Mesa 3 - O JOGO DE AREIA NA ABORDAGEM GESTÁLTICA: UMA PROPOSTA DE EXPERIMENTO. (TL)

Lika Queiroz

O Jogo de Areia é um recurso terapêutico onde os clientes criam cenas ou representações abstratas em uma caixa rasa, cheia até a metade de areia, utilizando água, miniaturas e materiais diversos, como palitos de picolé, retalhos, conchas, pedras, contas etc. - tudo o que possa reproduzir de forma real ou simbólica o seu momento existencial. Utilizando uma linguagem pré-verbal, imagética, o Jogo de Areia pode acessar níveis muito profundos do cliente, conteúdos regressivos, memórias primordiais.
O Jogo de Areia tem como precursor as pinturas na areia usadas nos rituais de cura pelos índios Navaho nos Estados Unidos. Em 1929, inspirada no livro “Floor games”, de H.G.Wells, a psiquiatra freudiana inglesa Margaret Lowenfeld cria o “World technique” e, em 1935, publica o livro “World Techniques: Play in Childhood”. Em 1956, uma analista junguiana suíça, Dora M. Kalff, vai a Londres estudar com Lowenfeld e, retornando à Suíça, desenvolve seu método de terapia na caixa de areia, inicialmente aplicado com crianças e depois, sob a influência de Erich Neumann, estendido aos adultos. Membro do Certified group Therapists, Dora Kalff fez formação em Gestalt-terapia com Erv e Miriam Polster, e tanto ela como outros terapeutas do Jogo de Areia, como Alan Penny, Bárbara Labovitz e Anna Goodwin comentam que esta técnica complementa e tem interfaces com “...muitas abordagens diferentes. Gestalt, visualização, psicodrama, trabalhos corporais, reestruturação cognitiva, arte terapia....”(Labovitz & Goodwin, 2000, p.6)
Retangular, medindo 72 X 50 X 7,5cm, com o seu lado interno revestido de plástico ou metal, com fundo azul claro, a caixa de areia é uma gestalt que se torna figura, podendo ser apreendida pelo campo visual do cliente. Este campo delimitado representa um espaço livre e protegido, com um efeito focalizador e contenedor, para que ele possa manifestar, com segurança, o seu vivido. Toda a construção da realidade no mundo tridimensional em que vivemos se dá através das formas geométricas. Como na forma geométrica se tem o princípio primário da manifestação da matéria, a caixa de areia funciona como um campo facilitador da expressão do universo interno da pessoa ou grupo que está sendo trabalhado. Além disso, no retângulo, tem-se a diferença entre a latitude e longitude, duas dimensões maiores e duas menores, cantos, tornando a espacialização mais rica e possibilitando a idéia de início e fim, desdobramento, caminho.
Outro aspecto contenedor para a expressão do cliente são as miniaturas e materiais disponíveis,
“Enquanto se está livre para criar aquilo que se deseja, o número de miniaturas, embora extenso, é ainda finito, de modo que a fantasia do paciente é mantida em limites seguros”. (Weinrib, 1993, p.37)
São utilizadas miniaturas, as mais diversificadas possíveis, de figuras humanas de raças, nacionalidades, faixas etárias, profissões, posições e expressões, figuras mitológicas e religiosas. personagens históricos, da mídia, de histórias, super-heróis, animais, objetos em geral, habitações, mobílias, plantas, meios de transportes, acidentes geográficos, natureza, tecnologia. Por serem imagens tridimensionais, as miniaturas são uma linguagem em si, onde o processo projetivo é muito mais potente por serem uma representação mais concreta e viva da realidade do cliente. Ao olhar para as estantes de miniaturas, as imagens o chamam. Naquele universo de possibilidades ele sempre encontrará algo simbólico ou não que expresse o que ele está sentindo, vivendo naquele momento. Cada elemento é uma gestalt em si, um aspecto do cliente que está ali manifesto, e, por sua vez, uma parte do todo maior que é a cena.
No momento em que o cliente começa a construir algo na caixa de areia, do fundo indiferenciado, do vazio fértil, algo começa a se diferenciar, uma figura começa a se formar e, à medida que ele vai selecionando as miniaturas e criando uma cena, a figura hierarquizada vai se tornando mais nítida É um recurso não verbal, onde tanto o cliente pode estar discriminando, escolhendo objetos e alienando outros para se expressar - um modo de self funcionando como ego - e momentos onde ele se sente chamado e vai pegando os objetos em uma entrega espontânea, irrefletida, em um modo de self funcionando como id, dando-se conta do que acontece só ao olhar para a cena já formada.
Quando a cena está montada, aquela gestalt muitas vezes o confronta com o não dito, o não visto, situações inacabadas, polaridades a serem integradas, fronteiras a serem delimitadas ou ampliadas. O terapeuta não interfere neste processo, pois o que foi trazido é aquilo que o cliente tem suporte interno para manifestar.
A linguagem das miniaturas, por ser concreta, é acessível a qualquer cliente, não há nenhuma contra-indicação para a utilização do recurso do Jogo de Areia. As miniaturas e a areia remetem ao lúdico, à criança. Este aspecto lúdico propicia uma abertura para a dimensão sensório afetiva, criativa, espontânea.
Além das miniaturas, há a areia em si: a areia é neutra, tem uma textura própria, é solta, maleável, trazendo a possibilidade do movimento, da moldagem, do desmanchar. Muitas vezes, o cliente nem usa as miniaturas, representa o seu vivido utilizando a areia ou areia e água.
No campo, a figura é o cliente, a caixa de areia e as miniaturas, enquanto o terapeuta é fundo, ficando silenciosamente a uma pequena distância, observando e acompanhando como o cliente lida com as miniaturas, com a caixa, dando sustentação ao cliente com sua presença confirmadora. O processo se dá sozinho na própria relação do cliente com a caixa de areia e as miniaturas. O que importa é como aqueles objetos e a areia estão organizados em uma totalidade significativa para o cliente, e o que cada coisa e a cena em si representa para ele. O cliente pode fazer todo o processo em silêncio e só relatar ao final do trabalho, ou comentar algo enquanto vai montando. Nesse caso o terapeuta, quando necessário, pode intervir convidando o cliente a criar diálogos entre os elementos e personagens na cena, pedir que o cliente vá dando vida à cena, enquanto a vai relatando, acrescentar elementos que vão surgindo ao longo do trabalho. Podemos dizer que a caixa de areia funciona como um objeto transacional para o cliente, substituindo, em termos, o terapeuta.
Embora, para os junguianos, “ a imagem na areia será desfeita pelo analista depois da sessão”(Ammann, 2002, p. 24), eu peço que o cliente desmanche a cena e guarde o material utilizado de volta na estante. A existência é em si impermanência, um eterno vir a ser. Ao construir uma cena, o cliente está abrindo uma gestalt onde algo já se moveu, onde a situação e a cena já foram resignificadas, mesmo que tal gestalt ainda não tenha sido fechada como temática ou situação existencial.. Desmanchar o cenário é simbólicamente estar experienciando a possibilidade da destruição daquela gestalt, apropriando-se do que se moveu, não ficando fixado em padrões antigos. A imagem que fica é do campo indiferenciado da areia alisada, a partir do qual um novo começo pode ser escolhido. Mesmo quando na sessão seguinte o cliente quer dar continuidade ao assunto trabalhando com o Jogo de Areia, sua representação da situação já traz elementos novos, ele já não é mais o mesmo.
O Jogo de Areia é um recurso muito poderoso, onde a cena dialoga com o cliente e no qual, em uma dança sutil, ele é tocado. Como diz Buber, “fazer é criar, inventar é encontrar. Dar forma é descobrir. Ao realizar eu descubro.” (Buber, 1979, p.12)

Referências Bibliográficas:
- AMMANN, Ruth. A Terapia do Jogo de Areia. São Paulo: Paulus, 2002.
- BOIK, Barbara Labovitz & GOODWIN, Anna. Sandplay Therapy: A Step-by-Step Manual for Psychotherapists of Diverse Orientation. New York: W.W. Norton, 2000.
- BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
- WEINRIB, Estelle. Imagens do Self: o processo terapêutico na caixa-de-areia. São Paulo: Summus, 1993.