campo é um todo, no qual as partes estão em relacionamento imediato e reagem umas as outras, e nenhuma deixa de ser influenciada pelo o que acontece em outro lugar do campo “(Yontef, 1998 p. 17).

Ao tomar conhecimento da violência, o terapeuta precisa cuidar para não se perder no sofrimento do cliente, nem ficar fixado no o rótulo de abuso sexual e deixar estar presente na relação com a pessoa. Isto porque, a profundidade do tema tende a mobilizar feridas antigas do cliente e gestalten abertas do terapeuta. Este processo é doloroso, pode trazer a tona muito confusão e uma mistura de sentimentos em relação ao acontecimento em si e a todos aqueles envolvidos no episódio.

Observei durante todos os processos terapêuticos que acompanhei que o passado da criança não resolvido continuava tendo peso no presente do adulto. Minha hipótese é que a criança ressentida prende o adulto em fantasias catastróficas, o isolando do mundo. O adulto permanece com medo do desamparo e é comum que inicie o processo terapêutico tendo algumas ressalvas em relação a capacidade do de terapeuta acolher e suportar sua dor .

É essencial para o terapeuta estabelecer uma relação sólida e profunda com este tipo de cliente. É importante lembrar que essa pessoa passou na infância/adolescência por uma forte vivência de ausência de respeito e por experiências de abuso de confiança e poder. De acordo com Perls (1977:66), “O passado é passado. E, entretanto, no agora, no nosso ser, carregamos muito do passado conosco. Mas carregamos o passado somente na medida em que trazemos situações inacabadas”.

O interesse e a disponibilidade genuína do terapeuta por seu cliente fazem com que ele aja de forma diferente daquele que violentou e daqueles que não estiveram disponíveis para atender as necessidades ou acolher seu sofrimento na infância/ adolescência. Uma das funções da terapia com adultos vítimas de violência sexual na infância/adolescência é tornar possível o encontro do adulto com sua criança interior e possibilitar que a pessoa experiencie sentimentos e sensações da criança no aqui e agora da terapia (Cukier, 1998).

É comum que uma rejeição ou desapontamento no presente toque a ferida antiga de uma maneira devastadora e que de forma não consciente o cliente perpetue os pais abusivos, continue a se submetendo às vontades de outros ou se coloque em situações onde será desrespeitado ou injustiçado. É útil para psicoterapia trazer a tona e aprofundar esse tema ajudando o cliente a perceber o impacto das experiências infantis na suas dificuldades atuais (Cukier, 1998).

É importante que o terapeuta ajude o cliente a se dar conta de como ele se fixa no passado e reage no aqui e agora ao abandono de sua infância. No entanto, o trabalho para o fechamento de situações inacabadas é lento e contínuo. Pode ser fortalecido através da relação terapêutica e da re -significação de cenas infantis. O uso de recursos lúdicos e criativos pode ajudar a atualizar a forma da pessoa fazer contato no mundo. Assim, o cliente pode gradativamente se responsabilizar mais por sua vida e por suas escolhas no presente.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Hoje apesar do número de casos ser abundante em todas as classes socioeconômicas, o material bibliográfico em nossa abordagem sobre esse tema é bastante restrito, quase inexistente. Proponho neste mini -curso a exploração e o debate através de uma visão biopsicossocial de alguns temas fundamentais para o tratamento dessa demanda específica como: a importância da qualidade do vínculo entre o cliente e o terapeuta; a influência do campo; as perturbações da fronteira de contato; a responsabilidade além do agressor; a relação da vítima com o agressor; a função do segredo; o impacto da revelação no sistema familiar e as seqüelas emocionais, físicas e comportamentais identificadas na vida adulta; etc.

Neste trabalho pretendo compartilhar ferramentas teóricas e metodológicas que ajudem ao gestalt-terapeuta a encorajar seus clientes a tomarem consciência de suas histórias, a fazerem contato com suas antigas feridas, integrá-las ao presente e assim se darem conta de que é possível encontrar um novo caminho em direção uma maior fluidez em suas vidas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRAUN, S. A violência sexual infantil na família: do silêncio à revelação do segredo. Porto Alegre: AGE, 2002.

GABEL, M. Crianças vítimas de abuso sexual. São Paulo: Summus, 1997.

HYCNER, R. De pessoa a pessoa: psicoterapia dialógica. São Paulo: Summus, 1995.

HELLINER, B. Constelações familiares: o reconhecimento das ordens do amor. Cultrix, São Paulo, 1996.

MILLER, A. O drama da criança bem dotada. São Paulo: Summus, 1997.

PERLS, F. S. A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia. São Paulo: Zahar, 1981

YONTEF, G. M. Processo, diálogo e awareness. São Paulo: Summus 1998.

CUKIER, R. Sobrevivência emocional. São Paulo: Ágora, 1998.

VAN DEN BERG, J.H. O paciente psiquiátrico: Esboço de uma psicopatologia fenomenológica. São Paulo: Livro Pleno, 2003.