MESA REDONDA 02 – PARTE I: UM OLHAR GESTÁLTICO SOBRE A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO ESCOLAR NA CONTEMPORANEIDADE

Autor: Mabel Cortinhas Pereira

RESUMO

Desde o início do século passado, a Psicologia ocupa-se do que se passa no campo escolar: psicólogos debruçam-se sobre as escolas e seus alunos, buscando analisar, compreender e estudar os fenômenos presentes na educação formal. Porém, após uma breve observação de seu objeto de estudo e intervenção, vemos que ele não é constante ao longo do tempo, sofrendo transformações juntamente com a identidade do psicólogo escolar. Atualmente ainda percebemos um campo heterogêneo, com práticas diversas e uma teoria pouco delineada. O presente artigo tem como objetivo contribuir para esta discussão, trazendo os pressupostos teóricos da Gestalt-terapia para embasar uma prática contemporânea em Psicologia Escolar. Acreditamos ser de grande importância a sistematização e um registro desta prática, não apenas para o enriquecimento teórico dos próprios psicólogos escolares, mas também para o reconhecimento deste campo de atuação pelos profissionais das demais áreas da Psicologia e da Educação.


Palavras-chave: Gestalt-terapia, Psicologia escolar, Educação

 

ABSTRACT

Since the beginning of the last century, Psychology deals with what is happening in the schools: psychologists focuses on schools and their students, seeking to analyze, understand and study the phenomena in the formal education. However, after a brief observation of its object of study and intervention, we see that it is not constant over time, undergoing changes along with the identity of the school psychologist. Currently still realize a heterogeneous field, with several practices and a theory just outlined. The present article aims to contribute to this discussion, bringing the theoretical assumptions of Gestalt-therapy for a contemporary practice in school psychology. Believe to be of great importance to systematic and a record of this practice, not only to enrich the theoretical school psychologists themselves, but also for the recognition of this field of work by professionals from other areas of Psychology and Education.


Key words: Gestalt-therapy, School Psychology, Education

 

A Psicologia Escolar/Educacional, assim como muitas outras áreas da Psicologia, nasce imersa no projeto científico da modernidade. Caracteriza-se, como tal, por uma visão marcadamente individualista, que focaliza o aluno e suas características pessoais como principal objeto de estudo e intervenção (ANDRADA, 2005; LIMA, 2005). A partir da crença na existência de um padrão de aprendizagem e desenvolvimento considerado normal, adequado e esperado, os problemas escolares são compreendidos como dificuldades de ajustamento e adaptação dos alunos ao sistema de ensino, aproximando a Psicologia Escolar do pensamento da vertente clínica da Psicologia da época (ANDALÓ, 1984).

Fica designada ao psicólogo escolar a função de reconhecer e tratar estes alunos desajustados, que fracassam na tarefa de aprender. Os testes e avaliações psicométricas tornam-se suas principais ferramentas de trabalho, com objetivo de medir as capacidades e habilidades individuais de cada aluno e identificar aqueles que não apresentam o rendimento esperado. Uma vez encontradas, as deficiências são trabalhadas fora do contexto da sala de aula – em uma sala de atendimento alheia ao restante da instituição escolar – com objetivo de promover a integração destas crianças aos padrões de comportamento desejados pela escola, e devolvê-las à sala de aula bem ajustadas (ANDALÓ, 1984; PATTO, 1984).

Andrada (2005) aponta que, ao separar os aptos dos não aptos para a aprendizagem, a Psicologia Escolar aproxima-se do pensamento moderno, excludente e linear:

Utilizando-se de testes ou laudos, retirando o aluno da sala para readaptá-lo, para corrigi-lo, todo o fracasso é colocado nos ombros do aluno, que isolado na sua deficiência deve alcançar sucesso por vontade própria, sendo seu destino para sempre selado. É a ordem da moderna ciência na psicologia: excluir para adaptar às categorias universais (ANDRADA, op.cit., p.197)

Nesta perspectiva, onde a responsabilidade pelos insucessos do processo educativo recai exclusivamente sobre os educandos, a escola e suas práticas não são questionadas, caracterizando segundo Andaló (1984), uma visão conservadora e adaptativa da Psicologia Escolar:

O que nos parece estar subjacente, mas nem sempre claro, nessa perspectiva, é a idéia de que a escola como instituição é tomada como adequada, como cumprindo os objetivos ideais a que se propõe.

Permanecem inquestionados, desta forma, o anacronismo dos currículos, dos programas, das técnicas de ensino-aprendizagem empregadas, bem como a adequação da relação professor-aluno estabelecida. (ANDALÓ, op.cit., p.43)

No fim da década de setenta e início dos anos oitenta, diversas críticas a esse modelo de atuação e a essa concepção de Psicologia surgem e ganham força, constituindo um período que, segundo Patto (2004), tornou-se decisivo para a redefinição dos objetivos da Psicologia Escolar. Os estudos realizados nesta época trazem à tona o papel domesticador e excludente da escola e alertam para uma contribuição da Psicologia à manutenção desta ordem social (PATTO, 2004). Meira (2003) também aponta, como importante conseqüência destas reflexões, o destaque da necessidade de rompimento com este modelo clínico de atuação do psicólogo escolar – centrado nos alunos considerados problemáticos – e o conseqüente redirecionamento do olhar e das análises da Psicologia Escolar para os processos educacionais como um todo.

Inspirados em concepções histórico-dialéticas, diversos autores começam a desenvolver uma perspectiva que considera a escola inserida em um contexto social e político, e o ensino-aprendizagem como um processo relacional, recíproco, em que estão implicados tanto os sujeitos da aprendizagem, quanto seus condicionantes sociais. O aluno passa a ser visto como sujeito histórico e sua conduta no espaço escolar é compreendida a partir das relações que se estabelecem neste espaço. “Os ‘problemas de aprendizagem’ passaram a ser vistos como um fenômeno complexo, constituído socialmente, cuja análise deve abarcar os aspectos históricos, econômicos, políticos e sociais” (LIMA, 2005, p.21).

Nesta perspectiva, o foco do trabalho dos psicólogos escolares deixa de estar apenas no aluno e em suas características individuais, ampliando-se para toda a instituição escolar. Andaló (1984) propõe uma atuação deste profissional como agente de mudanças dentro da escola, funcionando como “um elemento catalisador de reflexões, um conscientizador dos papéis representados pelos vários grupos que compõem a instituição” (ANDALÓ, op. cit., p.46)

Desde a década de noventa, até os dias atuais, observamos esforços voltados para a construção de propostas que traduzam em ações as tendências apontadas pela década anterior. Neste contexto, surgem tentativas de delinear a identidade do psicólogo escolar, ainda em construção. Maluf (2003), afirma que “a Psicologia Escolar no Brasil está entrando em uma nova fase, na qual se multiplicam ações afirmativas, que dão respostas a vigorosas e pertinentes críticas formuladas, sobretudo na década de 1980” (MALUF, op. cit. p.137). Entretanto, para a autora, a nova Psicologia Escolar não se apresenta sob um paradigma unificado, podendo ser reconhecida, mais pelas expressões comuns presentes nas ações dos profissionais, do que pela existência de um discurso único.

Maluf (2003) também reconhece que, apesar destas iniciativas, ainda predominam, na formação e atuação do psicólogo escolar no Brasil, um ensino e uma prática voltados para uma atuação clínica/terapêutica, excludente e individualista. Da mesma maneira, Souza (2000, apud. Meira, 2003) pondera que, embora a Psicologia Escolar tenha ampliado seu olhar e incorporado a análise dos determinantes sócio-históricos, a presença de concepções críticas sobre a queixa escolar ainda perde espaço para leituras psicologizantes do processo de escolarização.

Andrada (2005) cita alguns fatores para este fenômeno, que denomina como “crise” da Psicologia Escolar. Em primeiro lugar, ainda é grande a demanda das escolas para que o psicólogo trabalhe com o aluno “desviante”, “não adaptado”. Além disso, predomina em grande parte dos profissionais de educação uma visão pautada no paradigma clínico de normalidade X anormalidade, onde se espera do aluno um padrão de comportamento que conduz ao sucesso escolar. Por fim, carecemos de uma prática elaborada para o trabalho do psicólogo no contexto escolar, construída a partir de teorias que reflitam sobre a realidade da escola no Brasil.

Compartilhamos da perspectiva crítica histórico-dialética, que compreende o homem como um ser constituído nas relações sociais por ele estabelecidas, em um momento histórico específico. Acreditamos que a abordagem gestáltica fornece elementos importantes para a fundamentação de uma prática em Psicologia Escolar coerente com as críticas elaboradas por uma visão histórico-dialética.

Assim como Maluf (2003), entendemos que o trabalho de construção da identidade do psicólogo escolar não significa necessariamente a busca de uma teoria única, uma verdade universal fechada a qualquer possibilidade de questionamento. Um campo complexo como a realidade educacional brasileira requer olhares igualmente plurais, “capazes de iluminar a reflexão e a ação numa concepção processual de conhecimento científico que permite enfrentar com maior probabilidade de êxito os problemas educacionais que se nos apresentam” (MALUF, op. cit., p.139).

Alguns autores da vertente histórico-dialética vêm buscando delimitar o papel do psicólogo escolar na realidade brasileira contemporânea. Ragonesi (1997, apud. LIMA, 2005), por exemplo, aponta para a necessidade da utilização, por parte dos psicólogos escolares, dos conhecimentos psicológicos na elaboração das propostas de trabalho das escolas, visando à melhoria das práticas pedagógicas e compreendendo a humanização como o objetivo primeiro da educação. Esta autora também pontua a necessidade de “situar mais adequadamente os processos psicológicos no interior do processo pedagógico, garantindo com isso a especificidade de nossa atuação” (RAGONESI, op. cit., p.22). Para isso, reforça a necessidade de superação da dicotomia entre as atividades de ensino – que seriam de responsabilidade do professor – e o comportamento dos alunos – que por sua vez seriam, supostamente, de responsabilidade do psicólogo.

Tanamachi & Meira (2003) compreendem como objeto de trabalho do psicólogo escolar, com base nesta vertente teórica, o encontro entre os sujeitos e a educação. Para Meira (2003), o olhar deste profissional não pode ser limitado, nem ao sujeito psicológico, nem ao contexto educacional, mas deve estar voltado para “a compreensão das relações entre os processos psicológicos e os pedagógicos, ou em outras palavras, para a compreensão do encontro entre a subjetividade humana e o processo educacional” (MEIRA, op.cit. p.55). A finalidade da Psicologia Escolar, segundo estes autores, situa-se no compromisso com a tarefa de construção de um processo educacional qualitativamente superior, contribuindo para que a escola cumpra seu papel de socialização do saber e de formação crítica:

O psicólogo escolar não é um ‘resolvedor’ de problemas; não é um mero divulgador de teorias e conhecimentos psicológicos; nem um profissional onipotente capaz de fazer tudo o que a escola precisa. Ele é um profissional que, em seus limites e especificidade, pode ajudar a escola e remover os obstáculos que se interpõem entre os sujeitos e o conhecimento, favorecendo o processo de humanização e desenvolvimento do pensamento crítico (MEIRA, 2003, p.58, grifos da autora).

Da mesma maneira, Machado (2004) refere-se à realização de uma prática psicológica voltada para a intervenção nas relações. Nesta abordagem atenta-se para o campo de forças atuantes na problemática escolar, apontando-se para a idéia de que os problemas escolares são produzidos em uma história coletiva.

Propondo uma prática que envolva todos os segmentos do sistema educacional como participantes do processo de ensino-aprendizagem, Andrada (2005) aponta a necessidade de se perceber a escola e os problemas ali presentes sob outro paradigma: não mais o da causalidade linear que permeou o pensamento moderno, mas o da causalidade circular presente no pensamento sistêmico. Para a autora, a teoria sistêmica, juntamente com uma visão histórico-cultural, apresenta-se como diretriz para a construção de uma nova prática em Psicologia Escolar. Neste novo paradigma, já não é possível eleger um único modelo de explicação para os problemas encontrados na escola, pois se deve considerar as múltiplas versões de um mesmo fenômeno. Além disso, este profissional “não mais possui hipóteses verdadeiras sobre os problemas do aluno, tampouco se faz neutro na escola e nas relações que ali estabelece, pois suas simples presença já modifica o sistema observado” (ANDRADA, op.cit., p.198). Nesta ótica, cabe ao psicólogo escolar criar um espaço para escutar as demandas da instituição e formas de reflexão com todos os sujeitos que dela fazem parte.

Em todos estes exemplos de atuação do psicólogo escolar, percebemos a presença de uma concepção de ser humano construída histórica e socialmente. Esta necessidade de se perceber e explicar os fenômenos de forma mais ampla e contextualizada não está presente apenas na Psicologia Escolar. Na contemporaneidade, o modelo de ciência moderna como um todo – com seu ideal de racionalidade, objetividade e neutralidade do conhecimento, seu método de decomposição dos fenômenos em relações simples de causalidade e a elaboração de leis gerais – vem sendo questionado (SOAR FILHO, 1998). Atualmente, diversos autores trazem uma nova perspectiva de ser humano e sociedade como unidades complexas e multidimensionais (MORIN, 2000). Na psicologia, as diretrizes pós- modernas reformulam seus temas e práticas, enfatizando o singular, o idiossincrático e o contextualmente situado:

Na perspectiva pós-moderna, o foco é na evolução dos contextos e uma preocupação em pôr em perspectiva vai substituir a fascinação com a história pessoal, o como as mudanças podem ocorrer vai predominar sobre o porquê das significações descobertas. Nesta perspectiva, nós somos o produto do contexto de nossas conversações e dos significados que fazemos derivar socialmente disto. (ROBINE, 2005, p.10)

A abordagem gestáltica, apesar de ter seus arcabouços teóricos definidos na metade do século passado, apresenta uma visão ousada e revolucionária que se afasta do modelo reducionista e linear de investigação científica, tal como derivado da ciência moderna vigente na época de sua concepção. Vários autores consideram-na, sob diversos ângulos, uma abordagem congruente as novas diretrizes do paradigma científico contemporâneo (LIMA, 2005; ROBINE, 2005; NUNES, 2008a).

Algumas características marcam a Gestalt-terapia como uma abordagem fundamentalmente diferente daquelas existentes até então. Dentre elas, a visão holística, que permite compreendermos o homem, o mundo e qualquer outro fenômeno a ser estudado, enquanto totalidades formadas por partes em complexa interação. Nunes (2008a) aponta que nesta interação “cada parte é superada ao ser afetada e transformada pelas outras ‘partes’ com que se relaciona. Da mesma forma, o próprio ‘todo’ supera a soma das partes que o compõem, transcendendo-as” (NUNES, op.cit., p.187).

Além disso, a perspectiva organísmica de Kurt Goldstein traz para a abordagem gestáltica a compreensão do organismo como um “sistema aberto, em permanente contato e troca com meio exterior” (LIMA, 2005, p.198). Desloca, desta forma, o posto de investigação da experiência psicológica, do interior de um indivíduo encapsulado para a fronteira entre o organismo e o ambiente. Contrariando a noção reducionista da ciência moderna – que isola os organismos para estudá-los da forma mais neutra possível – os fundadores da abordagem gestáltica compreendem que o contato (ou seja, as trocas entre o organismo e o ambiente no qual está inserido) é a realidade simples e primeira, que deve ser o ponto de partida para qualquer estudo sobre o tema:

Em toda e qualquer investigação biológica, psicológica ou sociológica, temos de partir da interação entre o organismo e seu ambiente. Não tem sentido falar, por exemplo, de um animal que respira sem considerar o ar e o oxigênio como parte da definição deste, ou falar de comer sem mencionar a comida (...) Denominemos este interagir entre organismo e ambiente em qualquer função o ‘campo organismo/ambiente’, e lembremo-nos de que qualquer que seja a maneira pela qual teorizamos sobre impulsos, instintos, etc., estamos nos referindo sempre a este campo interacional e não a um animal isolado. (PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1951/1997, p.42).

O próprio conceito psicológico de self, comumente associado a um “si” individual e intrasubjetivo, é reformulado pelos autores da Gestalt-terapia. Afastando-se de uma compreensão topológica e estrutural, o self gestáltico passa a ser entendido processualmente, como “fronteira de contato em funcionamento” (PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1951/1997, p.85).

Perls e Goodman introduziram uma mudança de rumo fundamental, que os coloca no coração daquilo que mais tarde será chamado pós- modernidade: eles deslocaram o self, o descentralizaram e o temporalizaram. Na abordagem moderna, solipsista, o si individual era reconhecido como a única realidade. Em contraste, Goodman, cuja influência levou a teoria nessa direção, colocou adiante a idéia de que self é contato. O que chamamos de self só existe quando e onde há contato. Não mais o self existiria anteriormente e se revelaria, se manifestaria, se expressaria no contato, mas sim é contato. (ROBINE, 2005, p.7, grifos do autor)

Perceber o papel fundamental que o campo interacional organismo/meio exerce na constituição do ser humano é compreendê-lo como ser-no-mundo. Isto é, ele não existe a priori, não possui uma essência interior imutável. Na abordagem gestáltica, cada organismo é uma totalidade indivisível e única, resultado da interação entre as diversas partes que o constituem, e da articulação destas com os demais componentes do meio no qual está inserido. Para além de suas características isoladas, compreendemos o homem como uma configuração total, com elementos que se articulam e influenciam mutuamente e que adquirem sentido a partir desta interação. Aquilo que ele é e faz deixa de ser resultado da realidade interna da pessoa e passa a ser estudado a partir de uma complexa teia de forças inter-relacionadas. Nunes (2008a) aponta que, com esta perspectiva, a Gestalt¬terapia transcende um olhar dicotômico e fragmentado e constrói uma visão de homem relacional e integradora:

Gestalticamente, o homem é a um só tempo individual e social, livre e determinado, biológico e cultural, singular e dotado de regularidades no coletivo. Com isso, devolve ao homem e aos problemas do mundo a complexidade que lhes é inerente, substituindo o vício reducionista de dicotomização do real pela valorização do global. (NUNES, op.cit. p.187 grifos da autora)

A abordagem gestáltica utiliza-se de uma perspectiva de campo para compreender o que se passa com o homem e com o mundo. O campo é uma totalidade, composta de partes em relacionamento imediato, que reagem umas às outras e são influenciadas pelo que acontece em qualquer outro lugar do campo. Como definido por Yontef (1993/1998), uma pessoa e seu meio são de-um-campo, o campo ambiental/organísmico. Não se trata, portanto, de um simples relacionamento entre um indivíduo independente e o ambiente externo. “O indivíduo é definido, num dado momento, apenas pelo campo do qual faz parte, e o campo só pode ser definido pela experiência ou do ponto de vista de alguém” (YONTEF, op.cit, p.190).

Trazendo esta perspectiva para o trabalho em Psicologia Escolar, percebemos ser impossível compreender o que acontece na escola limitando nosso olhar para o aluno OU para o professor OU para a família, como possíveis causas do problema. Percebendo a escola como um campo, tudo o que nela acontece passa a ser multideterminado e articulado com as demais partes que a compõe. Assim, nos aproximamos da visão das teorias críticas da Psicologia Escolar, que percebem a realidade educacional como uma determinação de múltiplos fatores (LIMA, 2005, ANDRADA, 2005, MEIRA, 2005). Desta maneira, o aluno necessita ser percebido como parte deste campo e aquilo que ele apresenta (seus déficits de atenção, suas dificuldades de aprendizagem, suas indisciplinas, etc.) só adquire sentido na relação com a realidade escolar que o cerca.

Como visto anteriormente, o ser humano gestáltico é compreendido como uma totalidade e todas as suas manifestações (sejam elas comportamentais, emocionais, orgânicas, mentais, etc.) representam-no em sua relação total com o mundo. Por exemplo, quando nos deparamos com uma criança com dificuldade de aprendizagem – demanda tão comum para os psicólogos clínicos e escolares – entendemos que esta não é uma questão restrita às funções cognitivas do aluno, mas a compreendemos como uma manifestação do seu ser global no campo (AGUIAR, 2005). Como uma unidade auto-regulada, sabemos que esta criança busca o melhor equilíbrio possível a cada momento, e o sintoma que ela apresenta é uma forma criativa de assinalar suas dificuldades de interação com o meio.

Para a Gestalt-terapia, o fracasso escolar,o déficit de atenção ou a hiperatividade não têm significados em si mesmos. Eles são sintomas que se destacam como figuras diante de um fundo que lhe serve de base, recebendo dele sua origem e sentido, em um processo fluido e dinâmico. Apesar de um aluno apresentar características e comportamentos semelhantes a outro, não reduzimos nossa compreensão de seu problema a uma categoria diagnóstica universal. As regularidades que ele possui em comum com outros alunos se encontram em uma intrínseca relação com seus demais aspectos e com o campo, formando uma configuração única e indivisível. Segundo Nunes (2008b) uma criança que não atinge os objetivos de aprendizagem da turma, por exemplo, é alguém que não está aprendendo nesse momento, nessa escola, nesse campo, nessas relações:

A Gestalt-terapia não coincide com esta lógica, que concebe o indivíduo como interioridade isolada e com o paradigma reducionista e causal que determina que problemas de aprendizagem são ‘problemas internos’ como se houvesse uma fronteira rígida entre um interior e um exterior absolutos. Ao contrário, a Gestalt-terapia nos ensina que uma pessoa é sempre em relação e num-campo, o que torna a fronteira entre o ‘dentro’ e o ‘fora’ bastante tênue. (NUNES, op.cit, p.3)

A ênfase no aspecto relacional da atividade educacional também está presente na vertente crítica da Psicologia Escolar. Meira (2005) aponta para a existência de uma clara correspondência entre a qualidade das práticas pedagógicas, e os diferentes tipos de relações sociais que se estabelecem cotidianamente na escola, propondo uma intervenção do psicólogo escolar com base nesta afirmativa:

O discurso crítico sobre a escola precisa vir acompanhado do questionamento dos ‘problemas de aprendizagem’, compreendendo-os no conjunto de relações institucionais, históricas, psicológicas e pedagógicas que constituem o dia-a-dia escolar. Desta forma, a intervenção do psicólogo deve possibilitar o ‘pensar junto’ com as crianças e professores, bem como as práticas que estigmatizam e excluem. (MEIRA, 2005, p.24)

Assim como Perls, Hefferline & Goodman (1951/1997), buscamos uma compreensão fenomenológica acerca das formas disfuncionais de existência, tirando o foco de investigação da busca por possíveis causas destas manifestações. Ao contrário, buscamos descrever e compreender como as disfunções se apresentam, e de que forma estas contribuem para um funcionamento não saudável e insatisfatório do indivíduo como uma totalidade integrada. Indagamos ‘para que’ um aluno precisa se comportar ou se relacionar de determinada forma dentro do contexto escolar a fim de manter seu equilíbrio, e que elementos deste campo contribuem para isso.

Nos diversos campos do qual faz parte, existem elementos que impedem ou dificultam sua possibilidade de construir novas formas de satisfazer suas necessidades e a escola, sem dúvida, é um destes campos. “A pergunta é: que tipo de exigência, expectativa, restrição, recurso, ela [a criança] encontra nesse contexto para que precise agir desta forma ou usar deste artifício para se auto-regular?”

(AGUIAR, 2005, p.55). A manifestação sintomática dos alunos – que motiva a queixa escolar demandada ao psicólogo – é compreendida, segundo esta lógica, como uma tentativa de equilíbrio, um movimento de saúde, podendo ser denunciadora de um ambiente escolar que necessita ser problematizado.

Da mesma forma, autores da vertente histórico-dialética da Psicologia Escolar partem das relações sociais para chegar à ‘biografia’ do indivíduo, entendendo que “o pensamento e a ação humana não se reduzem a determinantes do psiquismo individual assim como o indivíduo não se reduz à descrição das características de indivíduos em geral”. (TANAMACHI & MEIRA, 2005, p.23). A queixa escolar encaminhada ao psicólogo é, segundo esta lógica, entendida como “aparência”, ou seja, aquilo que aparece no nível mais imediato, necessitando ser compreendida por meio de uma investigação com todos os envolvidos: escola, professores, familiares, amigos e a criança. Assim como a Gestalt-terapia, esta proposta se afasta da tentativa de encontrar explicações para a queixa escolar, buscando nos diversos campos as ações, os acontecimentos, as concepções que a produziram.

Não se trata de desfocar a criança, para culpabilizar a família e/ou a escola. Mudamos a pergunta, em vez de nos dirigirmos a pessoas ou situações isoladas – o que tem efeito paralisador – buscamos as circunstâncias, porque estas podem ser transformadas (...) A avaliação aqui adquire caráter investigativo e não classificatório, do que concluímos que a base de nossa avaliação é o resgate histórico das situações concretas que permitiram a existência da ‘queixa’. (TANAMACHI & MEIRA, op.cit., p.32)

Partindo desta compreensão da queixa escolar, o psicólogo que atua na instituição deixa então o papel de técnico e passa a trabalhar como elemento mediador de um processo pedagógico qualitativamente superior, avaliando juntamente com os educadores, alunos, familiares e demais funcionários, os conteúdos, métodos de ensino e escolhas didáticas que são feitas pela escola. (TANAMACHI & MEIRA, 2005) Transformam-se, assim, os “pacientes” com os quais a Psicologia Escolar trabalhava em sujeitos ativos, participantes fundamentais desse processo de transformação, e não mais objetos passivos de ações sobre as quais não tem qualquer controle.
O fazer psicológico escolar crítico tem como objetivo realizar, juntamente com os atores que compõem o cenário pedagógico e da escola, mudanças que gerem a possibilidade de que a escola cumpra seu papel social de possibilitar a todos que por ela passarem a apreensão dos saberes construídos pela humanidade ao longo do tempo. (LIMA, 2005, p.17)

Como um sistema dinâmico, um campo se reconfigura a partir de mudanças em alguns de seus elementos: podemos alterar uma parte e esta modificação terá efeito nas demais. Na escola, da mesma maneira, um trabalho com os professores, coordenadores ou familiares pode trazer resultados visíveis nos alunos e nas queixas elaboradas sobre eles. Por outro lado, trabalhar com os alunos, fornecendo um espaço de reflexão e responsabilização diante daquilo que eles apontam como críticas à escola e à família, pode ter resultado direto nas relações que estes estabelecem com os professores, familiares e com o próprio estudo.

Entender o aluno como um ser cuja vivência singular é construída e re-construída a partir das relações que estabelece com o campo, em um processo ininterrupto de busca de auto-regulação e crescimento, nos permite uma visão mais ampla de suas possibilidades de existência. Podemos propor que as pessoas presentes na vida do aluno revejam as relações que com ele estabelecem, buscando se colocar de forma mais verdadeira e presente. Acreditamos nas potencialidades e na capacidade de transformação do ser humano e sabemos que relações mais facilitadoras possibilitam a emergência de formas de estar no mundo mais saudáveis e satisfatórias.


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