Tema-livre 4: Aplicações dos pressupostos gestálticos: possibilidades no âmbito acadêmico.

4.3 Atitude fenomenológica e atitude psicoterápica.

 

Letícia Reis de Andrade Souza e Joana Lezan Sant’Ana

 

Resumo
Esta pesquisa é composta por entrevistas com psicólogos clínicos a respeito da atitude psicoterápica. Na análise destas entrevistas, pode-se observar características interessantes da atenção clínica. Estas características reforçam a aproximação entre “atitude psicoterápica” e a “atitude fenomenológica” descrita por Husserl e também puderam ser aproximadas de muitos conceitos da abordagem dialógica.

Proposta
O grupo de pesquisa da Universidade Federal Fluminense “Fenomenologia Hermenêutica e Clínica Psicoterápica”, no qual se insere a pesquisa “Atitude Fenomenológica e Atitude Psicoterápica” vem, desde o ano de 2002, desenvolvendo projetos relacionados à interlocução entre Fenomenologia e Clínica.

Somos integrantes do corpo de Iniciação Científica do mesmo, e apresentaremos o trajeto e os resultados deste projeto finalizado no ano de 2009.

Além de participarmos do grupo, iniciamos em 2010 nossa formação em Psicologia Clínica na Abordagem Gestáltica no Instituto Carioca de Gestalt-terapia.

Nosso objetivo nesta apresentação é poder pensar os resultados da pesquisa sob a ótica da Gestalt-terapia, especificamente sob a abordagem dialógica de Martin Buber.

A pesquisa é composta por entrevistas realizadas com psicólogos clínicos de diferentes abordagens teóricas e tiveram como propósito investigar a existência de diferenças entre a atenção no momento do atendimento clínico e a atenção no cotidiano. Quando os entrevistados afirmam perceber esta diferença, seguimos pedindo que a explicitem mais detalhadamente, buscando observar de forma imediata a própria experiência de atenção clínica. Interessa-nos saber como surge essa atenção diferenciada, se há estratégias, voluntárias ou não, para estabilizá-la e que tipo de dificuldades ou facilitadores podem ser identificados no exame da experiência. As diferenças explicitadas foram, posteriormente, correlacionadas com as atitudes natural e fenomenológica conforme diferenciadas por Husserl (1986).

A atitude fenomenológica se caracteriza, na concepção deste filósofo, pela suspensão do juízo. Esta suspensão ganha um termo próprio, resgatado da filosofia grega: épochè. Husserl sustenta que na atitude natural, cotidiana, um fenômeno geralmente não é apreendido por si mesmo, mas sim a partir de um juízo prévio. A suspensão do juízo na atitude fenomenológica promove uma abertura de sentido diante do fenômeno apreendido.

A epochè surge, dentro da abordagem dialógica, como pressuposto necessário para que o encontro genuíno EU-TU possa acontecer. Nela, entende-se que todo ser está sempre em relação e, portanto, é este aspecto relacional que será trabalhado na terapia. Trata-se de uma aproximação do cliente por parte do terapeuta, de modo a provocar o que chamamos de aceitação, confirmação e inclusão. O terapeuta coloca à margem seus pressupostos sobre o cliente e sua experiência, e aproxima-se destes de modo a reconhecê-los em sua singularidade.

De tal modo, vemos que o encontro EU-TU só pode se dar a partir de uma postura suspensiva e fenomenológica do terapeuta.
Veremos como este e outros modos de relacionar-se na clínica estão ligados aos modos de atenção descritos pelos psicoterapeutas nas entrevistas. Para que os relatos dos entrevistados se aproximassem de sua experiência efetiva buscamos uma metodologia que facilitasse o discurso espontâneo em detrimento de um que reproduzisse teorias e opiniões prévias.

Utilizamos então o método de Pierre Vermersch (1994), denominado “Entrevista de Explicitação”. Nele, o entrevistador participa ativamente de uma introspecção guiada, mas não dirigida, convidando os participantes à prática da atitude fenomenológica e à explicitação de sua experiência. O entrevistador quer fazer com que a experiência fale através do entrevistado, e não que o entrevistado fale sobre a experiência.

Para discutirmos as entrevistas, as agrupamos no que apresentavam em comum e depois nomeamos tais agrupamentos. É importante dizer que há um entrecruzamento entre todos eles, que não podem ser tomados como categorias isoladas, já que são núcleos de sentido e emergem de um mesmo contexto.

Apresentaremos aqui alguns destes eixos temáticos por conterem discussões relevantes à experiência clínica. Deixaremos de lado, por sua extensão, os recortes das entrevistas, mas os mesmos estarão presentes na apresentação de forma a ilustrar o trabalho proposto.

Tempo de experiência clínica

Os entrevistados falam que independentemente do tempo de experiência profissional e, por mais que se sintam preparados, devem sempre estar atentos para o que emerge no encontro. Em um atendimento de rotina tal movimento precisa ser mais ativo, pois a atenção pode se tornar automatizada.

Na abordagem dialógica esta questão é resolvida pelo que se entende por presença. A psicoterapia baseia-se na busca pelo encontro genuíno, e para que ele aconteça, é necessário que o terapeuta esteja totalmente presente, no aqui e agora, tentando incluir-se no mundo do outro:

“A Inclusão por sua vez é o ato de entrar no mundo do outro sem perder a sua própria awareness. É mergulhar profundamente no apelo incessante do outro com toda a sua riqueza existencial. (...) Essa instigação atrevida de ir ao encontro do outro, incluir-se no mundo do outro e que pede toda uma mobilização de si mesmo naquele momento.” (AMORIM, 2002)

Tal postura ativa evita que se caia no automatismo, pois pede constantemente a renovação tanto da presença quanto da atenção do terapeuta. O tempo de experiência clínica não serviria então como incentivo a uma repetição impensada da postura que se tem na clínica, mas como fonte de experiência para lembrar- se da importância de se estar presente de forma ativa no encontro terapêutico. O terapeuta não é espectador do processo, mas participante importante do mesmo.

Atenção e influências externas.
Uma das variáveis que afetam o modo de atenção na clínica encontrada nas entrevistas foi a presença de algum fator externo ao encontro clínico, que atravessa a atenção do psicoterapeuta. Um dos entrevistados mostra como que ao longo de seu trajeto na clínica vem conseguindo separar melhor o momento do atendimento das influências externas, tais como pensamentos e experiências de sua vida pessoal. Ele conta como costumava comparar a experiência trazida pelo cliente com a sua, e como isso o afastava daquela.

Esse movimento pode ser pensado como a proposta da postura dialógica de inclusão em lugar de empatia. A ‘comparação’ citada pelo entrevistado é uma tentativa de empatizar com a experiência de seu cliente, movimento que o impede de ver a experiência tal como se dá a este, idéia contida na chamada inclusão de Buber (HYCNER, 1995, p. 59).

Do esforço à tranquilidade.
Os entrevistados percebem esforço na atenção que têm na clínica, de modo que não a descrevem como uma atitude sempre de tranqüilidade, mas como algo que muitas vezes requer concentração e trabalho. Com o tempo, essa atenção passa de um modo ativo e de maior esforço para um modo de espera e sereno.

A que os entrevistados se referem como seu modo de atenção na clínica Buber chama de presença, como antes já descrito. Sobre como estar nessa presença, encontramos em Hycner (1995, p. 113): “ (...) a presença não pode ser técnica. Ela é um reconhecimento do mistério e da permeabilidade de nossa existência.”

O autor fala da impossiblidade de forçar o encontro EU-TU, sendo possível apenas preparar-se para ele. O esforço citado pelos entrevistados se refere a um movimento baseado na concepção de que tal encontro poderia ser deliberadamente provocado, controlado.

A tranquilidade é atingida por uma postura de entrega: “Enquanto tateia no escuro, luta. Vagarosamente, conquista. Na conquista, sucumbe; sucumbindo, ilumina-se.” (BUBER apud HYCNER, 1995, p. 38)

Atenção e Postura Investigativa.
O esforço também é relacionado à postura investigativa que se pode tomar, caracterizada pela pressa em entender o paciente e reter o máximo de informações sobre ele. Tal postura refere-se a uma preocupação com as informações, dados e conteúdos trazidos pelo cliente, e a uma forma do terapeuta lidar com eles de modo a montar uma ‘história’ coerente, reconhecendo nexos causais na mesma.

A Gestalt-terapia tem como base metodológica a fenomenologia. A chamada ‘observação fenomenológica’ preza pela captação do ‘como’ o cliente traz tais informações, sem desprezar seu conteúdo, mas voltando sua atenção ao ato, à maneira como ele o coloca. Esta abordagem focaliza o processo e referencia no presente aquilo que é dito, mesmo as possíveis explicações causais.

O fenômeno é aquilo que se mostra, e o terapeuta em sua presença dialógica não se preocupa em buscar o que supostamente está ‘por trás’ daquilo que é falado. Ao buscar uma antecedência, o terapeuta perde a emergência do fenômeno. Hycner, citando Maslow, ressalta que “É necessário um tipo de ‘mente’ para assimilar fatos, e outro tipo para assimilar a presença do ser humano.” (1995, p. 33)

Disponibilidade afetiva e vínculo terapêutico.
Segundo as falas dos entrevistados, a relação entre atenção e vínculo terapêutico se dá à medida que a atenção é facilitada pela maior disponibilidade afetiva para atender o cliente. Por disponibilidade entendemos uma predisposição para aceitar a experiência do cliente e validá-la como alteridade, em um movimento de aceitação e confirmação, respectivamente. Tal postura torna possível ao terapeuta incluir-se, permitindo um encontro genuíno no qual o modo de atenção se dá com
menos esforço.

Ao mesmo tempo, aparece uma dificuldade para se manter atento quando o psicoterapeuta não se sente muito disponível para dado cliente, tendo, consequentemente um vínculo terapêutico que não é forte. Podemos chamar isso de uma ‘resistência do terapeuta’, onde possivelmente determinado caso trate de questões que para ele são igualmente complicadas. Nos deparamos aqui com o conceito de “curador ferido”, que aponta a condição humana do terapeuta, sob a qual sempre haverá alguma questão não resolvida, alguma ‘gestalt aberta’. Para Hycner (1995), no entanto, essa condição não é impeditiva do processo terapêutico, sendo a ferida uma forma do terapeuta sensibilizar-se frente a questão do cliente, possibilitando aproximar-se dele e deixar emergir o encontro EU-TU.

Atenção como atributo profissional.
Outra variável que parece afetar a atenção dos entrevistados é o fato sentirem-se mais responsáveis por sua escuta por estarem ligados profissionalmente ao cliente, na relevância de um âmbito profissional. Hycner (1995) aponta que, por se tratar de uma “profissão paradoxal”, tal responsabilidade não se trata apenas da busca do conhecimento técnico correto, mas do quanto devem ser capazes de responder ao chamado existencial do encontro. Ser responsável não se esgota em dominar a produção de saber disponível, pois a mesma não garante a efetividade em um trabalho que tem por status ontológico uma esfera relacional.

Bibliografia

AMORIM, T. A Postura dialógica na abordagem gestáltica. VIII Encontro de Gestalt em Goiania, 2002.

HUSSERL, E. A Idéia da Fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1986

HYCNER, R. De pessoa a pessoa:Psicoterapia Dialógica. Summus Editorial, 1995.

VERMERSCH, P. L’entretien d’explicitation. Issy-les-Moulineaux: ESF éditeur, 1994.