MESA REDONDA 02 – PARTE II: UMA LEITURA GESTÁLTICA QUANTO À EXPERIENCIA EMOCIONAL DE MÃES DE CRIANÇAS COM MFLP NO MOMENTO DO INGRESSO ESCOLAR: ARTIGO DE REVISÃO
Autor: Juliane Cristine Koerber Reis
RESUMO
Este artigo revisa sob a ótica de conceitos da Gestalt-terapia, o relato de uma pesquisa qualitativa, realizada no Núcleo de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Lábio Palatal (NPRLLP) vinculado à Secretaria de Saúde da cidade de Joinville (SC), enfocando como mães vivenciaram o processo de início da atividade escolar de seus filhos e sua influência no tratamento multidisciplinar. As percepções e conclusões do autor são discutidas em conformidade com a compreensão gestáltica, principalmente a partir de considerações sobre a teoria de campo de Kurt Lewin (conforme a leitura de Ribeiro, 1999), em relação ao conceito de contato, o ciclo, suas funções e disfunções (resistência). Ao final, pretende-se discutir como a Gestalt-terapia pode realizar sua função social, de amplificação da awareness sobre a questão e delineamento de estratégias.
Palavras chave: inclusão; má formação lábio-palatal;
Gestalt-terapia; contato.
INTRODUÇÃO
A inclusão de pessoas com necessidades educacionais especiais tem sido tema objeto de discussões e articulações sociais e políticas no Brasil, especialmente desde a assinatura de acordos internacionais como a Declaração de Salamanca, em 1994. Desde então muito já foi realizado e atualmente esta parcela significativa da população (estima-se 10% do total) tem oportunidades mais justas e igualitárias quando se pensa na sua condição de alunado, permitindo o convívio, a aprendizagem mútua e o crescimento dos grupos sociais como um todo, por meio do contato com a diversidade e a valorização das diferenças. Assim, ganha importância a realização de estudos que procuram identificar os fenômenos, “estrutura reunindo dialeticamente, na intencionalidade, o homem e o mundo, a significação e a existência” (Rezende, p. 41 in Forghieri et al, 1984) envolvidos no processo de inclusão escolar.
Há significativas mudanças acontecendo na educação brasileira, referidas à educação inclusiva. No processo deste movimento, regulamentado em nosso país pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, alunos com diferenciadas características pessoais e de aprendizagem, passaram a conviver no ambiente das escolas regulares sempre que possível e recomendável, incrementando as vivências pessoais de todos, criando condições para que se tornem pessoas mais sensíveis, criativas, respeitadoras, enfim, mais completas. Desta forma o campo fenomenológico, “totalidade dos fatos co-existentes, em dado momento, e concebido em termos de mútua interdependência, cuja significação depende da percepção dessa correlação entre sujeito e objeto” (Ribeiro, 1999, p. 57), está sofrendo importantes transformações, afetando o comportamento das pessoas envolvidas, e interferindo na relação grupo-indivíduo.
DESENVOLVIMENTO
Segundo a bibliografia pesquisada pelo autor, “a criança portadora de má formação lábio palatal (MFLP) possui um defeito físico congênito que repercute na estigmatização devido à idolatria da perfeição e da beleza física impostos pela sociedade” (Miguel, 2007, p. 9), além de apresentar, desde o nascimento, problemas e complicações médico-odontológicas associadas à má-formação (incluindo a alimentação, audição e desordens de fala). A deficiência torna-se, ao longo dos anos, um elemento constitutivo dos aspectos estruturais da pessoa como um todo e se reflete na sua organização egóica, em suas formas de estabelecer relações intrapsíquicas e interpessoais e nos recursos adaptativos (ajustamentos criativos) e/ou mal-adaptativos (resistências ou disfunções de contato) adotados, o que é profundamente relevante quando se trata da deficiência na infância, pois a percepção da condição é concomitante ao desenvolvimento psicológico, afetivo e cognitivo. Sua influência na formação do indivíduo depende de inúmeros fatores e o espaço vital: totalidade dos fatos ou eventos possíveis, coexistentes e mutuamente interdependentes, os quais determinam o comportamento de um indivíduo num dado momento, sendo eles partes constituintes da realidade e não apenas partes ou um conjunto aditivo, podendo ser expressos matematicamente” (Ribeiro, 1999, p. 60), apresenta-se muito variável entre os indivíduos com esta condição.
Da mesma forma as famílias são afetadas, pois o desejo de constituí-las traz, implicitamente, expectativas quanto aos filhos que serão gerados na união do casal, representações estas anteriores à própria existência da dupla homem-mulher. (Reis, 2003, p. 46) O nascimento de um bebê com MFLP (fenômeno inesperado que se inscreve no campo existencial da dupla, e com quem interage, é afetado e influencia sua dinâmica) deflagra novos desafios, cuja elaboração dependerá de diversos fatores, como: aceitação ou não da gestação (em caso de rejeição da gravidez, mesmo que a má-formação seja desconhecida, podem surgir sentimentos de culpa); tipo de personalidade e reações de cada um; qualidade do relacionamento do casal, anterior ao casamento; grau de preconceito em relação às pessoas com deficiência; nível de expectativa; posição do filho na prole; tipo de relacionamento com a família estendida (podem surgir comentários, acusações e até rompimentos).(Regen et al, 2001). A nova dinâmica gerada entre os fenômenos (ou zonas) do campo formado pela dupla mãe-pai origina tensões e a necessidade de mudanças em relação às expectativas prévias.
Como parte deste campo está a criança com uma deficiência física, que é diferente das demais, sente-se diferente e assim o será numa organização social feita para seres inteiros, “normais” e configurada para a realização total do ser. A anomalia, condição constitucional, é um estado incompleto quando comparado à normalidade. A condição acarreta o desenvolvimento de variadas repercussões psicológicas, desde ajustamentos criativos (Ribeiro, 2006, 64-8) saudáveis até soluções muito disfuncionais, transitando da inclusão social desejada à polaridade de exclusão e isolamento da sociedade, com todas as conseqüências sociais, na saúde, educação, trabalho, economia, entre outras.
Dentro do panorama da educação inclusiva, o autor da pesquisa em estudo, oferece-nos um recorte bastante perspicaz e sensível de uma questão pouco referida, e que muito interfere no processo da escolarização em geral: a vivência emocional das mães de crianças com uma necessidade especial (MFLP) no momento em que seus filhos entram em contato com o ambiente escolar. Até então, de um modo geral, a criança estava ao abrigo da família e do centro de reabilitação. Era um campo freqüentemente vivenciado com segurança e proteção, um todo continente e afetivo. Com a chegada da idade escolar, ou pela necessidade de trabalho dos pais, surge uma nova demanda, que interfere neste todo, aparentemente homeostático. A parte “criança com MFLP” adquire novos significados no todo representado pela escolarização: “uma parte num todo é algo bem diferente desta mesma parte isolada ou incluída num outro todo” (Ginger e Ginger, 1995, p. 14). Segundo o autor, “O processo de inclusão da criança portadora de má formação lábio palatal deve se estabelecer no momento do diagnóstico, que normalmente se dá ao nascimento. Esta inclusão deve ter um sentido amplo, com a atenção também voltada ao meio em que ela está inserida. A família, a escola e os profissionais que fazem parte deste eixo de desenvolvimento devem ser orientados no sentido de tomarem decisões que garantam o êxito do tratamento em todos os seus aspectos, estético, fisiológico e psicológico” (Miguel, 2007, p. 18).
Destaca deste modo, a importância da reabilitação e do trabalho multidisciplinar, entendido como “a máxima exploração das potencialidades de cada ciência, da diversidade e da criatividade” (Miguel, 2007, p. 18), como um fundo que pode favorecer a estruturação de uma figura -criança com MFLP -resiliente (Lima e cols, 2007) e capaz de se incluir, tanto na escola, primeira etapa de amplificação do seu processo de socialização, como nos desafios sociais subseqüentes (fundo). Também a família poderá ser beneficiada no processo, ao sentir-se apoiada e orientada nas suas dúvidas e angústias.
Entretanto, às vezes, no momento em que o ambiente social se amplia, é o preconceito diante do impacto visual causado pela desfiguração da face, da fala anasalada, e outras diferenças, que pode se revelar figura dominante no campo atualizado. Percebe-se a supervalorização do olhar e do ver como função de contato (Amaral, 1996 apud Miguel, 2007, p. 26), em detrimento das demais (audição, olfato, gustação e movimento), limitando sobremaneira as possibilidades de interação e focando a interação principalmente na falta (ou deficiência). Desta forma, a MFLP repercute na estigmatização da pessoa, reforçada pela idolatria da perfeição e beleza física vivida atualmente.
O autor, ao realizar um levantamento bibliográfico sobre o tema, refere que crianças com MFLP têm ao menos duas vezes mais riscos de problemas comportamentais comparados com crianças sem este tipo de problema. Pais parecem ter uma menor expectativa em relação ao desenvolvimento intelectual e de habilidades sociais de seus filhos; podem optar pelo ocultamento destes, revelando com isto o caráter de fuga destas famílias em relação ao meio que os cerca, constrangidos em mostrar seu filho (a), com medo das possíveis reações do público à aparência de sua criança. As crianças criam, então, um isolamento voluntário e iniciam uma luta íntima tentando vencer o constrangimento de ter que se apresentar entre outras pessoas, comprometendo também o desenvolvimento de outras habilidades, como a fala (Figueira, 1997; Dülger-Hâfner,1997 apud Miguel, 2007, p. 27). Fuga (ou evitação) são mecanismos de defesa do espectro da deflexão, utilizados para evitar o contato com o elemento causador da dor ou sofrimento psíquico, e segundo Perls (1977, p. 79), “a fobia da dor é a inimiga do desenvolvimento – a relutância em sofrer um mínimo que seja”. A energia é desviada e a retração não pode acontecer, havendo necessidade constante de criar nova estratégia de evitação (Ginger e Ginger, 1995, p. 138). Em geral, relaciona-se a introjetos dos quais a pessoa não está aware (Ribeiro, 2006, p. 74-7), neste caso representados pelo próprio preconceito familiar em relação à deficiência, que pode ser expresso em excessiva superproteção.
De um modo geral, são crianças que, desde o nascimento são constantemente manipuladas e submetidas a intervenções mais ou menos invasivas, em que seu espaço vital é freqüentemente invadido. Dois aspectos da imagem corporal estão usualmente incluídos: o que uma pessoa considera ser uma imagem ideal ou desejada e o que ela vê como seu corpo real. Foi notada nas crianças deficientes uma tendência para achar que as não-deficientes são perfeitas e existe o perigo de que a sua imagem corporal ideal seja totalmente diferente do modo como se vêem a si mesmas. A sociedade tem seus padrões estéticos bem definidos, os introjeta (Ginger e Ginger, 1987, p. 134) e os reproduz nas relações. Afirma o autor que “o momento em que este paciente inicia sua vida escolar se configura como a quebra da barreira de proteção do lar contra qualquer tipo de discriminação”, e que “estes pais devem ser apoiados pela equipe multidisciplinar e orientados no sentido de que, a forma como os pais enfrentam esta dificuldade, modela o comportamento do filho(a) que estará mais ou menos apto a enfrentar a curiosidade dos outros”. (Miguel, 2007, p. 77-8)
Realizou,
então, entrevistas com sete mães de crianças atendidas
no NPRLLP no máximo, matriculadas há dois anos em escola regular
de ensino do município ou que estavam na expectativa de matrícula
no próximo período letivo escolar. A participação
do marido na reabilitação muitas vezes se deu apenas na forma
de apoio em casa; às vezes todo o encargo está na responsabilidade
das mães, noutras o marido opina, mas não participa ativamente
nas consultas e reuniões, e outro, conforme o autor, “se envolve
nas decisões, acompanha de perto
o tratamento e a evolução da criança. Ele conhece a professora
e a escola, procurando saber o que acontece com seu filho”. (Miguel, 2007,
p. 103)
O contexto existencial das mães abordadas pela pesquisa é caracterizado por idade jovem (faixa dos 20 anos, à exceção de uma com 32 anos); escolaridade variável (de ensino fundamental incompleto a ensino superior completo, com predomínio de ensino médio completo); renda familiar também variável (de zero a quinze salários mínimos); casadas (à exceção de uma, solteira, cujo companheiro não aceitou a deficiência da criança); com freqüência regular aos tratamentos embora com pouca participação do cônjuge; os filhos encontram-se entre três e seis anos; a maioria tem outros filhos além desta criança; e, à exceção de uma, não havia casos anteriores na família. São descritas, pelo autor, como “solícita, mas muito nervosa e dependente do centro”, “muito segura”, “muito segura e superprotetora”, “negando o defeito e superprotegendo”, “demonstrando calma e esclarecimento”, “extremamente dominadora”, “extremamente depressiva” (Miguel, 2007, p. 63-7). Identifica variadas reações psicológicas ao problema em questão, e evidencia a importância da equipe estar apta a perceber qual a necessidade de suporte psicológico às mães e ter estratégias de intervenção adequadas.
O roteiro das entrevistas foi elaborado com perguntas abertas que tiveram a função de organizar a fala das mães, mas não de limitá-las. Daí surgiram vários temas relacionados à escolarização e trabalho da instituição. (Miguel, 2007, p. 69-71)
Quanto às reações e expectativas com a saída de casa e o início escolar da criança com má formação lábio palatal, o autor encontrou nos relatos das mães a preocupação (pré-ocupação ou ansiedade, “tensão entre o agora e o depois”, Perls, 1977, p. 73) com a exclusão dos seus (suas) filho (as), em como seria encarada a má formação e o problema da fala na criança, com temor de que suas necessidades não viessem a ser supridas, sugerindo uma expectativa diminuída das mães em relação ao desempenho escolar. Este comportamento pode gerar isolamento social da criança (e da família) no período pré-escolar e sentimentos de insegurança e de hostilidade diante do meio. O contato com o mundo além do ambiente familiar mostra ser vivenciado com muita ansiedade e expectativa de rejeição e insucesso.
Provavelmente há distorções perceptuais nesta relação, influenciadas pelos próprios sentimentos de rejeição (e medo desta), dificuldade de aceitação, auto-estima comprometida pela incapacidade em gerar um filho perfeito, quebrando a imagem projetada do filho ideal. Enrijecem-se as fronteiras de contato (Ginger e Ginger, 1987, p.127) com a fantasia de que, agindo assim estarão protegidos, pais e prole. O ciclo de contato não se completa, não há retração nem a possibilidade de outros investimentos de energia. Introjeção, projeção e deflexão (Ginger e Ginger, 1987, p. 134-8) entrelaçam-se, afastando a díade mãe-filho do convívio saudável com a escola e reforçando o estigma, além de criar um mundo externo frio e cruel, diante do que a confluência pode vir a ser o recurso (resistência) utilizado. A awareness está comprometida e pode haver uma paralisação do processo. Há necessidade de considerar a existência (ou não) de auto-suporte, assim como a qualidade deste, para lidar com as questões que se colocam, assim como o perfil de personalidade anterior destas mães, se era mais ou menos dependente do apoio ambiental.
O autor afirma que “a permanência do filho em casa, sem a iniciação escolar, isolando o filho da convivência social criou a falsa expectativa de proteção contra qualquer tipo de discriminação”, o que reforça a necessidade do apoio da equipe multidisciplinar para o enfrentamento desta nova realidade. (Miguel, 2007, p. 78). Relata sua percepção de um auto-suporte fragilizado, dependente do meio, ao que sugere a possibilidade de resolução de conflitos pessoais e familiares com a atuação do NPRLLP: “importância do acompanhamento e desenvolvimento escolar por centros especializados, no sentido de detectar problemas e fornecer o apoio necessário não somente à família e à criança, mas também à escola”. O trabalho integrado traz efeitos percebidos pelas mães e a evolução das crianças após o ingresso nas atividades escolares cria expectativa e satisfação da família em relação a esta nova fase, principalmente na comunicação e desenvolvimento de habilidades, o que também é percebido pelos profissionais do NPRLLP.
Houve dificuldades em relação à escolha da escola e o início escolar. O adiamento da escola (que poderia ser um mecanismo de ajustamento se estivesse em função de fazer uma escolha mais adequada) foi percebido nas falas como uma forma de contornar (evitar?) o problema do medo do relacionamento com os pares. E o mecanismo de confluência como forma de lidar com a fragilidade percebida (e projetada) na criança, diante do novo meio, na fantasia de fortalecê-la diante dos desafios que, então, se colocam. A projeção idealizada do ambiente desejado parece também ter sido um dos mecanismos utilizados, tanto nos critérios de escolha quanto na justificação da evitação de uma escolha.
O acompanhamento diário na escola foi associado ao medo do preconceito com a MFLP e não uma preocupação com a situação pedagógica e cognitiva escolar do filho (a), de acordo com a percepção do autor. A resistência em permitir uma vinculação espontânea e saudável da criança em seu novo ambiente também poderia encontrar-se relacionada à introjetos sociais destas mães tanto quanto ao seu papel de maternagem (Outeiral et al, 1991), já abalado pela geração de uma prole imperfeita, como aos valores e expectativas da sociedade com que convivem.
As dificuldades de relacionamento de seus filhos (as) portadores de MFLP e o preconceito vivenciado em várias situações do cotidiano também foram identificados pelo autor nas suas entrevistas. Referenda o autor que os pais das crianças portadoras de MFLP se mostraram mais tolerantes a comportamentos socialmente inapropriados (Tobiasen, Hilbert, 1984 apud Miguel, 2007, p. 87); também a dificuldade na fala faz com que a criança se isole, não participando das atividades normais para sua idade. As mães procuram se adaptar a nova realidade e o NPRLLP lhes dá suporte psicológico a esta difícil fase, o que identifica como este trabalho e o papel desempenhado por elas, genitoras, no tratamento são de grande importância. O campo experiencial sofrerá grandes variações qualitativas dependendo dos elementos que o compõem, aqui-e-agora, assim como das dinâmicas (forças vetoriais) que se estabelecem no seu interior. A família que estiver fora do apoio dos serviços de reabilitação de um centro poderá perceber o problema da má-formação de forma muito diversa do que aquelas participantes dos programas e, provavelmente, com recursos psicológicos menos aprimorados para um enfrentamento saudável da questão. O fenômeno reveste-se das características que nele são percebidas, na relação que com ele se estabelece; a clarificação das partes e a awareness sobre as dinâmicas criadas com o fundo permitem uma ação mais eficaz e com menos desperdício de energia.
“O terapeuta precisa, também, conhecer as implicações que uma deficiência congênita, física ou mental, trará para o desenvolvimento e ajustamento de uma criança que, já ao nascer, apresenta uma condição orgânica diferente e que, portanto, vai constituir-se como pessoa a partir de uma estrutura orgânica peculiar”, o que lhe exige “a compreensão das limitações funcionais impostas pelas deficiências e a compreensão das condições afetivo-emocionais que as acompanham” (Amiralian, 2000, p. 35).
Frente às dificuldades de relacionamento e o preconceito em relação a outras crianças, as mães procuram ajuda pela comunicabilidade, ficando ao seu lado, procurando socorrê-lo e explicando suas deficiências a outras crianças com que seu filho procura interagir. O autor afirma que “ela se tornou a porta voz da criança, traduzindo a sua linguagem alterada pela deficiência anatômica provocada pela fissura lábio palatal” (Miguel, 2007, p. 90). Pode ser uma reação diante da awareness de uma necessidade identificada pela mãe no filho (ajustamento criativo); porém, sua persistência além do necessário, ou a ausência de estímulo ao desenvolvimento de novos recursos comunicativos, retoma, defensivamente, o mecanismo confluente (Ginger e Ginger, 1987, p. 133) como forma de enfrentar a dificuldade no contato, podendo mais uma vez restringir as possibilidades de crescimento da criança, também complicadas por freqüentes períodos de afastamento para intervenções cirúrgicas. Segundo o autor “a criança inicia uma luta íntima sentindo a necessidade de aprender e ao mesmo tempo vencer o constrangimento de se apresentar entre as outras crianças”. Ciclos de contato da mãe e do filho são sobrepostos, confundidos e misturados como se todos fossem um só, mesclando e distorcendo as necessidades de cada um. Resulta a frustração da satisfação.
As dificuldades de relacionamento e o preconceito em relação aos adultos e o meio em que vivem refletiram-se no círculo de amizades dos pais. A fala, muitas vezes anasalada, é motivo de risos e deboches da criança por parte dos adultos. A idade da criança e sua fala denunciam que ela não se desenvolveu, possui limitações, o que é motivo de brincadeiras não aceitas pelas mães. (Miguel, 2007) Papéis e clichês são priorizados em detrimento da experiência do encontro genuíno entre as pessoas, desprovido de preconceitos e capaz de vivenciar a plena aceitação do outro. O espaço pessoal encontra-se comprimido, invadido e a família cede lugar às exigências externas.
A fala revelou-se a principal preocupação independente da classificação da fissura. “O não ser entendido, não se fazer entender despertou, por parte das mães, grandes preocupações com a interação social no convívio com os adultos”, e “procurar escolas muitas vezes longe de casa, onde está uma professora conhecida ou a facilidade de participar do dia a dia do seu filho”, (Miguel, 2007, p. 95) configuraram-se como um fator de segurança a mais refere o autor. O meio psicológico inscreve-se no meio social mais amplo e com ele realiza trocas nas suas fronteiras. Apenas um indivíduo (e uma família) resiliente poderá colocar-se de forma ajustada e saudável, mantendo sua capacidade para ajustamentos criativos, e se relacionando com o ambiente externo sem, no entanto sucumbir a ele e às suas pressões. Diante disto, o autor observa que as reações das mães em relação ao meio onde vive a criança portadora de MFLP procuraram principalmente proteger a criança. As mães relataram a preocupação com a socialização da criança e nesta preocupação permaneceram mais ao lado de seus filhos, procurando protegê-los. Aqui se inscreve também o impacto da situação do filho fora do lar que algumas mães resolvem acompanhando-o neste momento, mas, ao mesmo tempo demonstrando problemas em relação a uma desvinculação psicologicamente saudável. No seu extremo, revelam-se esforços no sentido de tentar controlar uma situação até então desconhecida e que desperta intensos temores, podendo levar a condutas inadaptativas, como o isolamento social. Outras conseguem retornar ao trabalho procurando adequar o horário do trabalho com o horário da escola da criança
Manifestam sentimento de agradecimento aos profissionais em relação à comunicação de melhora de seus filhos e todo o auxílio no processo de início escolar. Diz o autor que “é importante ressaltar o aspecto multidisciplinar que deve envolver todo o processo de reabilitação desse paciente. A interação entre as várias especialidades deve procurar, dentro de um planejamento muitas vezes em longo prazo, buscar a reabilitação do paciente portador de má formação lábio palatal e também dar suporte para as pessoas próximas envolvidas com o tratamento. (Miguel, 2007, p. 109)
CONCLUSÕES
O início escolar pode ser considerado como um momento de grande relevância para a inclusão social de qualquer criança, suscitando sentimentos, emoções e comportamentos diversos, do ajustamento criativo a disfunções de contato e, em especial, na criança com necessidades educacionais especiais e sua família. Oscilam entre superproteção, frustração, desconfiança, negação, aceitação condicional, revolta, culpa, isolamento social, medo, evitação, contato graduado, ajustamento saudável, o que depende do campo psicológico, pessoal e social em que o conjunto faz contato, suas características e dinâmica.
A informação dos pais de uma criança com MFLP sobre a patologia e o plano de tratamento estabelecido em conjunto com a equipe multidisciplinar, elemento importante na promoção do bem-estar pessoal, grupal e coletivo, é desenvolvida por meio do apoio, intervenções e orientações, incluindo a escola da criança.
Fenômenos como o impacto do nascimento, ambivalência materna, dinâmica familiar, isolamento social, suporte ambiental; não atratividade facial e capacidade de comunicação da criança; insegurança com o meio, preconceito, escola acessível, interagem segundo leis configuradas em cada totalidade relacional, dependendo do conjunto aqui-e-agora, das figuras-fundo que se estabelecem, das relações entre todo-parte de cada sistema. A homeostase pré-escolar é abalada pela iminência da escolarização.
A escolha da escola torna-se um processo desvinculado do aspecto didático pedagógico da instituição e o apoio da equipe à escola, suporte prestado pelo NPRLLP, revela-se como grande fator de intermediação entre a família e a instituição de ensino, com efeitos profundos na função familiar,e incrementando o auto-suporte. A falta deste apoio pode favorecer o desenvolvimento de disfunções de contato, sendo que a deflexão, a projeção e a confluência mostram-se predominantes no grupo estudado.
Apesar da vivência do início escolar no relato das mães ser muito individual, está inserida no todo do tratamento do paciente portador de MFLP, que deve privilegiar sua relação com a saúde geral, com o ambiente e com sua qualidade de vida, tanto em nível individual como coletivo. Cabe aos profissionais da equipe multidisciplinar, onde também o psicólogo está inserido, perceber a totalidade desta demanda, uma visão holística, em que a integração da pluralidade do grupo profissional reflete a dinâmica da diversidade em que a própria criança está sendo incluída. A inclusão escolar, vista desta forma, implica em uma profunda revisão de condutas onde não somente o paciente-aluno deve deixar de ser visto como centro das atenções, como se flexibiliza o movimento figura-fundo da educação, criando tantas configurações quantos fenômenos educacionais ocorrerem.
Segundo o autor, é papel dos profissionais da área da saúde produzir conhecimento e não simplesmente incorporá-lo e consumi-lo. A intersecção entre conhecimento e educação poderá proporcionar a transformação necessária contribuindo para a formação global do ser humano, criando condições para desenvolver habilidades e conhecimento, despertando competências e proporcionando conscientização para uma melhor qualidade de vida para todos. A Psicologia, aqui identificada pela Gestalt-terapia, aparece como disciplina possível de interagir multidisciplinarmente, neste estudo com a Odontologia, produzindo um novo conhecimento acerca da MFLP e suas repercussões e delineando estratégias holísticas de intervenção, tanto curativas quanto preventivas. Estudos como este indicam a necessidade de aprofundamento das questões psicológicas que envolvem a pessoa com necessidades educacionais especiais para promover o sucesso da inclusão escolar.
“Ouvir e aceitar o outro não é um dom; é antes uma arte que se aprende e desenvolve.” (Reis, 2003)
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