ANOREXIA SOB A ÓTICA DA GESTALT TERAPIA
Angela Schillings
A anorexia nervosa (como é descrita pela psicopatologia)
é um transtorno do comportamento alimentar onde existem restrições
dietéticas auto-impostas e padrões extravagantes de alimentação.
A perda de peso significativa é progressiva e, além de ser induzida,
é mantida pelo pavor injustificável de se tornar obeso instantaneamente
(Silva, 2005). É possível que a anorexia sempre tenha existido,
porém, há cem anos aproximadamente, é que foi descrita
de forma mais específica na Europa, inicialmente na França e Inglaterra,
excluindo-se, então, causas orgânicas e identificando-a como uma
doença psicológica.
É considerada uma doença eminentemente feminina, pois 90 a 95%
dos pacientes são adolescentes do sexo feminino e adultas jovens, pelo
menos quando do início de seu desenvolvimento(Ballone,2001). Para falar
sobre este tema tomei como pano de fundo os atendimentos que desenvolvo com
pacientes anoréticas há alguns anos e literatura disponível
sobre o tema, principalmente as falas de Dominique, contidas no livro “Anorexia
– diário de uma adolescente” de Dominique Brand (2003), uma
adolescente brasileira, de classe média, que em muito se assemelha às
pacientes em processo de atendimento, mesmo que, em alguns casos, ocorram diferenças
de idade.
Sabemos que, na nossa sociedade atual, uma das principais exigências feitas
à mulher é de que ela tenha um corpo que seja próximo às
expectativas de um ideal forjado na exigüidade. Exigüidade de curvas,
de formas, de necessidades. Ideal este, advindo de mulheres que estão
nas passarelas, na mídia, nas telas e que invadem o imaginário
feminino como moscas. Isto faz com que, cada vez mais o corpo “possível”,
aquele que se tem, que possui sua própria beleza, de acordo com o que
se é, é desvalorizado se não está adequado às
características desse ideal. O Brasil é o segundo país
do mundo na categoria cirurgias plásticas por ano, sendo que mais da
metade delas são feitas por motivos estéticos desnecessários,
e em sua ampla maioria, realizadas em mulheres (Silva, 2005).
Vivemos numa sociedade que prioriza os ditames de uma ordem próxima a
um nazismo corporal. Controlar o corpo é a palavra de ordem. Vivemos
a época da corpolatria, onde o culto ao corpo tornou-se uma obsessão
para muitos homens e para a maioria das mulheres. Qualquer vestígio de
centímetros (talvez seja melhor colocar, milímetros) a mais no
volume corporal, torna-se alvo de horror e de ataques ao corpo para que se conquiste
uma aparência, dita, perfeita. Como as mulheres podem aprender a amar
seus corpos se o que lhe são oferecidos para admiração
e imitação são jovens de sua própria idade (e algumas
vezes mais novas) que não são respeitadas pela sua integridade
enquanto ser humano, mas pelo seu corpo magro que faz sucesso como celebridade?
“Curioso: todo mundo quer ser magro. As revistas só falam nisso.
Livros e livros a respeito. As modelos são todas magérrimas. As
atrizes idem. Uma enxurrada de informação cai sobre a gente falando
o quanto é bom emagrecer. Antes isso não me preocupava. Agora
nem sei por que quero ser magra também. Talvez o mundo dos magros seja
melhor do que o dos obesos”(Brand, 2003:83). E, muitas vezes, as mães,
que poderiam ser um referencial para a percepção saudável
de corpo feminino para suas filhas, também mostram, na maior parte das
vezes, uma insatisfação imensa com seu próprio corpo, que
não é mais jovem e mostram seu pavor em envelhecer.
A mulher não pode envelhecer; é como se devesse ser a eterna jovem
para conquistar o mundo. Talvez a ilusão da eterna juventude habite nossos
sonhos, pois isto seria como transcender a morte, única certeza que temos
na vida. “No entanto, o sonho da eterna juventude passou a ser vendido,
para as mulheres, não mais como um ato de transcendência maior
da condição humana, mas sim como uma necessidade ou um dever feminino
de se manter socialmente aceita e viva (...) com uma única finalidade:
esculpir um corpo idealizado que, quase sempre, encontram-se desconectado das
suas reais necessidades” (Silva, 2005: 38-9).
O corpo é evidência; ele expressa o que acontece na nossa relação
enquanto seres humanos no mundo, de forma explícita. Na anorexia, fica
claro, através do corpo, o que a mulher faz à sua totalidade enquanto
pessoa. O saudável no ser humano, é buscar satisfazer necessidades
que aparecem, ou seja, a formação e destruição de
gestalten, portanto, manter-se com fome, quando existem alimentos disponíveis,
é o mesmo que submeter-se a uma condição de vida interrompida
e com violência. A fome faz com que as mulheres maltratem seus corpos
e sabe-se que a violência, uma vez iniciada, aumenta progressivamente.
É uma vida de renúncia ao próprio corpo e às emoções.
Assim o transtorno alimentar denominado anorexia encontra um campo fértil
de desenvolvimento, como se o meio justificasse o fim. Dito de outra forma:
um corpo violentado que se justifica para um meio que violenta.
Na anorexia, o início do processo no que tange à alimentação
não difere dos de outras pessoas que fazem dietas ou reeducação
alimentar para diminuição de peso. Porém existe um momento
em que a diferenciação se revela. Nas outras pessoas a dieta termina
quando é atingido o peso desejado, havendo um retorno aos hábitos
alimentares normais. Na anorexia, não há limite aonde se chegar
com relação ao peso, pois mesmo já tendo ultrapassado o
objetivo inicial, a pessoa define um novo peso ideal e ao alcançá-lo
redefine um novo peso e, assim, sucessivamente. O que ocorre é que com
esta perspectiva, a visão que a pessoa tem de si e do seu corpo esta
distorcida e ela não olha para si na sua totalidade, se vê em partes:
abdome, coxas, nádegas. E para fazer diminuir aquilo que já está
diminuído mas não é visto, a pessoa com anorexia tenta
cada vez mais e mais acabar com a fome. “Não entendo: estou comendo
tão pouco e, quando olho para o espelho, me vejo cada vez mais gorda.
Não é possível! Minha cabeça está confusa.
Eu já deveria ter emagrecido! Hoje deu vontade de comer besteiras. Comecei
a chorar. Não posso sentir isso, mas a fome foi muita, quase me descontrolei
(...) O que deu em mim? Não tenho o direito de sentir fome, ou até
mesmo de desejar comer algo” (Brand, 2003:84).
A palavra anorexia, quando definida como redução ou perda de apetite,
não condiz com a ocorrência da própria anorexia, enquanto
disfunção. A pessoa que possui anorexia, na realidade não
perde ou diminui seu apetite; ela sente fome, embora negue este fato aos demais.
A fome existe (e este é um fato da fisiologia primária humana)
e ser capaz de resistir a ela faz parte das regras impostas que precisam ser
cumpridas pela pessoa que sofre de anorexia.“Quanto mais magra eu ficar
mais feliz eu vou ser. É impressionante como uma coisa é ligada
à outra e eu nunca tinha percebido. Antes eu achava que felicidade era
comer um bom prato quando estivesse com fome, hoje vejo que era pura piração.
A felicidade é estar com fome e conseguir não comer”(Brand,
2003:60). Na anorexia isto é tão intenso que a pessoa acaba pensando
somente em comida e em não comer, de forma obsessiva. A alimentação
transforma-se em uma idéia fixa, não a deixando concentrar-se
em outra coisa. É um quadro obsessivo. “Sei que não poderia
sentir fome, mas é difícil. Controlo tudo que posso, mas sempre
amei comer, e agora percebi o mal que isso faz; devo lutar com todas as forças
e não me deixar vencer” (Brand, 2003:110). Como a fome não
pode ser contida, apesar dos esforços desesperados que a pessoa faz com
sua subalimentação e a ansiedade é cada vez maior, ela
passa a fazer atividades físicas que, ao mesmo tempo em que auxiliam
a diminuir o peso, têm o objetivo de fazer diminuir a ansiedade causada
por sua obsessão e pela fome. Porém, essa atitude, ao invés
de diminuir a ansiedade, a avolumam, fazendo com que a pessoa intensifique as
atividades físicas e cada vez mais esforços são necessários
para ultrapassar o desempenho anterior (repetição do processo
que ocorre na alimentação, às avessas). Nisto reside o
caráter compulsivo da anorexia. “Já aumentei as horas de
malhação. Não importa mais se estou cansada ou com preguiça,
desço e me esforço ao máximo. Só assim vou conseguir
queimar tudo que preciso (...) cada caloria vale muito! Elas são minhas
inimigas. Como posso ser feliz e bonita com as calorias dentro do meu corpo?”(Brand,
2003:78). E com isso, o corpo não pode passar ileso às conseqüências
da obsessão e da compulsão. O corpo emite, de forma espontânea,
sinais de alerta, quando o quadro está instalado: tonturas, sensação
de frio, taquicardia, enjôos. Normalmente estas sensações
físicas são ignoradas ou significadas como alheias à subnutrição
e até vistas como aliadas no processo de vencer a fome. “Estou
um pouco melhor. Não sei o que tive ontem. Achei que fosse morrer. O
bom dessa história é que passei o dia sem comer e não engordei.
Até que vale a pena ficar um pouco doente” (Brand, 2003:133). Muitas
vezes, a anorexia acaba vitimizando seus portadores. As complicações
mais graves e freqüentes são: edemas pela carência de proteínas
e quando localizado no pericárdio e na cavidade abdominal representam
grave risco de vida; perturbações cardíacas e respiratórias,
que geram funcionamento cardíaco insuficiente, levando a crise cardíaca
súbita e mortal; amenorréia prolongada gerando infertilidade permanente;
insuficiência renal crônica; osteoporose; diabetes tipo1, entre
outras. Os estudos mostram que de 4 a 30% das pacientes com anorexia vão
a óbito, comparadas com indivíduos da mesma faixa etária
e sexo, sem anorexia.
As famílias das pessoas que sofrem de anorexia demoram muito para notar
o estado da doença que já foi instalada. “Saímos
para viajar com os amigos da mamy (...) só tem peixe e eu não
como carne de espécie alguma. Eu me dei bem. Não comi quase nada.
Com a desculpa de não estar com fome e de detestar carne, passei o dia
todo sem comer e ninguém reparou”(Brand,2003:83). Normalmente,
no início, a perda de peso é incentivada e existe, por parte da
família, orgulho pela perseverança da filha em alcançar
um objetivo. Como a pessoa conhece detalhadamente todas as quantidades calóricas
de cada alimento, muitas vezes orienta a família sobre o valor calórico
dos alimentos que ingerem e isso pode criar na família uma falsa tranqüilidade
por julgarem que ela tem um posicionamento saudável, com amplos conhecimentos
perante a alimentação pessoal e familiar. Existe também
o fato de que a pessoa com anorexia evita comer na frente da família
e quando o faz, demora um tempo enorme para mastigar e engolir, podendo dar
a impressão que comeu a mesma quantidade que os outros, pelo tempo que
permanece na mesa. O mais comum é que as famílias só constatem
que algo grave esta acontecendo quando ocorre alguma situação
em que fisicamente é necessário procurar um profissional., por
exemplo, um desmaio e a constatação de que é necessário
uma internação para receber alimentação parenteral.
Estudos feitos por vários pesquisadores (Gerlinghoff e Backmund, 1997)
mostram que pessoas com anorexia advêm de famílias mais convencionais,
sem fatos extraordinários ou dramáticos na história familiar.
Muitas pacientes, por mim atendidas, relataram haverem sido cuidadas na família,
porém não sentiam haver amor, principalmente da mãe, ou
cuidadora, no contato com elas, apenas um desempenho de papel materno. No decorrer
da terapia, muitas delas relataram que começaram a perceber que o mal-estar,
quando tinham essa percepção de que não eram amadas, ficava
instalado no corpo, principalmente peito e abdome, e que a sensação
corporal aumentava quando pensavam em tudo que a família fazia por elas
e que eram injustas por terem essa sensação de não serem
amadas (processo de culpabilização tão comum em crianças
e muitos adolescentes) e como a sensação de desconforto corporal
continuava ali, muitas vezes fantasiavam que o corpo poderia desaparecer para
que elas ficassem bem novamente. O que fazer para não sentir as sensações
desconfortáveis que aparecem no corpo? Talvez abandoná-lo! Na
busca de literatura concernente à anorexia, apenas alguns artigos sob
a ótica da Gestalt terapia foi encontrado, sendo também, nessa
abordagem, bastante escasso o material falando sobre transtornos alimentares,
em suas várias formas. Na bibliografia consultada, as terapias mais citadas
como promissoras no trabalho com pacientes anoréticas, são as
terapias de base cognitivo-comportamental (Buckroid,2000; Silva,2003; Azevedo
e Lan,1997; Busse,2004; Cordás,1998;). Isto se dá em quase toda
literatura sobre anorexia, seja ela técnico-científica ou direcionada
ao público leigo. Talvez isto ocorra porque, como essa forma de terapia
busca mudanças rápidas de comportamento e modificações
dos padrões compulsivos, alguns resultados são visíveis
à curto prazo.
Na realidade, no momento em que exista uma situação de emergência,
a necessidade de uma intervenção que trabalhe rapidamente, evitando
que um risco grave de doença física de instalação
temporária, se transforme em instalação definitiva, pode
se fazer necessário. Essas intervenções, de caráter
momentâneo e circunstancial, que auxiliem a paciente a apropriar-se do
estado debilitado em que se encontra e lhe permitam disponibilidade para criar
estratégias úteis para sua sobrevivência, pode ser de grande
valia para sua situação presente e para awareness posteriores.
Muitas vezes, as intervenções de cunho objetivo são, não
só necessárias, como também, muitas vezes em momentos iniciais
e pontuais, imprescindíveis pelo contexto em que se encontra a pessoa.
Perls (2002), no livro “Ego, Fome e Agressão”, ao citar a
importância da terapia de concentração, fala do método
diretivo como insuficiente por se tratar de decisões superficiais. Segundo
ele: “Para dissolver um sintoma neurótico no próprio organismo,
precisamos da awareness do sintoma em toda sua complexidade, não de introspecção
intelectual e explicações; da mesma forma, para dissolver um torrão
de açúcar, é necessário água, não
filosofia”(Perls, 2002:319). Correto, porém, às vezes, é
necessário falar e mostrar a existência do torrão de açúcar
para que ele seja percebido, antes de dissolvê-lo. Portanto uma direção
dada em momentos emergenciais significa dar a possibilidade de a pessoa desviar
do aspecto emocional cego para o racional, poder orientar-se e recobrar os próprios
sentidos.
Obviamente, o que se busca em Gestalt terapia não é direcionar
o que o paciente deva ou não fazer e sim criar possibilidades para que
a pessoa disponha novamente de sua responsabilidade (compreendida como habilidade
para responder) às ocorrências de sua vida. Nesse sentido, o trabalho
terapêutico na nossa abordagem, tem como orientação aos
atendimentos a perspectiva de que toda experiência se dá no campo
organismo-meio e que essa experiência é função da
fronteira-contato e que o self “é o sistema de contato em qualquer
momento (...) é a fronteira-de-contato em funcionamento; sua atividade
é formar figuras e fundos”(Perls, Hefferline e Goodman, 1997:47).
O self, enquanto processo, possui três modos ou funções:
Id, Ego e Personalidade, sendo a função id a disponibilidade de
uma historicidade disponível através do excitamento ou situações
inacabadas que se conectam no campo, iniciando o processo de formação
de gestalten; a função ego que identifica e aliena possibilidades
na formação de gestalten no contato em andamento, com processos
de ação no campo e a função personalidade que nos
identifica na destruição das gestalten através de atitudes
adotadas no contato, explicando quem fomos às nossas vivências
(Perls, Hefferline e Goodman, 1997).
Segundo esses mesmos autores, a neurose ocorre quando há perda das funções
de ego, onde existe a evitação do excitamento primário,
alienação por identificações falsas, tornando a
vida confusa, sem atrativos, difícil e dolorosa. Na neurose a pessoa
perde suas fronteiras, seu senso de processo, estabelece uma fixidez e vive
uma insatisfação constante por não conseguir lidar ou por
não suportar mais as ocorrências que se apresentam. “É
curioso constatar que o anoréxico sofre as terríveis conseqüências
de seus atos, e nem isso o desperta. O pessimismo é de tal modo gigantesco
que parece ter vida própria. Anda e respira ao nosso lado, como um amigo
repulsivo e atraente ao mesmo tempo. A ânsia em mudar a própria
situação impele mais e mais a tentativa de subjugar o corpo”
(Brand, 23003:92).
De acordo com essa conceituação, considero a anorexia como um
processo de neurose, ou seja, das perdas da função de ego do self.
Embora muitos profissionais entendam a anorexia como sendo um tipo de psicose,
pela tamanha distorção da imagem corporal, não compactuo
com essa posição. A meu ver, toda e qualquer perda da função
ego, gera alterações na percepção da situação
atual, em alguns casos de forma mais branda, por exemplo, acreditar mais na
fantasia criada do que na situação em curso e em outros de forma
mais acirrada e aqui creio ser o caso da anorexia. Por exemplo, uma pessoa que
tem um comportamento de pavor frente a algum objeto, digamos uma barata, ela
não está podendo perceber, através da sua percepção
visual, que aquele pequeno bichinho (ortóptero onívoro) de corpo
achatado e oval, de aproximadamente 2 a 3 centímetros de comprimento,
é perfeitamente passível de ser lidado por um ser humano. Porém,
a pessoa tem uma reação totalmente desproporcional ao objeto “barata”
que se encontra no campo: foge, sobe em cadeiras, grita apavorada, como se ali
estivesse um monstro a ser combatido. Nem por isso esta ocorrência é
denominada de psicose. Na anorexia, a percepção distorcida ocorre
no próprio corpo, visto de forma objetalizada - um mostro a ser combatido.
Podemos compreender que não é “barata” que ali se
encontra na realidade presente de uma pessoa que faz com que ela entre em pavor,
mas que, através da barata, o excitamento de alguma situação
inacabada eclode, mobilizando a pessoa como um todo. Então, através
da barata, aparece alguma emoção que busca um fechamento. De baratas
podemos nos afastar, encontrar meios de controle para nos proteger das mais
diversas formas. E do próprio corpo? Como nos afastarmos, como não
o perceber? É no corpo que experimentamos nossas sensações,
sentimentos na relação com o mundo. É nesse mesmo corpo
que aparece o excitamento necessário à formação
de figuras e é esse excitamento que é evitado, pois o excitamento
traz, no momento presente, toda emoção que ficou aprisionada em
situações vividas, que me acostumei a evitar. Ao mesmo tempo em
que preciso do meu corpo para viver, é esse mesmo corpo que preciso controlar,
pois nele está o excitamento, então o corpo se transforma no objeto
de controle na anorexia.
Como o excitamento busca uma saída que o controle visa impedir, está
estabelecida uma luta no campo, pois o controle não pode aniquilar o
organismo e a experiência de fronteira continua ocorrendo. “Hoje
eu fiz uma loucura: tomei um ‘frozen’ iogurte natural. Explodi na
minha quantidade de calorias! Eu só posso comer, no máximo, 270
calorias por dia. Fui fraca. Sou um ser que não consegue controlar um
desejo ridículo” (Brand, 2003:110).
A deliberação é inibir o excitamento, mantendo-o em segundo
plano, ou seja, o que antes era figura, agora é fundo; fundo este que
contém a excitação na forma de uma situação
inacabada. Como novas situações ocorrem e mobilizam o self, o
fundo que se mobiliza para a formação de novas figuras, se encontra
perturbado pela situação inacabada, imobilizando algumas funções
de ego. Ocorre, então que o controle deliberado, depois de algum tempo,
torna-se habitual e é esquecido, por ser um ato motor. E o que antes
era uma inibição deliberada, passa a ser uma inibição
reprimida. Já o excitamento não pode ser esquecido, pois existe
como fundo, não de possibilidades, mas de impossibilidades pela situação
inacabada que busca um fechamento. “Estou cansada de viver. Acordar é
um grande pesadelo. Se algo bom acontece, eu nem fico feliz, pois sei que em
pouco tempo vai acabar. O meu coração às vezes dispara
do nada e outras, parece não conseguir bater(...) Queria ser feliz de
novo”(Brand, 2003:115).
Na inibição reprimida, ou neurótica, o corpo (por ser o
contentor do excitamento) sofre a agressão; e o fundo, buscando um fechamento
e sendo impedido, faz com que advenha a ansiedade. “Pensamentos repetitivos
e inconclusivos, sono agitado, terror noturno e pesadelos mostravam o grau de
estresse em que me encontrava. Meu cérebro, às vezes, parecia
um rádio ligado no mais alto volume (...) Não conseguia descansar.
Estava sempre tensa, preocupada e bastante fragilizada” (Brand, 2003:128).
A partir dessa compreensão de que o corpo se torna o inimigo a ser combatido,
pois ele traz em si o excitamento, o mesmo excitamento que mobiliza situações
inacabadas que buscam um fechamento e que ele evita, podemos dizer que na anorexia
existe uma retro-alimentação que se dá através da
frustração e do medo crônicos. A frustração
se dá quando, na tentativa de controle do corpo para que a fome seja
eliminada (sem alimentação, ou com um mínimo de alimentação
que, obviamente, é insuficiente) a fome permanece ali, apesar de todos
os esforços, então fantasias de um corpo que voltará a
seu estado “natural” aparecem e essas fantasias de um corpo sem
controle (e aqui o que aparece no trabalho terapêutico são as partes
do corpo que inicialmente foi significada como algo a ser eliminado - na minha
experiência clínica é o abdome que é mais focalizado)
trazem medo. E alguém que é medroso constantemente se controla
e se frustra continuamente. A frustração, o medo e o autocontrole
se agravam cada vez mais.
No trabalho terapêutico em Gestalt terapia, o foco não é
buscar o significado para o comportamento atual ou causas do passado, mas sim
de produzir um ajustamento criativo na situação presente. Esse
ajustamento criativo esta indisponível para a pessoa, porém o
que ocorre é que os que estão envolvidos com ela querem fazer
um ajustamento por ela. Parece que o que importa para a grande maioria dos que
lidam com a paciente de anorexia (principalmente, mas não só,
a família) é que ela aumente de peso para “sair” da
doença ou da condição de risco. Porém o que acontece
é que esse é o evitamento da paciente - um corpo que não
pode conter. Lidar com essa figura imposta, é ir no caminho inverso a
uma possibilidade de acesso ao que está interrompido. É como se
se repetisse a mesma situação vivenciada por ela em outras situações
que subjazem aprisionadas: “É o que você faz que me importa,
não quem você é e o que você sente”. Aí
está, novamente, o ciclo que se repete. Para sair da repetição,
temos a favor do trabalho terapêutico os 4 fenômenos do campo que
são os instrumentos da terapia: a relação terapêutica,
o corpo físico-fisiológico, as sensações que são
ocorrências no corpo (inclusive a fome) e a capacidade de significar a
experiência vivida. A relação terapêutica e o conseqüente
vínculo ocorrem de maneira bastante gradual e “lenta”, se
comparado a outros tipos de atendimentos. A paciente é extremamente fugidia
no contato; visualmente desvia o olhar constantemente e com relação
as sensações, elas aparecem como desconfortos, normalmente em
queixas sobre as outras pessoas que convivem com ela. Há um longo trabalho
a ser feito para que a paciente se sinta parte no campo e possa perceber através
da terapia, que é exatamente o que sente que lhe possibilita estar em
contato. Quando as sensações começam a ser figura no atendimento
terapêutico, a pessoa sente medo e desvia sua atenção, impedindo-se
de dispor de seus próprios recursos, interrompendo sua awareness. Aqui
aparece a fixação e é importante que a paciente possa ser
agente de sua própria vivência e se dê conta do que está
acontecendo e como se impede de lidar com a sensação. Nesse momento,
o terapeuta precisa lidar intensamente no aqui e agora para resgatar sua atenção
e, então, o início do excitamento aparece, porém, é
sufocado e advêm a ansiedade. Este é o momento da interrupção
que se torna o foco de awareness. Ter presente o que evita, quais são
as sensações por fazer a evitação, como o corpo
reage a nível motor, como lida com o meio (que aqui se encontra na pessoa
do terapeuta) fornece a possibilidade de entrar em contato com a ansiedade,
conhecer como a desencadeia uma diminuição da ansiedade e um prolongamento
da excitação nesse novo problema. Essa atenção re-focalizada,
possibilitará que emerjam novas figuras; figuras essas, que, através
da multiplicidade de formas que as constituem, vão possibilitando que
a paciente entre em contato com situações, sentimentos, fatos,
sensações que compuseram suas vivências e que ficaram esquecidas.
E ao ir se apropriando dessas partes relegadas, ela poderá começar
a juntar os fragmentos de si que foram desmembrados ao longo do seu caminho,
dispondo novamente da possibilidade de que o excitamento prossiga e o self possa
se manter em contato, reiniciando a possibilidade de novos ajustamentos criativos
no campo e com isso o retorno de que seu corpo possa ser um corpo capaz de conter
suas emoções, sem ser um monstro a ser combatido e que a comida
possa novamente ser alimento e não o veneno de que vinha investido.
REFERÊNCIAS
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