Workshop 3: “Posso ir?... Quantos passos?” A difícil arte de desapegar e ir em frente.

 

José Amâncio Santos Neto

 

Resumo
Encontro dedicado a conhecer um pouco mais das nossas relações
e reconhecer tipos de vínculos e padrões que ancoram nossas vidas impedindo caminhos em outras direções.

 

Proposta
“Mamãe... posso ir?” é uma conhecida brincadeira de criança que consiste, primeiramente, em traçar duas linhas no chão, com uns 8m de distância entre elas. Alguém é escolhido para ser a mamãe e fica numa das linhas, de costas para os jogadores. Os outros ficam na outra linha, um do lado do outros. Um por um, os jogadores tentam chegar à mamãe, perguntando “mamãe posso ir?”. A mamãe, que está de costas, responde dando ordens que o jogador tem que seguir. Alguém tem de ser o juiz, para ver se as ordens vão ser cumpridas direito. Se ela mandar dar passos de formiguinha, o jogador dá passos bem pequenos. Passos de canguru são pulinhos. Se ela disser dar passos de cachorro o jogador tem de andar de quatro.

A mamãe pode mandar andar pra frente ou para trás, quantos passos ela quiser. Os jogadores também podem combinar outros tipos de passos. Ganha quem chegar primeiro até a mamãe.

O nome da brincadeira “Mamãe, posso ir?” sinaliza as autorizações que perpetuam dentro das relações as quais as pessoas, independentes dos filhos, acreditam que só podem sair ou seguir em frente, ou até mesmo recuar, diante de que alguma “autoridade” que possa lhe conceder este direito. Deste modo, esta brincadeira de criança permite explorar como os personagens envoltos vivem os seus papéis e como as situações de “proximidade x distância”, encontro x separação facilita a experimentação da dinâmica relacional do nosso dia a dia, isto é, o olhar para outras dimensões dos nossos espaços e atuações dentro do mesmo.

O “campo” de atuação, dentro da brincadeira, é um espaço de ir e vir obedecendo a uma regra que só pode ser cumprida dentro de seus limites traçados. Este “campo” delimitado do jogo pode também ser lembrado como outros espaços demarcados ou restritos no nosso dia a dia, dentro de um determinado tempo (minutos, horas, dias...), e pode lembrar cenas ou fatos de; nossa casa, nosso negócio, nosso emprego, nosso compromisso em relação ao que ocorre neste lugar e nossa atuação dentro deles.

Embora sendo uma brincadeira, e bem simples por sinal, há outros dados importantes para refletirmos dentro do nosso dia a dia, como por exemplo: a mãe (no papel que comanda o jogo) fica d e costas e faz parecer que o resultado é um mero acaso, embora exista toda uma condição de ouvir quem fala durante o pedido de posso ir, e com isto pode ser levado em consideração, o como escolher por esta mãe.

O juiz é a lei que faz obedecer às mensagens ou ordens para que não haja uma possível injustiça ou trapaça por parte dos competidores. É claro que este juiz também é um participante do jogo e que possivelmente estará em outro momento em um novo lugar dentro deste mesmo jogo. Mas, diante da imaginação fértil e reflexiva que nos acompanha o que seria esta figura que não nos deixa dar pulos de canguru tendo que dar passos de formiga e que nos obriga a cumprir algo diante de uma ordem dada? Como conviver em uma situação que alguém toma conta dos nossos atos para que sejamos aceitos (no cumprimento do dever) diante do que é esperado ou imposto, tendo o comando “sempre”, razão sobre a informação dada. E o que pode ser pior, é nos acostumarmos com isto. Talvez este acostumar, estagnar, permanecer no jogo, não criar nenhum subsidio para transformar, é que me levou a buscar dados na situação confluente nas relações (saudáveis ou não).

Por fim, somei retirando a palavra mamãe, a frase que é perguntada pelos envoltos na brincadeira; quantos passos. Assim ficou: “Posso ir... quantos passos?”, quem sabe numa alusão a chamada de identificação do “eu” como responsável pelas transformações no momento presente.

Saindo um pouco da brincadeira e das cenas propus algo como “’eu posso ir e sinto quantos passos quero dar”, baseado, nas palavras de Ribeiro (1985): “[...] A lei que rege o funcionamento do homem diz respeito à busca incessante de atualizar suas potencialidades, principalmente sua base positiva, caracterizada por um impulso de auto-regulação. Neste aspecto, sua energia de vida esta diretamente ligada à sua capacidade de atualização” (p. 107-8).

Dentro dos trabalhos individuais percebemos clientes com dificuldade na relação de contato com pessoas ou quaisquer outras fontes que possam alimentar “um sair do lugar conhecido”, criando algo emergente, ou talvez surpreendente, que quebre parte de uma estagnação que normalmente não é clara e por vezes vista como um ponto confortável dentro de sua(s) vida(s). É sem dúvida uma dificuldade de estar presente e através deste momento aproveitar as várias mudanças em si e no meio que o circunda.

Na Apresentação à edição brasileira do livro Gestalt-terapia, Frazão (1997) cita a ênfase dada por Perls e Goodman a Awareness, referindo-se a capacidade de aperceber-se do que se passa dentro de si e fora de si no momento presente, em nível corporal, mental e emocional. É a possibilidade de perceber simultaneamente os meios externo e interno através dos recursos perceptivos emocionais, embora em determinado momento alguma coisa (interna ou externa) possa se tornar mais proeminente.

Em seu livro Ego, fome e agressão (1947), referindo a sua teoria do metabolismo mental, Perls conclui que a confluência é “a “fusão” do leite na boca do lactante, denotando a ausência de limite do Eu.” (PEARLS apud D’ACRI, 2007, p. 52)

Deixo fluir uma imagem, a partir desta citação, e vejo a boca do bebê junto ao seio da mãe em que este adquiriu um néctar tão bom que, mergulhando neste encontro, perde todos os sinais ao redor, até mesmo o de que pode ser necessário sugar mais ou quem sabe, deixar o seio se satisfeito.

Ampliando esta noção de confluência, nas relações cristalizadas, os parceiros tendem a mergulhar em um mundo em que o “eu” perde o sentido e não há nenhum contato com a realidade fora do conhecido que, pelo próprio ritmo de convivência, já afasta qualquer novidade. Deste modo, se assemelha à situação vivida pela criança no que tange a “fusão do leite na boca” e a perda do “eu”, onde um e outro se fazem um só. É como se encontrando a metade do outro e se unindo a sua metade (Pai x filho, marido x mulher, sócio x sócio, patrão x empregado), estabelecesse um todo sem indivíduo(s), sem “eu(s)” identificado(s).

O ideal de amor romântico, a outra metade da laranja, a difícil tarefa de saída do núcleo familiar original, o início de uma nova caminhada afetivo-sexual, são momentos que sugerem dificuldades na separação para união, do fim de um caminho como referência e encontro de um “eu” que a partir de “si”, busca uma nova etapa.

Lembrando Martin Buber (1974); este Eu que encontra um Tu e concebem encontros, desencontros, diferenças, singularidades e respeito, faz-se um “nós” com Eu(s) distinto(s) e com referências próprias mantidas. O “nosso” existe, a partir do que é comum e significativo a relação, sem perder as valências e forças existentes no currículo de vida de cada um “eu” envolvido. Não há perda do que é figural e também há importância do que emerge do fundo como gerador de valores e sentido de crescimento e aprendizado.

Esta confluência é citada por Polster & Polster (1979, p. 107) “É importante ressaltar que é a dissolução da relação figura/fundo, e não da relação sujeito/objeto que principia o fenômeno da confluência.” Estes autores reforçam que a confluência é como um “fantasma perseguido pelas pessoas que desejam reduzir as diferenças para moderar a experiência perturbadora da novidade e da alteridade” (1979, p. 95).

Na experiência do autor, trabalhos de grupos abrem perspectivas quando, emergentes despertados por outros participantes, colaboram através da emoção surpreendente que toca e vislumbra um caminho que com tato e cuidado por parte do terapeuta e habilidade com o grupo, levam a identificação dos sentimentos aprisionados por alguém envolto em situação confluente.

Segundo Perls (apud D’ACRI, 2007, p. 52), “Confluência significa a não- existência ou a não-consciência de fronteiras (...). A confluência é a condição de não-contato (...) – trata-se de um vazio estéril, experienciado como nada, diferente do vazio fértil que é experienciado como algo emergindo. A distinção entre confluências saudáveis e as neuróticas é que as primeiras são potencialmente contatáveis (...) e as últimas não podem ser contatadas devido à repressão”.

É importante perceber que o estado confluente é delicado e sutil para quem está envolto. O terapeuta pode ser visto como alguém que ameaça a confluência, retratada neste trabalho como o estado de “fusão do leite na boca do lactante e a perda da dimensão do “eu”.

À medida que crescemos cronologicamente (Cronus), nossos hábitos se repetem obtendo cada vez mais força em suas estratégias conhecidas, repetindo fatos e desenvolvendo características previsíveis com a tendência repressiva destes controles. Retomando Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 252); a confluência é a condição de não-contato.

Quando crescemos vivencialmente (Kairós), a tendência é que os nossos hábitos sejam modificados através da interação com pessoas, objetos e o meio, permitindo que a repetição não ocorra ou que seja mais leve, para serem potencialmente contatáveis. Não há garantias nem certezas no que não se conhece, mas é exatamente aí que o crescimento ocorre com movimento, novidades e presença.

O conceito de ajustamento criativo permite embasar esta idéia quando é descrito como o “processo pelo qual a pessoa mantém sua sobrevivência e seu crescimento, operando seu meio sem cessar ativa e responsavelmente, provendo seu próprio desenvolvimento e suas necessidades físicas e psicossociais” (MENDONÇA apud D’ACRI; LIMA & ORGLER, 2007, p. 21).

Em suma, podemos vislumbrar através da brincadeira em questão (Mamãe posso ir?), como são corriqueiras as ordens, as regras, os valores educacionais, religiosos, estabelecendo ditos de comando dentro de um território demarcado como o lar, a escola, o colégio, a instituição religiosa, nosso emprego, nossas relações e, acabamos muitas vezes vivendo como nos oito metros da linha do jogo citado, na dependência de algum comando que se faça norte (mãe) com presença(s) que observa(m) e toma(m) conta do seu ato (juiz), envoltos com pessoas que amamos ou não, e ainda assim aceitando e permanecendo no mesmo lugar (participantes envoltos em chegar até a mãe). Sair deste lugar gera situações de tensão, exigências, ressentimentos e culpa que fazem recuar a um lugar conhecido, controlado e sem energia para uma nova ação. Retomando os Polsters; “a culpa é um dos principais sinais de que a confluência foi per turbada (...) e a outra pessoa que sente que houve uma transgressão contra si experiência uma justa indignação e um ressentimento.” (POLSTER & POLSTER apudD’ACRI; LIMA & ORGLER, 2007, p. 53).

Trabalhos em grupo são verdadeiros palcos de emoção genuína onde o despertar de sentimentos pode ocorrer a partir de “eu”, do “tu”, do “nós”, do “nosso”, com a beleza do novo, do desconhecido, do inesperado nos ofertando de forma ativa, ainda que num silêncio, e passiva diante do movimento, o crescimento do”ser”.

O grupo é indivíduo e totalidade, é um campo de escolhas, onde cada um pode naturalmente se fazer presente em sua singularidade ou ousadia e a emoção desafia o legado de se conhecer em sentido, o que realmente explodiu em primeiro ato. Por esta simplicidade e profundidade, acredito estarmos de posse de um ferramental precioso para lidar em qualquer atitude comportamental, pois o respeito pelo “ainda” desconhecido, nada mais é do que a busca de crescimento e saber (assimilação).

Um bom motivo para esta busca nos enfatiza Perls (2002, p. 198): “não devemos ficar satisfeitos em tornar consciente o material inconsciente, em “vomitar” o material inconsciente. Devemos insistir em que deveria ser remoído e, portanto, preparado para sua assimilação.” E sobre escolhas e assimilação Gary Yontef (1998, p. 28) traduz: “as pessoas crescem abocanhando um pedaço de tamanho apropriado (seja comida, idéias, ou relacionamentos), mastigando-o (considerando) e descobrindo se é tóxico ou nutritivo. Se nutritivo, o organismo o assimila e o torna parte de si. Se tóxico, o organismo o cospe fora (rejeita-o).”

Reforçando o que disse sobre a importância dos trabalhos de grupo, concordo com o casal Polsters (1979) quando “recomendam como antídoto para a confluência, o contato, a diferenciação e a articulação (POLSTER & POLSTER apud D’ACRI; LIMA & ORGLER, 2007, p. 53). Aliás, este por certo é um bom antídoto para busca de uma atitude saudável.

 

Referência bibliográfica

BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Moraes, 1974.

D’ACRI, G. Confluência. In D’Acri, G; Lima, P; Orgler, S. Dicionário de Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2007.

D’ACRI, G., LIMA, P.; ORGLER, S. Dicionário de Gestalt-terapia: Gestaltês. São Paulo: Summus, 2007.

FRAZÃO, L. M. Apresentação a edição brasileira. In PERLS, F, S; HEFFERLINE; R. GOODMAN. P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.

MENDONÇA, M. M. Ajustamento Criativo. In D’ACRI, G; LIMA, P; ORGLER, S. Dicionário de Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2007.

PERLS, F. S. Ego, Fome e Agressão. São Paulo: Summus, 2002.

PERLS, F, S; HEFFERLINE; R. GOODMAN. P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.

POLSTER, E; POLSTER, M. Gestalt-terapia Integrada. Belo Horizonte: Interlivros, 1979.

___________________. In D’Acri, G; Lima, P; Orgler, S. Dicionário de Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2007.

RIBEIRO, J, P. Gestalt-terapia: refazendo um caminho. São Paulo: Summus, 1985.

YONTEF G, M. Processo, Diálogo e Awareness. São Paulo: Summus, 1998.