Mini-curso 6: Sexualidade e vergonha: o que eu escondo, me esconde?

 

Renata Escarlate Coelho Neto

 

Resumo
O presente trabalho tem como objetivo questionar e esclarecer o papel da vergonha nas interrupções de contato sexual e propor uma reconexão entre a pessoa e seus conteúdos ocultos, durante o processo terapêutico, baseado no pensamento clínico gestáltico, em busca de uma maior qualidade de vida sexual.


Proposta

Ao lidarmos com o sentimento de vergonha precisamos, em um primeiro momento, ter bem clara a diferença entre vergonha e culpa. Gary Yontef (1998) nos coloca que: “A vergonha refere-se à natureza básica e à existência da pessoa.

Como a vergonha tende a ser um sentimento referente ao self inteiro “não ser suficiente”, a culpa é o sentimento que acompanha a experiência de se ter feito algo ruim, ter magoado alguém ou ter infringido algum código moral ou legal.” (p. 373)

Ou seja, vergonha é um sentimento existencial, que está vinculado a uma crença de inferioridade ou insuficiência da pessoa como um todo e culpa diz respeito a uma experiência, um fenômeno, um momento.

Em consequência disso, podemos bem perceber que a vergonha é mais profunda do que os “deverias” que adquirimos ao longo da vida, mas é também um sentimento acompanhado de uma infinidade de introjeções de como a pessoa gostaria de ser, ou acredita que teria que ser para tornar-se aceitável aos outros ou a seus próprios padrões: “A introjeção, pois, é o mecanismo neurótico pelo qual incorporamos em nós mesmos normas, atitudes, modos de agir e pensar, que não são verdadeiramente nossos.” (PERLS, 1981, p. 48). Tais introjeções nos levam a um distanciamento do self autêntico, e é aí que começam as interrupções na sexualidade: quanto menor for o grau de contato autêntico que uma pessoa puder ter consigo mesma, menores são suas possibilidades de manter contatos plenos com outras pessoas.

É neste processo que nos deparamos com as ocultações dos conteúdos inaceitáveis à totalidade da projeção de aceitabilidade da pessoa: se “a projeção é essencialmente um fenômeno inconsciente. A pessoa que está projetando não pode distinguir satisfatoriamente entre os mundos interior e exterior. Visualiza no mundo exterior aquelas partes de sua própria personalidade com as quais se recusa a se identificar.” (PERLS, 2002, p. 230-1), torna-se natural que deduzamos que as partes inaceitáveis da personalidade estejam ocultas.

Para que produza esta ocultação, a pessoa precisa interromper seu contato com seus comportamentos, desejos, anseios, impulsos e manifestações espontâneas que estejam fora dos padrões projetados como aceitáveis.

“A experiência de vergonha sempre é acompanhada por um desejo de se esconder. (…) Esse esconder-se pode ser acompanhado por uma máscara facial pétrea, evitando atrair a atenção sobre si, e assim por diante.” (YONTEF, 1998, p. 379)

Esta necessidade de esconder-se, de sumir, acaba por atrapalhar as relações interpessoais como um todo, porém as interrupções na vida sexual são inevitáveis, uma vez que o contato é a única forma de se obter plenitude sexual e que para tanto é necessário que os cinco sentidos, o movimento e a fala estejam a serviço dele e não a serviço de sua interrupção, como estão no caso da necessidade de ocultação ou desconexão com os aspectos negados da personalidade.

Outra consequência da negação de aspectos da personalidade que resultem em falta de desconexão é a falta de auto-conhecimento, tão fundamental no posicionamento interpessoal genuíno. O trabalho do gestalt-terapeuta é fazer o caminho de volta, na busca da plenitude sexual, da integração de tais aspectos, do abrir mão da vergonha e das introjeções que a acompanham e refazer o direito ao toque, ao afeto e à aceitação do outro, através da aceitação de si mesmo.

“O processo especial que permite que o indivíduo faça contato consigo mesmo pode permanecer orientado apenas na direção de seu próprio crescimento autocontido, ou pode servir como um trampolim que sustenta o desenvolvimento da função de contato com outra pessoa.” (POLSTER, 2001, p. 119)

Isso quer dizer que uma relação interpessoal de contato envolve uma retomada prioritária de contato consigo mesma, uma vez que para evoluir para um contato construido, uma pessoa precisa saber o que tem de recursos pessoais para enfrentar os riscos de estar com o outro, assim como o que tem para e deseja oferecer e o que busca nesta relação.

A vergonha leva ao isolamento, à ocultação e, a partir disso, a pessoa fica presa a um mecanismo neurótico de auto-confirmação das “certezas” neuróticas, que entra em ação, sustentando a pessoa na posição de vergonha e auto-flagelo:

“O esconder-se isola a pessoa e cria um círculo vicioso. Sem interação e feedback, ela não tem aporte informativo para contradizer o sentimento de vergonha. Cada awareness leva à vergonha, a vergonha leva à vontade de esconder-se; assim, vergonha leva à vergonha de ser envergonhado e ficar envergonhado por querer esconder-se. Quanto mais a pessoa precisa ou deseja contato, mais intenso é o sentimento de vergonha. Isto leva a mais ocultação e isolamento, e pode significar um regresso infinito.” (YONTEF, 1998, p. 380)

No encontro sexual, este sentimento pode se tornar ainda mais intenso, por conta da exposição corporal, da necessidade de entrega, da necessidade de contato com o próprio corpo e outra infinidade de concessões e detalhes que tornam o estar com outra pessoa prazeroso ou não. As idealizações, projeções e introjeções tornam o encontro muito pouco natural e em alguns casos até desconfortável. Não tem como construir um desejo próprio sem poder fazer contato uma parte de si, por isso o evergonhado se afasta do outro que não lhe desperta atração, uma vez que o aproxima de si mesmo.

O importante, para a recuperação do desejo de entrega, de poder obter prazer nas relações é poder reintegrar aquilo que se achava perdido no relacionar-se: estar em contato consigo mesmo e poder usar a totalidade de seu ser a serviço do contato interpessoal.

“Crescimento e desenvolvimento, para a Gestalt-terapia, implica na ampliação, via awareness, do contato com aspectos alienados do si-mesmo e no processo (muitas vezes doloroso) de incluí-los e aceitá-los
como partes integrantes da pessoa.” (SOUTO, in FRAZÃO, 2008, p. 165)

Este é o caminho de volta da vergonha, em direção a uma vida plena de contato: integrar e aceitar a totalidade do ser e permitir que o outro também seja inteiro e integralmente aceitável, para que possamos nos ver mutuamente, ver a nós mesmos, aprender e crescer nos relacionamentos interpessoais e jamais termos a necessidade de esconder algo nosso ou de nos escondermos de nós mesmos

Referência bibliográfica

FRAZÃO, L.M.; ROCHA, S.L. Gestalt e Gênero – Configurações do masculino e feminino na contemporaneidade. São Paulo: Livro Pleno, 2008.

PERLS, F.S. A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

__________. Ego, fome e agressão. São Paulo: Summus, 2002.

POLSTER, E.; POLSTER, M. Gestált-terapia integrada. São Paulo: Summus, 2001.

YONTEF, G. Processo, diálogo e awareness. São Paulo: Summus, 1998.