Ana Letícia Maia
Dizem que houve uma época, há muito, muito tempo atrás,
quando o mundo era um lugar mais que especial: havia um estado de perfeita inocência,
de comunhão entre os homens, os animais e as plantas e uma felicidade
somente comparável à dos Deuses. Até hoje em dia, para
alguns, tal história seria uma invenção, mas para outros,
no entanto, ela estaria presente justamente na alma dos mitos, levantando assim
suspeita de que em algum momento, teria realmente existido uma idade perfeita,
livre das misérias em que teria mergulhado a humanidade. Esta idade se
chamou IDADE DO OURO.
Os povos primitivos viviam então dos frutos que colhiam nas florestas,
às vezes da caça e da pesca. Eram extremamente alegres, tratavam
com total igualdade as mulheres, eram incapazes de castigar as crianças
e não conviviam com a noção de propriedade. Viviam sem
a mínima organização social e religiosa. Pode-se dizer
que o que havia era um “Cosmos Sacralizado”, no sentido de existir
uma fusão entre os homens e Deus, pois o homem reconhecia Deus em si
e nos outros. Tal similitude caracterizava a vida neste universo divino. Não
existia religião e, portanto, não se fazia necessário o
uso de ritualísticas para prestar culto a Deus algum.
Não se sabe ao certo o que colaborou para a radical mudança deste
estado de perfeição: do paraíso para a forma em que o mundo
se transformou posteriormente. Imagina-se, no entanto, que pode ter sido um
fator biológico de extrema importância – a fome, o possível
responsável pela transformação que se seguiria.
Ao vivenciar a privação de alimentos e ao experimentar o desconforto
da fome não satisfeita, o homem teria reconfigurado completamente sua
forma de estar no mundo: entrou em guerra com a natureza. Deu início
à prática da agricultura primitiva, que consequentemente inaugurava
a escravidão feminina, da mesma forma que a pecuária primitiva
inaugurava a escravidão animal. Finalmente, o sentido de posse permite
então o aparecimento das primeiras sociedades, das primeiras religiões
e da pedagogia para dar conta da educação das crianças.
Trocou-se a espontaneidade pela regra, a alegria pelo sacrifício. Precipitou-se
uma submissão e extinção gradual dos instintos e de toda
a criatividade que não tem cabimento, lugar, na vida socialmente organizada.
“Se trocou o instinto pela razão ordenadora; houve uma quebra entre os impulsos mais profundos e a necessária vida social; foi-se obrigado a remar contra a corrente do rio e só em raras ocasiões pôde o homem voltar a esse profundo, íntimo, identificante contato com o mundo natural” A. Silva.
Muito tempo depois, na Grécia, surge o teatro grego,
que brota da consciência do conflito entre natureza humana e história
humana, entre uma vida natural e o comportamento que era desenhado pelo homem.
Nas tragédias e nas comédias, de maneira individual ou coletiva,
denunciava-se o distanciamento deste homem do seu caminho mais genuíno,
da possibilidade de viver de forma plena.
Os rituais dionisíacos são um dos exemplos de ocasiões
onde, inicialmente, através de festas com cantos, danças e muito
vinho, os homens reencontravam seus próprios instintos. Mais tarde, já
na Idade Média, é a vez dos rituais litúrgicos representarem
esta queda, esta distância, a dessacralização da vida humana,
ao mesmo tempo em que abrem os olhos dos espectadores aos mistérios do
que existe para além da vida passageira. A arte assumia um papel demasiadamente
importante: religava o homem à sua natureza primordial e essencial.
Dando um grande salto no tempo, agora bem aqui no século XX, também
é possível encontrar referências do Teatro Ritual ou Teatro
Sagrado. Curiosamente, Peter Brook, diretor teatral inglês, chama-o de
o Teatro do Invisível-Tornado-Visível.
“Artaud dizia que só no teatro poderíamos nos libertar das
formas limitadas nas quais vivemos nosso dia-a-dia. Isto fazia do teatro um
lugar sagrado onde pudesse ser encontrada uma realidade maior”. P. Brook.
Quando se dá forma a alguma coisa antes abstrata, quando
através de um encontro ator/platéia, num clima de fé e
confiança, algo é desvelado, tocando de forma verdadeira e alimentando
a vida também de quem assiste, justamente por se sentir fazendo parte,
partícipe da ação, quando essa mágica acontece,
o invisível tornou-se visível. Não seria justamente isso
o que acontece, ou deveria acontecer, dentro de um Encontro psicoterápico?
Na medida em que Nietzsche declara que cada pessoa deveria ser ator, autor e
intérprete da sua própria vida; que cada momento de atuação
é um encontro com as próprias possibilidades, não seria
justo pensar que o espectador de uma obra de arte - figura indispensável
para que ela se dê, na medida em que acompanha, troca e confirma a experiência
do artista; não seria natural pensá-lo como um psicoterapêuta,
desempenhando o mesmo papel? Ou seja, o de
retomar a integridade, a inteireza, aquilo que haveria de mais sagrado porque
único, tornando visível através da forma o que era invisível
e que no Encontro se faz concreto, real. O jogo da vida, da expressão
das potencialidades e das emoções configura o que seria uma existência.
A ritualística pode ser litúrgica, artística, psicoterapêutica,
o que se “persegue”, é sim o desdobrar e o desabrochar de
uma individualidade que na presença é construída, fortalecida,
porque identificada.
“O nexo entre psicoterapia e arte decorre, natural e
evidentemente, de um certo modo de existência, de um certo apreço
e vontade de afirmação da existência, de um certo modo de
concebê-la e vivenciá-la no instante vivido. Esta parece ser, desde
Nietzsche, a questão central:a do valor que se atribui à existência,
enquanto espontaneidade do ser-no-mundo, a questão do valor que se atribui
ao corpo, ao vivido e aos sentidos, a questão do apreço pela existência
e por sua afirmação. No limite, interessa assumir a existência
como arte, e a psicoterapia como exercício desta arte”. A. Fonseca.