Tema-livres 5: Existência como possibilidade de abertura.

 

5.3 O brincar livre na clínica com adultos.

 

Bianca Lopes de Souza

 

Resumo
Entendendo a atividade lúdica como uma forma de contato, de encontro autêntico, espontâneo e criativo entre as pessoas, este trabalho discute a importância do brincar na clínica com adultos. Aponta o lúdico como um elemento promotor da, e portanto, um aliado do processo terapêutico.


Proposta
O homem moderno ocidental vive numa cultura patriarcal que desvaloriza as emoções em favor da razão e da racionalidade, e o convida a todo momento a se focar no futuro. Neste contexto, as emoções são entendidas como obstáculos para tomada de decisões racionais e objetivas, dificultando a capacidade intelectual e produtiva dos sujeitos.

Educado para ser o mais racional que puder e controlar ou negar seus afetos, este homem acredita que para um futuro de sucesso, precisa abdicar de suas necessidades atuais e negar seus desejos imediatos, num processo de desvalorização permanente de sua corporeidade.

Para Maturana e Verden-Zoller (2004), somos convidados, por esta cultura, a sermos senhores de nossos corpos, de nossos desejos, de nossos pensamentos, de nossas vidas, e preferencialmente da vida dos outros também. Em prol de uma relação autoritária e fragmentada, que implica uma limitação operacional que elimina qualquer possibilidade de compreensão de nós mesmos e do mundo.

Com isto, valores como obediência, autoridade, controle e disputa ganham destaque na dinâmica das relações que são construídas socialmente em detrimento de outros valores como compreensão, autonomia, amizade, espontaneidade e cooperação.

De modo semelhante, nossas tentativas de controlar nossa corporeidade pela sua negação, tornou-nos indiferentes a este e limitou nossa auto-compreensão como seres que, como humanos, existimos de fato no entrelaçamento de emoção e razão.

Para Cardella (1994), as conseqüências dessa polarização de valores e atitudes, fazem com que o homem ocidental experimente uma existência solitária, vazia e desesperançada com a própria humanidade.

Para Maturana e Verden-Zoller (2004), essa limitação cultural tem nos incapacitado particularmente de perceber o amor – emoção que especifica o domínio dos comportamentos que constitui o outro como um legítimo outro em coexistência conosco. Para estes autores é a vivência no amor que nos torna humanos. Eles defendem que toda relação interpessoal que ocorre no amor é necessariamente vivida como brincadeira. E que o brincar, como relação interpessoal, só pode acontecer no amor.

Para eles, “O brincar é uma relação de total aceitação e confiança no encontro corporal de uma pessoa com outra; com a atenção posta no encontro e não no futuro; não no que virá, mas sim no simples fluxo da relação – é fundamental para o desenvolvimento da consciência corporal e o lidar com o espaço. Essa relação é essencial para o crescimento do sujeito como um ser que pode viver em dignidade e respeito por si mesmo, em consciência individual e social. Toda atividade realizada com a atenção dirigida para ela própria se dá no brincar, num presente que não confunde processo com resultado. É, portanto inocente e transcorre sem
tensão e angustia, como um ato que se vive no prazer e é o fundamento da saúde psíquica, porque se vive sem esforço mesmo quando no fim há cansaço corporal.” (MATURANA e VERDEN-ZOLLER, 2004, p. 230)

Para estes autores, o brincar tem papel central no processo de constituição de nossa humanidade. Maturana e Verden-Zoller (2004, p. 245) escrevem:

“Nossa cultura ocidental moderna desdenhou o brincar como uma característica fundamental generativa na vida humana integral. Talvez ela faça ainda mais: talvez negue o brincar como aspecto central da vida humana, mediante sua ênfase na competição, no sucesso e na instrumentalização de todos os atos e relações. Acreditamos que para recuperar um mundo de bem-estar social e individual – no qual o crime, o abuso, o fanatismo e a opressão mútua não sejam modos institucionalizados de viver, e sim erros ocasionais de coexistência - devemos devolver ao brincar o seu papel central na vida humana. Também cremos que para que isso aconteça devemos de novo aprender a viver nessa atmosfera.”

Nesse sentido, o presente trabalho objetiva discutir a importância do resgate da possibilidade do brincar, especialmente na clínica com adultos. Reconhecemos que nós em geral não brincamos. Vivemos nesta cultura que acredita que o brincar é privilégio das crianças. No mundo “sério” do adulto a espontaneidade do brincar não cabe. Muito menos a entrega afetiva e a liberdade de ser o que se é no momento em que se é. Talvez por isso os consultórios e grupos terapêuticos estejam abarrotados de pessoas angustiadas e aflitas. Como propõe Ciornai (2004), o que cada vez mais encontramos na clínica são pessoas com a síndrome da incerteza, a síndrome da solidão, a síndrome da dessensibilização e a síndrome da indiferença e do desencantamento em relação ao mundo. Todas estas síndromes revelam na verdade uma profunda dificuldade de contato, integralidade e vivência no amor. Acreditamos que o desdenhar do brincar vem favorecendo a negação de nossa existência no entrelaçamento de razão e emoção, nos afastando progressivamente de nossa humanidade.

Sendo assim, a relevância da discussão que traçamos aqui se concentra principalmente num esforço de resgatar no adulto a possibilidade de viver na atmosfera do brincar, isto é, no conversar, no entrelaçamento do linguagear com o emocionar, que constitui o humano. Acreditamos, portanto, na capacidade de transformação social do brincar, entendendo-o como uma linguagem de possibilidades e encontro. Como uma experiência no compartilhar, no co-existir em segurança, em aceitação. Como um agir espontâneo e autêntico. Como uma forma de relação coerente com o que defende a Gestalt-terapia.

Concordamos com Zinker (2007, p. 31) quando este afirma que a Gestalt- terapia representa “tudo que promete a totalidade das experiências; representa aquilo que vem, seja assombroso, atemorizante, lamentável, comovedor, estranho, arquetípico, desafiador”. Reconhecemos o potencial do brincar em nos proporcionar esta totalidade experiencial, pela sua capacidade de colocar a pessoa agindo no aqui-e-agora a partir dos seus conteúdos existenciais de forma livre, espontânea, criativa e autêntica. Acreditamos que o brincar na psicoterapia nos permite captar sem capturar, experienciar sem classificar, resgatar sem recuperar, acompanhando a pessoa em seu fluxo livre em busca de si mesma. Para nós, brincar é uma forma de contato. Sendo, portanto, um rico elemento para o trabalho terapêutico.

Como afirma Ribeiro (2007), a GT está centrada no conceito e na natureza das relações de contato da pessoa consigo mesma e com o mundo exterior. Tem o contato como a matéria prima da relação psicoterapêutica. O vê como sendo a forma pela qual a vida acontece e se expressa. Na GT, contato é o fenômeno pelo qual o encontro ocorre e no qual toda ação humana e psicoterapêutica se baseia.

Sendo assim, é fundamental que o brincar possa ser explorado no processo terapêutico.

Defendemos que o brincar acontece na fronteira de contato “o ponto em que o indivíduo experiencia o “eu” em relação ao que é não-eu e, por esse contato, ambos são experimentados mais claramente.” (POLSTER & POLSTER, 2001, p. 115). Ou ainda, como define Ribeiro (2007, p. 51) “o lugar privilegiado do encontro das diferenças”. O brincar faz isso, pois exige espontaneidade e presença.

Ele necessita da permanência focada dos brincantes no aqui-e-agora da relação. E o faz, incluindo o toque e o movimento. Assim ele também mobiliza a organização psicomotora da pessoa, isto é, o meio pelo qual ela estrutura suas estratégias de ser e agir no mundo, a partir dos registros tônicos de experiências anteriores vividas.

O brincar possibilita um contato direto com esta corporaidade. O que é improvável ser conseguido de forma tão intensa quando se usa apenas as palavras, ou mesmo um experimento mais estruturado. O brincar é uma ação a favor da mudança, tanto por seus aspectos ligados a não-literalidade, liberdade, flexibilidade, quanto pela possibilidade de distanciamento que ele proporciona, por acontecer num tempo e espaço próprios e por ser um evento separado do cotidiano. O brincar convida a experimentação de novos papéis e comportamentos, numa aventura ativa pela imaginação, ancorada na realidade. O brincar convida a pessoa que brinca a contatar-se consigo mesma e com o ambiente amorosamente, sem expectativas com o que será produzido, sem antecipações ou fragmentações.

Assim, resgatar a possibilidade do brincar na terapia com adultos representa a possibilidade de permitir a estas pessoas o reconhecimento disto que nos torna humanos, ou seja, nossa necessidade de viver na mutua aceitação, numa coexistência centrada na ternura e na sensualidade da caricia mutua. Nos permite expandir as possibilidades de contato do cliente, favorecendo o encorajamento para o auto-conhecimento; para a expressão de temores, preferências, afetos, hábitos, desejos e necessidades; da espontaneidade e liberdade de ser e agir da pessoa. Resgatar o brincar pode ainda auxiliar a mediação do processo de exploração e descobrimento de novas possibilidades; a ampliação da
Awareness e o fortalecimento do self do cliente.

Por fim, se o trabalho psicoterapêutico é uma prática do amor, como nos afirma Cardella (1994), pois é através do estado de ser amoroso que o terapeuta cria condições para que o cliente possa ouvir, ver, compreender, aceitar e amar a si mesmo. E se toda relação interpessoal que ocorre no amor é necessariamente vivida como brincadeira. De fato, Winnicott (1975) estava repleto de razão quando disse “onde o brincar não é possível, o trabalho do terapeuta é trazer o paciente para um estado onde o brincar aconteça”. Pois é com base na relação amorosa, vivida no brincar, que se constrói a totalidade da existência humana.

 

Bibliografia

CARDELLA, B.H.P. O amor na relação terapêutica: uma visão gestáltica. São Paulo: Summus editorial, 1994.

CIORNAI, S. Percursos em Arteterapia: arteterapia gestáltica, arte em psicoterapia, supervisão em arteterapia. São Paulo: Summus editorial, 2004.

MATURANA, H. e VERDEN-ZOLLER, G. Amar e Brincar: fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Pallas Athena, 2004.

POLSTER, E., POLSTER, M. Gestalt-terapia integrada. São Paulo: Summus editorial, 2001.

RIBEIRO, W.P. O ciclo do contato: temas básicos na abordagem gestáltica. São Paulo: Summus, 2007.

WINNICOTT, D.W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

ZINKER, J. Processo Criativo em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus editorial, 2007.