ANOREXIA SOB A ÓTICA DA GESTALT TERAPIA


Angela Schillings

 

A anorexia nervosa (como é descrita pela psicopatologia) é um transtorno do comportamento alimentar onde existem restrições dietéticas auto-impostas e padrões extravagantes de alimentação. A perda de peso significativa é progressiva e, além de ser induzida, é mantida pelo pavor injustificável de se tornar obeso instantaneamente (Silva, 2005). É possível que a anorexia sempre tenha existido, porém, há cem anos aproximadamente, é que foi descrita de forma mais específica na Europa, inicialmente na França e Inglaterra, excluindo-se, então, causas orgânicas e identificando-a como uma doença psicológica.
É considerada uma doença eminentemente feminina, pois 90 a 95% dos pacientes são adolescentes do sexo feminino e adultas jovens, pelo menos quando do início de seu desenvolvimento(Ballone,2001). Para falar sobre este tema tomei como pano de fundo os atendimentos que desenvolvo com pacientes anoréticas há alguns anos e literatura disponível sobre o tema, principalmente as falas de Dominique, contidas no livro “Anorexia – diário de uma adolescente” de Dominique Brand (2003), uma adolescente brasileira, de classe média, que em muito se assemelha às pacientes em processo de atendimento, mesmo que, em alguns casos, ocorram diferenças de idade.
Sabemos que, na nossa sociedade atual, uma das principais exigências feitas à mulher é de que ela tenha um corpo que seja próximo às expectativas de um ideal forjado na exigüidade. Exigüidade de curvas, de formas, de necessidades. Ideal este, advindo de mulheres que estão nas passarelas, na mídia, nas telas e que invadem o imaginário feminino como moscas. Isto faz com que, cada vez mais o corpo “possível”, aquele que se tem, que possui sua própria beleza, de acordo com o que se é, é desvalorizado se não está adequado às características desse ideal. O Brasil é o segundo país do mundo na categoria cirurgias plásticas por ano, sendo que mais da metade delas são feitas por motivos estéticos desnecessários, e em sua ampla maioria, realizadas em mulheres (Silva, 2005).
Vivemos numa sociedade que prioriza os ditames de uma ordem próxima a um nazismo corporal. Controlar o corpo é a palavra de ordem. Vivemos a época da corpolatria, onde o culto ao corpo tornou-se uma obsessão para muitos homens e para a maioria das mulheres. Qualquer vestígio de centímetros (talvez seja melhor colocar, milímetros) a mais no volume corporal, torna-se alvo de horror e de ataques ao corpo para que se conquiste uma aparência, dita, perfeita. Como as mulheres podem aprender a amar seus corpos se o que lhe são oferecidos para admiração e imitação são jovens de sua própria idade (e algumas vezes mais novas) que não são respeitadas pela sua integridade enquanto ser humano, mas pelo seu corpo magro que faz sucesso como celebridade? “Curioso: todo mundo quer ser magro. As revistas só falam nisso. Livros e livros a respeito. As modelos são todas magérrimas. As atrizes idem. Uma enxurrada de informação cai sobre a gente falando o quanto é bom emagrecer. Antes isso não me preocupava. Agora nem sei por que quero ser magra também. Talvez o mundo dos magros seja melhor do que o dos obesos”(Brand, 2003:83). E, muitas vezes, as mães, que poderiam ser um referencial para a percepção saudável de corpo feminino para suas filhas, também mostram, na maior parte das vezes, uma insatisfação imensa com seu próprio corpo, que não é mais jovem e mostram seu pavor em envelhecer.
A mulher não pode envelhecer; é como se devesse ser a eterna jovem para conquistar o mundo. Talvez a ilusão da eterna juventude habite nossos sonhos, pois isto seria como transcender a morte, única certeza que temos na vida. “No entanto, o sonho da eterna juventude passou a ser vendido, para as mulheres, não mais como um ato de transcendência maior da condição humana, mas sim como uma necessidade ou um dever feminino de se manter socialmente aceita e viva (...) com uma única finalidade: esculpir um corpo idealizado que, quase sempre, encontram-se desconectado das suas reais necessidades” (Silva, 2005: 38-9).
O corpo é evidência; ele expressa o que acontece na nossa relação enquanto seres humanos no mundo, de forma explícita. Na anorexia, fica claro, através do corpo, o que a mulher faz à sua totalidade enquanto pessoa. O saudável no ser humano, é buscar satisfazer necessidades que aparecem, ou seja, a formação e destruição de gestalten, portanto, manter-se com fome, quando existem alimentos disponíveis, é o mesmo que submeter-se a uma condição de vida interrompida e com violência. A fome faz com que as mulheres maltratem seus corpos e sabe-se que a violência, uma vez iniciada, aumenta progressivamente. É uma vida de renúncia ao próprio corpo e às emoções. Assim o transtorno alimentar denominado anorexia encontra um campo fértil de desenvolvimento, como se o meio justificasse o fim. Dito de outra forma: um corpo violentado que se justifica para um meio que violenta.
Na anorexia, o início do processo no que tange à alimentação não difere dos de outras pessoas que fazem dietas ou reeducação alimentar para diminuição de peso. Porém existe um momento em que a diferenciação se revela. Nas outras pessoas a dieta termina quando é atingido o peso desejado, havendo um retorno aos hábitos alimentares normais. Na anorexia, não há limite aonde se chegar com relação ao peso, pois mesmo já tendo ultrapassado o objetivo inicial, a pessoa define um novo peso ideal e ao alcançá-lo redefine um novo peso e, assim, sucessivamente. O que ocorre é que com esta perspectiva, a visão que a pessoa tem de si e do seu corpo esta distorcida e ela não olha para si na sua totalidade, se vê em partes: abdome, coxas, nádegas. E para fazer diminuir aquilo que já está diminuído mas não é visto, a pessoa com anorexia tenta cada vez mais e mais acabar com a fome. “Não entendo: estou comendo tão pouco e, quando olho para o espelho, me vejo cada vez mais gorda. Não é possível! Minha cabeça está confusa. Eu já deveria ter emagrecido! Hoje deu vontade de comer besteiras. Comecei a chorar. Não posso sentir isso, mas a fome foi muita, quase me descontrolei (...) O que deu em mim? Não tenho o direito de sentir fome, ou até mesmo de desejar comer algo” (Brand, 2003:84).
A palavra anorexia, quando definida como redução ou perda de apetite, não condiz com a ocorrência da própria anorexia, enquanto disfunção. A pessoa que possui anorexia, na realidade não perde ou diminui seu apetite; ela sente fome, embora negue este fato aos demais. A fome existe (e este é um fato da fisiologia primária humana) e ser capaz de resistir a ela faz parte das regras impostas que precisam ser cumpridas pela pessoa que sofre de anorexia.“Quanto mais magra eu ficar mais feliz eu vou ser. É impressionante como uma coisa é ligada à outra e eu nunca tinha percebido. Antes eu achava que felicidade era comer um bom prato quando estivesse com fome, hoje vejo que era pura piração. A felicidade é estar com fome e conseguir não comer”(Brand, 2003:60). Na anorexia isto é tão intenso que a pessoa acaba pensando somente em comida e em não comer, de forma obsessiva. A alimentação transforma-se em uma idéia fixa, não a deixando concentrar-se em outra coisa. É um quadro obsessivo. “Sei que não poderia sentir fome, mas é difícil. Controlo tudo que posso, mas sempre amei comer, e agora percebi o mal que isso faz; devo lutar com todas as forças e não me deixar vencer” (Brand, 2003:110). Como a fome não pode ser contida, apesar dos esforços desesperados que a pessoa faz com sua subalimentação e a ansiedade é cada vez maior, ela passa a fazer atividades físicas que, ao mesmo tempo em que auxiliam a diminuir o peso, têm o objetivo de fazer diminuir a ansiedade causada por sua obsessão e pela fome. Porém, essa atitude, ao invés de diminuir a ansiedade, a avolumam, fazendo com que a pessoa intensifique as atividades físicas e cada vez mais esforços são necessários para ultrapassar o desempenho anterior (repetição do processo que ocorre na alimentação, às avessas). Nisto reside o caráter compulsivo da anorexia. “Já aumentei as horas de malhação. Não importa mais se estou cansada ou com preguiça, desço e me esforço ao máximo. Só assim vou conseguir queimar tudo que preciso (...) cada caloria vale muito! Elas são minhas inimigas. Como posso ser feliz e bonita com as calorias dentro do meu corpo?”(Brand, 2003:78). E com isso, o corpo não pode passar ileso às conseqüências da obsessão e da compulsão. O corpo emite, de forma espontânea, sinais de alerta, quando o quadro está instalado: tonturas, sensação de frio, taquicardia, enjôos. Normalmente estas sensações físicas são ignoradas ou significadas como alheias à subnutrição e até vistas como aliadas no processo de vencer a fome. “Estou um pouco melhor. Não sei o que tive ontem. Achei que fosse morrer. O bom dessa história é que passei o dia sem comer e não engordei. Até que vale a pena ficar um pouco doente” (Brand, 2003:133). Muitas vezes, a anorexia acaba vitimizando seus portadores. As complicações mais graves e freqüentes são: edemas pela carência de proteínas e quando localizado no pericárdio e na cavidade abdominal representam grave risco de vida; perturbações cardíacas e respiratórias, que geram funcionamento cardíaco insuficiente, levando a crise cardíaca súbita e mortal; amenorréia prolongada gerando infertilidade permanente; insuficiência renal crônica; osteoporose; diabetes tipo1, entre outras. Os estudos mostram que de 4 a 30% das pacientes com anorexia vão a óbito, comparadas com indivíduos da mesma faixa etária e sexo, sem anorexia.
As famílias das pessoas que sofrem de anorexia demoram muito para notar o estado da doença que já foi instalada. “Saímos para viajar com os amigos da mamy (...) só tem peixe e eu não como carne de espécie alguma. Eu me dei bem. Não comi quase nada. Com a desculpa de não estar com fome e de detestar carne, passei o dia todo sem comer e ninguém reparou”(Brand,2003:83). Normalmente, no início, a perda de peso é incentivada e existe, por parte da família, orgulho pela perseverança da filha em alcançar um objetivo. Como a pessoa conhece detalhadamente todas as quantidades calóricas de cada alimento, muitas vezes orienta a família sobre o valor calórico dos alimentos que ingerem e isso pode criar na família uma falsa tranqüilidade por julgarem que ela tem um posicionamento saudável, com amplos conhecimentos perante a alimentação pessoal e familiar. Existe também o fato de que a pessoa com anorexia evita comer na frente da família e quando o faz, demora um tempo enorme para mastigar e engolir, podendo dar a impressão que comeu a mesma quantidade que os outros, pelo tempo que permanece na mesa. O mais comum é que as famílias só constatem que algo grave esta acontecendo quando ocorre alguma situação em que fisicamente é necessário procurar um profissional., por exemplo, um desmaio e a constatação de que é necessário uma internação para receber alimentação parenteral. Estudos feitos por vários pesquisadores (Gerlinghoff e Backmund, 1997) mostram que pessoas com anorexia advêm de famílias mais convencionais, sem fatos extraordinários ou dramáticos na história familiar. Muitas pacientes, por mim atendidas, relataram haverem sido cuidadas na família, porém não sentiam haver amor, principalmente da mãe, ou cuidadora, no contato com elas, apenas um desempenho de papel materno. No decorrer da terapia, muitas delas relataram que começaram a perceber que o mal-estar, quando tinham essa percepção de que não eram amadas, ficava instalado no corpo, principalmente peito e abdome, e que a sensação corporal aumentava quando pensavam em tudo que a família fazia por elas e que eram injustas por terem essa sensação de não serem amadas (processo de culpabilização tão comum em crianças e muitos adolescentes) e como a sensação de desconforto corporal continuava ali, muitas vezes fantasiavam que o corpo poderia desaparecer para que elas ficassem bem novamente. O que fazer para não sentir as sensações desconfortáveis que aparecem no corpo? Talvez abandoná-lo! Na busca de literatura concernente à anorexia, apenas alguns artigos sob a ótica da Gestalt terapia foi encontrado, sendo também, nessa abordagem, bastante escasso o material falando sobre transtornos alimentares, em suas várias formas. Na bibliografia consultada, as terapias mais citadas como promissoras no trabalho com pacientes anoréticas, são as terapias de base cognitivo-comportamental (Buckroid,2000; Silva,2003; Azevedo e Lan,1997; Busse,2004; Cordás,1998;). Isto se dá em quase toda literatura sobre anorexia, seja ela técnico-científica ou direcionada ao público leigo. Talvez isto ocorra porque, como essa forma de terapia busca mudanças rápidas de comportamento e modificações dos padrões compulsivos, alguns resultados são visíveis à curto prazo.
Na realidade, no momento em que exista uma situação de emergência, a necessidade de uma intervenção que trabalhe rapidamente, evitando que um risco grave de doença física de instalação temporária, se transforme em instalação definitiva, pode se fazer necessário. Essas intervenções, de caráter momentâneo e circunstancial, que auxiliem a paciente a apropriar-se do estado debilitado em que se encontra e lhe permitam disponibilidade para criar estratégias úteis para sua sobrevivência, pode ser de grande valia para sua situação presente e para awareness posteriores. Muitas vezes, as intervenções de cunho objetivo são, não só necessárias, como também, muitas vezes em momentos iniciais e pontuais, imprescindíveis pelo contexto em que se encontra a pessoa. Perls (2002), no livro “Ego, Fome e Agressão”, ao citar a importância da terapia de concentração, fala do método diretivo como insuficiente por se tratar de decisões superficiais. Segundo ele: “Para dissolver um sintoma neurótico no próprio organismo, precisamos da awareness do sintoma em toda sua complexidade, não de introspecção intelectual e explicações; da mesma forma, para dissolver um torrão de açúcar, é necessário água, não filosofia”(Perls, 2002:319). Correto, porém, às vezes, é necessário falar e mostrar a existência do torrão de açúcar para que ele seja percebido, antes de dissolvê-lo. Portanto uma direção dada em momentos emergenciais significa dar a possibilidade de a pessoa desviar do aspecto emocional cego para o racional, poder orientar-se e recobrar os próprios sentidos.
Obviamente, o que se busca em Gestalt terapia não é direcionar o que o paciente deva ou não fazer e sim criar possibilidades para que a pessoa disponha novamente de sua responsabilidade (compreendida como habilidade para responder) às ocorrências de sua vida. Nesse sentido, o trabalho terapêutico na nossa abordagem, tem como orientação aos atendimentos a perspectiva de que toda experiência se dá no campo organismo-meio e que essa experiência é função da fronteira-contato e que o self “é o sistema de contato em qualquer momento (...) é a fronteira-de-contato em funcionamento; sua atividade é formar figuras e fundos”(Perls, Hefferline e Goodman, 1997:47). O self, enquanto processo, possui três modos ou funções: Id, Ego e Personalidade, sendo a função id a disponibilidade de uma historicidade disponível através do excitamento ou situações inacabadas que se conectam no campo, iniciando o processo de formação de gestalten; a função ego que identifica e aliena possibilidades na formação de gestalten no contato em andamento, com processos de ação no campo e a função personalidade que nos identifica na destruição das gestalten através de atitudes adotadas no contato, explicando quem fomos às nossas vivências (Perls, Hefferline e Goodman, 1997).
Segundo esses mesmos autores, a neurose ocorre quando há perda das funções de ego, onde existe a evitação do excitamento primário, alienação por identificações falsas, tornando a vida confusa, sem atrativos, difícil e dolorosa. Na neurose a pessoa perde suas fronteiras, seu senso de processo, estabelece uma fixidez e vive uma insatisfação constante por não conseguir lidar ou por não suportar mais as ocorrências que se apresentam. “É curioso constatar que o anoréxico sofre as terríveis conseqüências de seus atos, e nem isso o desperta. O pessimismo é de tal modo gigantesco que parece ter vida própria. Anda e respira ao nosso lado, como um amigo repulsivo e atraente ao mesmo tempo. A ânsia em mudar a própria situação impele mais e mais a tentativa de subjugar o corpo” (Brand, 23003:92).
De acordo com essa conceituação, considero a anorexia como um processo de neurose, ou seja, das perdas da função de ego do self. Embora muitos profissionais entendam a anorexia como sendo um tipo de psicose, pela tamanha distorção da imagem corporal, não compactuo com essa posição. A meu ver, toda e qualquer perda da função ego, gera alterações na percepção da situação atual, em alguns casos de forma mais branda, por exemplo, acreditar mais na fantasia criada do que na situação em curso e em outros de forma mais acirrada e aqui creio ser o caso da anorexia. Por exemplo, uma pessoa que tem um comportamento de pavor frente a algum objeto, digamos uma barata, ela não está podendo perceber, através da sua percepção visual, que aquele pequeno bichinho (ortóptero onívoro) de corpo achatado e oval, de aproximadamente 2 a 3 centímetros de comprimento, é perfeitamente passível de ser lidado por um ser humano. Porém, a pessoa tem uma reação totalmente desproporcional ao objeto “barata” que se encontra no campo: foge, sobe em cadeiras, grita apavorada, como se ali estivesse um monstro a ser combatido. Nem por isso esta ocorrência é denominada de psicose. Na anorexia, a percepção distorcida ocorre no próprio corpo, visto de forma objetalizada - um mostro a ser combatido. Podemos compreender que não é “barata” que ali se encontra na realidade presente de uma pessoa que faz com que ela entre em pavor, mas que, através da barata, o excitamento de alguma situação inacabada eclode, mobilizando a pessoa como um todo. Então, através da barata, aparece alguma emoção que busca um fechamento. De baratas podemos nos afastar, encontrar meios de controle para nos proteger das mais diversas formas. E do próprio corpo? Como nos afastarmos, como não o perceber? É no corpo que experimentamos nossas sensações, sentimentos na relação com o mundo. É nesse mesmo corpo que aparece o excitamento necessário à formação de figuras e é esse excitamento que é evitado, pois o excitamento traz, no momento presente, toda emoção que ficou aprisionada em situações vividas, que me acostumei a evitar. Ao mesmo tempo em que preciso do meu corpo para viver, é esse mesmo corpo que preciso controlar, pois nele está o excitamento, então o corpo se transforma no objeto de controle na anorexia.
Como o excitamento busca uma saída que o controle visa impedir, está estabelecida uma luta no campo, pois o controle não pode aniquilar o organismo e a experiência de fronteira continua ocorrendo. “Hoje eu fiz uma loucura: tomei um ‘frozen’ iogurte natural. Explodi na minha quantidade de calorias! Eu só posso comer, no máximo, 270 calorias por dia. Fui fraca. Sou um ser que não consegue controlar um desejo ridículo” (Brand, 2003:110).
A deliberação é inibir o excitamento, mantendo-o em segundo plano, ou seja, o que antes era figura, agora é fundo; fundo este que contém a excitação na forma de uma situação inacabada. Como novas situações ocorrem e mobilizam o self, o fundo que se mobiliza para a formação de novas figuras, se encontra perturbado pela situação inacabada, imobilizando algumas funções de ego. Ocorre, então que o controle deliberado, depois de algum tempo, torna-se habitual e é esquecido, por ser um ato motor. E o que antes era uma inibição deliberada, passa a ser uma inibição reprimida. Já o excitamento não pode ser esquecido, pois existe como fundo, não de possibilidades, mas de impossibilidades pela situação inacabada que busca um fechamento. “Estou cansada de viver. Acordar é um grande pesadelo. Se algo bom acontece, eu nem fico feliz, pois sei que em pouco tempo vai acabar. O meu coração às vezes dispara do nada e outras, parece não conseguir bater(...) Queria ser feliz de novo”(Brand, 2003:115).
Na inibição reprimida, ou neurótica, o corpo (por ser o contentor do excitamento) sofre a agressão; e o fundo, buscando um fechamento e sendo impedido, faz com que advenha a ansiedade. “Pensamentos repetitivos e inconclusivos, sono agitado, terror noturno e pesadelos mostravam o grau de estresse em que me encontrava. Meu cérebro, às vezes, parecia um rádio ligado no mais alto volume (...) Não conseguia descansar. Estava sempre tensa, preocupada e bastante fragilizada” (Brand, 2003:128).
A partir dessa compreensão de que o corpo se torna o inimigo a ser combatido, pois ele traz em si o excitamento, o mesmo excitamento que mobiliza situações inacabadas que buscam um fechamento e que ele evita, podemos dizer que na anorexia existe uma retro-alimentação que se dá através da frustração e do medo crônicos. A frustração se dá quando, na tentativa de controle do corpo para que a fome seja eliminada (sem alimentação, ou com um mínimo de alimentação que, obviamente, é insuficiente) a fome permanece ali, apesar de todos os esforços, então fantasias de um corpo que voltará a seu estado “natural” aparecem e essas fantasias de um corpo sem controle (e aqui o que aparece no trabalho terapêutico são as partes do corpo que inicialmente foi significada como algo a ser eliminado - na minha experiência clínica é o abdome que é mais focalizado) trazem medo. E alguém que é medroso constantemente se controla e se frustra continuamente. A frustração, o medo e o autocontrole se agravam cada vez mais.
No trabalho terapêutico em Gestalt terapia, o foco não é buscar o significado para o comportamento atual ou causas do passado, mas sim de produzir um ajustamento criativo na situação presente. Esse ajustamento criativo esta indisponível para a pessoa, porém o que ocorre é que os que estão envolvidos com ela querem fazer um ajustamento por ela. Parece que o que importa para a grande maioria dos que lidam com a paciente de anorexia (principalmente, mas não só, a família) é que ela aumente de peso para “sair” da doença ou da condição de risco. Porém o que acontece é que esse é o evitamento da paciente - um corpo que não pode conter. Lidar com essa figura imposta, é ir no caminho inverso a uma possibilidade de acesso ao que está interrompido. É como se se repetisse a mesma situação vivenciada por ela em outras situações que subjazem aprisionadas: “É o que você faz que me importa, não quem você é e o que você sente”. Aí está, novamente, o ciclo que se repete. Para sair da repetição, temos a favor do trabalho terapêutico os 4 fenômenos do campo que são os instrumentos da terapia: a relação terapêutica, o corpo físico-fisiológico, as sensações que são ocorrências no corpo (inclusive a fome) e a capacidade de significar a experiência vivida. A relação terapêutica e o conseqüente vínculo ocorrem de maneira bastante gradual e “lenta”, se comparado a outros tipos de atendimentos. A paciente é extremamente fugidia no contato; visualmente desvia o olhar constantemente e com relação as sensações, elas aparecem como desconfortos, normalmente em queixas sobre as outras pessoas que convivem com ela. Há um longo trabalho a ser feito para que a paciente se sinta parte no campo e possa perceber através da terapia, que é exatamente o que sente que lhe possibilita estar em contato. Quando as sensações começam a ser figura no atendimento terapêutico, a pessoa sente medo e desvia sua atenção, impedindo-se de dispor de seus próprios recursos, interrompendo sua awareness. Aqui aparece a fixação e é importante que a paciente possa ser agente de sua própria vivência e se dê conta do que está acontecendo e como se impede de lidar com a sensação. Nesse momento, o terapeuta precisa lidar intensamente no aqui e agora para resgatar sua atenção e, então, o início do excitamento aparece, porém, é sufocado e advêm a ansiedade. Este é o momento da interrupção que se torna o foco de awareness. Ter presente o que evita, quais são as sensações por fazer a evitação, como o corpo reage a nível motor, como lida com o meio (que aqui se encontra na pessoa do terapeuta) fornece a possibilidade de entrar em contato com a ansiedade, conhecer como a desencadeia uma diminuição da ansiedade e um prolongamento da excitação nesse novo problema. Essa atenção re-focalizada, possibilitará que emerjam novas figuras; figuras essas, que, através da multiplicidade de formas que as constituem, vão possibilitando que a paciente entre em contato com situações, sentimentos, fatos, sensações que compuseram suas vivências e que ficaram esquecidas. E ao ir se apropriando dessas partes relegadas, ela poderá começar a juntar os fragmentos de si que foram desmembrados ao longo do seu caminho, dispondo novamente da possibilidade de que o excitamento prossiga e o self possa se manter em contato, reiniciando a possibilidade de novos ajustamentos criativos no campo e com isso o retorno de que seu corpo possa ser um corpo capaz de conter suas emoções, sem ser um monstro a ser combatido e que a comida possa novamente ser alimento e não o veneno de que vinha investido.

 

REFERÊNCIAS


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PERLS, F. S, HEFFERLINE, R. & GOODMAN, P. Gestalt terapia. São Paulo:
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SILVA, A. B. B. Mentes insaciáveis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.