Intimidade : O Incomum Lugar Comum num Universo de Alheios
Luciana Cavanellas
“Dá-me a tua mão desconhecida, que a vida está me
doendo, e não sei como falar.” Clarice Lispector
Pós-moderno, supermoderno,
hipercontemporâneo . Tentativas de nomear um tempo com os pés na
modernidade, mas lançado de olhos, boca e mãos abertos e sedentos
por ultrapassamentos e superações de todos os tipos. Não
há introdução, nem preparação para sua chegada.
“Já é” - dizem os jovens arautos de nossa época.
Só há fluxo. Imagem, movimento e velocidade arrastando tudo como
torrentes volumosas de rios caudalosos e um grito calado de “Salve-se
quem puder!”.
Onde vamos nos segurar? É possível resistir ou seremos levados
de qualquer maneira à beira? Haverá algum limite ou parada? Ou
qualquer coisa que nos faça lembrar quem somos ou éramos há
um segundo atrás?
Vivemos este momento delicado onde somos autores e personagens falando através
de atores, discutindo formas, debatendo idéias, confundindo emoções,
enlouquecendo valores. Como num ensaio teatral, sem direção, onde
todos podem tudo e podem ser qualquer coisa, ou uma coisa a cada instante; não
é preciso fixar-se, nem identificar-se. Todos os papéis estão
à disposição. É só experimentar, vestir e
representar. É o tempo da plasticidade e da flexibilidade total. Vira-se
qualquer coisa e tudo é possível, só não é
permitido parar. Nem ao corpo, nem à mente é dada esta permissão.
Mesmo à noite, é preciso estar acordado e vigilante.
A ansiedade é alimentada diariamente pela necessidade de ter e de não
perder, a não ser aquilo do que já se quer mesmo livrar-se, porque
repentinamente ficou velho e não serve mais. É como uma mão
pesada que nos empurra para a frente, para o mais, para o tudo, sem se importar
com o rastro que deixamos pelo caminho. Montanhas de lixo produzidas a cada
minuto por um sem-número de coisas que não nos atendem mais. São
obsoletas. E o que somos nós?
“Para se livrar do embaraço de ser deixado para trás, de
ficar preso a algo com o qual ninguém mais quer ser visto, de ser pego
cochilando e de perder o trem do progresso em vez de viajar nele, você
deve ter em mente que é da natureza das coisas exigir vigilância,
não lealdade.
[...]
O lixo é o principal e, comprovadamente, mais abundante produto da sociedade
líquido-moderna de consumo. [...] Isso faz da remoção do
lixo um dos dois principais desafios que a vida líquida precisa enfrentar
e resolver. O outro é a ameaça de ser jogado no lixo.” (Bauman,
2007, p.17)
Nosso passado e nossa história confundem-se então com restos de coisas que não queremos mais, que descartamos de nós mesmos para podermos seguir em frente. E ao nos descartarmos aos poucos, já não nos reconhecemos bem, vemos embaçado, perdemos a referência. Quiséramos poder desacelerar, mas seríamos atropelados e arrastados pela violência da correnteza consumista e mercadológica; então fechamos os olhos e saltamos. E assim nos misturamos ao fluxo e passamos a procurar nas vitrines da vida sinais que nos remetam à nossa apagada identidade.
“... presentemente assistimos à destruição do duplo
sujeito da modernidade, o sujeito crítico ( kantiano) e o sujeito neurótico
( freudiano) – aos quais eu não hesitaria em acrescentar o sujeito
marxista. E vemos se instalar um novo sujeito, ´ pós-moderno`.
[...] um sujeito precário, acrítico e psicotizante que é
doravante requerido – entendo por ´psicotizante` um sujeito aberto
a todas as flutuações identitárias e, consequentemente,
pronto para todas as conexões mercadológicas. O cerne do sujeito
progressivamente dá lugar ao vazio do sujeito, um vazio aberto a todos
os ventos.”(Dufour, 2005, p.21)
Para Dufour, na ânsia de consumir tudo, o capitalismo acabaria por consumir
a si mesmo, mas não sem antes engolir aqueles que o servem. Tendo já
se utilizado dos corpos e tornado-os ´corpos produtivos` e ´material
humano`, a grande novidade da virada dita pós-moderna estaria na redução
dos espíritos, conforme aponta o título de seu livro “A
Arte de Reduzir as Cabeças”.
“ Hoje os homens são solicitados a se livrar de todas as sobrecargas
simbólicas que garantiriam suas trocas . O valor simbólico é
assim desmantelado, em proveito do simples e neutro valor monetário da
mercadoria. [...] Daí resulta uma dessimbolização do mundo.”
(Idem, p.13)
Como então nos garantir a sobrevivência num mundo que visa a transformação
de tudo em consumo e satisfação imediata? Onde tudo desaparece
instantaneamente superado pelo surgimento de cada novidade,carregada de promessas
de perenidade?
Seguimos crédulos, acríticos, abertos. Logo nos tornamos escancarados
e famintos, produtores e produtos de um querer-prazer incessante e sem tréguas.
Estamos praticamente dopados pela velocidade contemporânea e a falta de
sentido nos assola.
“ O pensamento contemporâneo
é um ícone
uma esfinge,
uma epígrafe descontextualizadora
de extratos semânticos,
sêmens de linguagem
sintetizados numa tela
inconformática e virtual
pensar é
sacar esses extratos
capturados e contemplados
por instantes
no saldo eletro-magnético
da memória digital.” ( Luiza Xavier)
A liquidez das referências e das experiências provocam-nos sensações de insegurança e nos trazem ameaças de desintegração. Sentimo-nos fragmentados, suscetíveis e fragilizados, apesar da mais alta potencialização de tudo o que nos cerca. Estamos acompanhados, porém sozinhos em nosso exercício diário de sobrevivência, numa solidária indiferença que nos consente prosseguir.
“ A indiferença civil
representa um contrato implícito de reconhecimento e proteção
mútuos entre participantes dos espaços públicos da vida
social moderna.”
(Giddens, 2002, p.49)
Diluídos nos espaços públicos, mantemo-nos alheios ao outro, mas também afastados de nós mesmos, habitantes da virtualidade. Esquecemos nossas casas e abandonamos nosso lar. Maltrapilhos existenciais, deserdados e errantes vagando sob o disfarce de homens e mulheres atarefados e ocupados em atingir suas metas e resultados. Em algum lugar, hão de angustiar-se.
“ Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
[...]
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.” ( Fernando Pessoa)
No abismo do desespero, redescobrimo-nos. Afinal, ainda há de haver um
reminiscente eu. Eu que nasci, cresci, tenho fome, sede, sinto, penso, sonho
e, um dia, morrerei. Eu que me desconheço e reconheço e, muitas
vezes, pergunto por mim. Eu que sei de mim, mas às vezes esqueço
quem sou e procuro-me por aí. “Alguém há de achar-me
e trazer-me de volta”! - é a minha esperança maior. Enquanto
isso, vou vivendo livremente, em pedaços.
“ A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia louça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me
sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um
capacho por sacudir.
[...]
Alastra a grande escadaria atapetada
de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso,
entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal?A
minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não
sabem por que ficou ali.”
( Fernando Pessoa)
Esquecemos por que fomos chamados indivíduos e só nos lembramos
de atributos egóicos e egoísticos quando pensamos a individualidade.
No entanto, nosso bem maior, ao recebermos tal nome foi guardarmos o sentido
de uma inerente indivisibilidade. Indivíduo/indiviso/indivisível
- aquilo que precisamos preservar, sem termos que negociar.
No entanto, vivemos na era de um individualismo, que, para se manter, abriu
mão das redes e vínculos sociais, enganando-se quanto ao modo
de diferenciar-se. A antiga comunidade foi enfraquecida e, aos poucos, desintegrada,
perdendo a força sobre cada indivíduo. Viramos autônomos
e perdemos apoio e referências.
Sobressaímo-nos com delineamentos próprios e orgulhosos de nossa
autonomia e liberdade de escolha. Mas não são poucas as vezes
em que nos sentimos fartos e cansados de tanto ter que escolher. Permanecemos
no leme em tempo integral, sem nos darmos conta do quanto estamos à deriva.
E é neste momento que resolvemos nos resgatar. Partimos em busca de um
EU próprio, singular, com características autênticas, único
e verdadeiro; mas, depois de muita procura, descobrimos que isto só se
torna possível na presença de um Outro. Um outro que me sirva
de espelho, que me faça a diferença, de quem eu possa me distinguir
ao buscar a identidade. Que me confirme na semelhança e na diversidade,
ao testemunhar tentativas próprias e impróprias de ir ao encontro
do cais.
Esquecidos os laços de sangue, arranjo ou parentesco que garantiam a
aproximação de pessoas em épocas pré-modernas, juntamente
com a solidão e o vazio deixado pela sombra de antigos rituais grupais,
eis que temos a possibilidade de nos envolvermos em relações eleitas
e criadas com base em confiança mútua.
“ Em condições de incerteza e múltipla escolha, as
noções de confiança e risco têm aplicação
particular. A confiança [...] é um fenômeno genérico
crucial e tem relevância específica para um mundo de mecanismos
de desencaixe e de sistemas abstratos. [...] Em suas manifestações
genéricas, a confiança está diretamente ligada à
obtenção de um senso precoce de segurança ontológica.
[...] nesse sentido [ela] é fundamental para um “ casulo protetor”
que monta guarda em torno do eu em suas relações com a realidade
cotidiana.” (Giddens, 2002, p.11)
Protegido pelo invólucro da confiança e condenado ao autoquestionamento
ininterrupto, herança da dúvida institucionalizada pela modernidade,
o indivíduo enfrenta o risco e a necessidade de encontrar-se a si próprio.
Desta forma, resiste ao massacre anunciado pela velocidade que isola e confunde,
e mantém a fé na possibilidade da “relação
pura”.
“ Em contraste com laços pessoais próximos em contextos
tradicionais, a relação pura não está ancorada em
condições exteriores da vida social e econômica. [...] os
laços pessoais na relação pura requerem novas formas de
confiança – precisamente aquela confiança que é construída
pela intimidade com o outro.” ( idem, p.93)
Em tempos de polarizações, oscila-se entre a inevitável
indiferença e a busca da intimidade, perdendo-se inúmeras vezes
no meio deste caminho. Mas o apelo ontológico de autorealização
não permite que o eu desista de si mesmo e perturba-o até que
encontre um sentido.
Na ausência de um entorno seguro e favorável, perdido em sua rota
ou já de frente para o abismo, apresentam-se saídas milagrosas,
receitas instantâneas e alívios efêmeros, no shopping center
de soluções facilmente consumíveis. Relações
artificiais prontas para uso e promessas travestidas de especialistas oferecem-se
no mercado captador de clientes inseguros e desorientados.
Há, porém, a resistência. Aquela que confia e acredita no
compromisso. A que se sente comprometida com a possibilidade do reencontro consigo
e que, para isso, quer a intimidade como parceira.
Esta intimidade que fala do despir-se porque nascida da confiança mútua.
Esta intimidade que fala do sagrado porque abre portas para a libertação.
Esta intimidade que cria vínculos de eternidade.
Esta intimidade que é cúmplice e presencia verdadeiras transformações.
Esta que é simples e, ao mesmo tempo, rara de se experimentar.
Faz-se presente nos encontros de amor e amizade escolhidos; faz-se também
presente nas relações de acolhimento e cuidado doados.
Incomum lugar comum num universo de alheios, a relação íntima
constitui-se em tábua de salvação para a sobrevivência.
“ O indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe
falta o apoio psicológico e o sentido de segurança oferecido em
ambientes mais tradicionais. A terapia oferece alguém para quem podemos
nos voltar, uma versão secular do confessionário.[...] A terapia
não é simplesmente um meio de lidar com novas ansiedades, mas
uma expressão da reflexividade do eu – um fenômeno que ao
nível do indivíduo, como as instituições maiores
da modernidade, equilibra oportunidade e catástrofe potencial em medidas
iguais.” (Giddens, 2002,p.38)
Não temos um ofício comum, mas ele é produto deste sistema
e nele se insere pefeitamente.
Nós, terapeutas, somos convidados a tomar parte e criamos condições
para tal. Damo-nos conta de tamanha responsabilidade e privilégio? Recepcionar
momentos delicados e preciosos, quando a alma escolhe se entregar? Representar
o instante de descontinuidade de um fluxo que não para de pressionar?
Escutar idéias e sentimentos dolorosos sem desesperançar?
Se contribuímos com a manutenção do satatus quo ou com
a renovação deste modo de vida contemporâneo é uma
reflexão que se impõe a nós e a qual não devemos
evitar.
De toda forma, somos porta-vozes da coragem e da esperança de se construírem
relações genuínas, alicerçadas no compromisso, na
confiança e na intimidade, que extrapolem o aconchego de nossos consultórios
e saiam pelo mundo, alçando vôos maiores.
“Esquenta-me com a tua adivinhação de mim, compreende-me porque eu não estou me compreendendo.”
“Mas vê, meu amor, a verdade não pode ser má. A verdade é o que é.”
“[...] não procures entender-me, faze-me apenas companhia.”
Clarisse Lispector