Mesa 4: As mulheres que somos e as que nos batem à porta - feminino: peculiaridades no atendimento clínico

Palestrantes: Eleonôra Torres Prestrelo, Magda Dudenhoeffer e Patricia Lima – Ticha.
Moderadora: Márcia Estarque Pinheiro da Silva.

Resumo:
A proposta desta mesa é trazer algumas observações feitas no atendimento a mulheres enfocando aspectos históricos, culturais e sócio-afetivos.
A partir destas observações nossa intenção é promover o debate no qual possamos refletir não só sobre as peculiaridades das mulheres que encontramos em nossas clínicas - considerando suas “queixas” e as “sintomatologias” mais usuais este momento histórico -, mas também sobre as mulheres que temos sido em nossas próprias vidas.

 

4.1 O exercício do feminino no séc. XXI: uma visita à caverna de Platão?

Eleonôra Torres Prestrelo

O foco na questão do feminino, no sentido do que pertence ou se refere ás mulheres sempre ocupou espaço importante de investigação em minha vida, haja visto ter sido tema de minha dissertação de mestrado. O interesse se mantém, creio, pela vivência cotidiana do exercício de minha feminilidade e os questionamentos decorrentes do que isso implica e pela prática clínica em consultório, onde o acolhimento das questões referentes à alma humana – inclusive ou com mais freqüência – a feminina, são constantes.

A prática clínica, embora vista, muitas vezes, como uma atividade limitadora do entendimento do mundo, pois aconteceria dentre as quatro paredes de um consultório, distanciando terapeuta e cliente do mundo “lá fora”, se constitui, segundo meu ponto de vista, numa forma direta de pesquisa do campo de possibilidades do existir. Talvez por abraçar a Abordagem Gestáltica, uma concepção terapêutica de inspiração fenomenológico-existencial, não consigo imaginar tal distinção, pois “A concepção de existência como ‘ser-no-mundo’ representa modificações radicais de ordem filosófica e epistemológica. A existência é o ‘lugar’, é o ‘aí’ onde há ‘mundo’, e ‘mundo’ já é sempre o ‘aí’ onde a existência é.

Existência e “mundo” são co-originários. Um não é anterior ao outro”. (SAPIENZA, 2008, p. 29) Quando exerço a clínica em meu consultório particular, na supervisão de estágio de um serviço de atendimento social da instituição de ensino na qual trabalho, em grupos comunitários nos quais atuo e os questionamentos do lugar do feminino aparecem sistematicamente, olhar para essa cartografia social se faz inevitável, pois não há conflito descontextualizado.

Um pouco de história
A família patriarcal brasileira reproduzia um modelo de dominação econômica e social. A condição de inferioridade da mulher em relação ao homem era incontestável, embora em algumas situações, ela tenha obtido considerável poder de mando sobre a escravaria doméstica ou mais concretamente, quando ficava viúva, pela necessidade de levar à frente a propriedade herdada do marido. Uma coisa, no entanto, era certa, sua autoridade se mantinha sempre limitada.

Na segunda metade do século XIX, com a crescente urbanização e industrialização subseqüente, a vida da mulher ganha uma nova dimensão – a mudança de seu papel no sistema econômico-produtivo. A mulher começa a trabalhar em fábricas, lojas e escritórios, e conseqüentemente, a necessidade de escolarização se faz sentir cada vez mais forte, apesar da resistência da sociedade à ampliação do grau de instrução feminina. A maior participação da mulher no mundo exterior, embora não representando uma reivindicação de igualdade dos papéis sociais entre o homem e a mulher, proporcionou uma gradual conquista na vida social.

A observação do papel secundário e da opressão feminina na estrutura familiar patriarcal brasileira é de fundamental importância e nos remete ao caráter universal dessa caracterização, não estando ele restrito apenas a esse tipo de estrutura social.

Em quase todas as culturas estudadas o fenômeno da subordinação da mulher ao homem é um elemento presente. Seja de forma explícita, seja de forma sutil.
A valorização do elemento masculino se tem perpetuado através dos tempos, representada em valores e atitudes diversas. Essa representação é alicerçada em argumentos que vão desde a crença num determinante de superioridade biológica - haja visto a crença no século passado de que a massa cinzenta do cérebro da mulher seria menos pesada que a do homem, limitando-a intelectualmente, como justificativa às diferenças gritantes entre o ensino destinado a homens e mulheres - até a determinação cultural de seu domínio no âmbito público.

A determinação desses papéis retrata um conjunto de valores característicos de uma sociedade. Existe, de fato, diferença na constituição biológica dos sexos, porém, sentimentos e comportamentos humanos não são elaborados a partir da biologia, e sim, da interação das estruturas biológicas com determinantes culturais específicos. “O que é ser homem ou o que é ser mulher dependerá das interpretações biológicas associadas a cada modo cultural de vida.” (ROSALDO e LAMPHERE in PRESTRELO, 1998, p. 17)

Longe de querer enveredar pelo caminho, sem dúvida mais fácil, de começar a polarizar essa discussão em termos de “guerra dos sexos”, gostaria de refletir sobre os atravessamentos dessas mudanças na contemporaneidade. As conquistas femininas também provocam uma reorganização do que chamamos de masculino, trazendo uma simetria maior entre estes contextos. Mas será que alguma coisa não se perdeu no caminho? Será que esta nova configuração do feminino não constitui também um outro aprisionamento?
A mulher, sem dúvida, se insere cada dia mais no mercado de trabalho, aumenta sua participação na vida pública, etc. No âmbito privado, no entanto, continua sendo aquela responsável pela casa, manutenção dos filhos... e do marido! Funções acumuladas.

O que me acontece, acontece num determinado espaço-tempo, num campo existencial constituído por uma história, pela cultura, pelas instituições sociais estabelecidas onde se entrelaçam valores, normas, sentimentos. Seguindo essa perspectiva, também as disfunções relacionais, os sintomas, são assim produzidos e produtores do mundo no qual estamos inseridos. Olhando apenas para minha área específica de atuação, constatamos nas mulheres, o desenvolvimento de sintomas até bem pouco tempo característicos do masculino: stresss, hipertensão, prevalência de doenças cardio-vasculares, sintomas difusos. Nos diz Morgan, “Os seres humanos possuem uma inclinação toda especial para caírem nas armadilhas criadas por eles mesmos”. (1996, p. 205)

E é aí que me vem a imagem da alegoria da caverna de Platão, será que não estaríamos nós, prisioneiros da aparência?

Exercitemos, pois, o benefício da dúvida...

 

Referência bibliográfica
MOREIRA,V.; SLOAN, T. Personalidade, ideologia e psicopatologia crítica. São Paulo: Escuta, 2002.

PERLS, F. A abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia
. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
_______. Gerstalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.

PRESTRELO, E. T. Em busca de novos papéis sexuais na relação
amorosa: um estudo sob a ótica feminina. Dissertação de Mestrado, PUC/RJ, 1998.

SAPIENZA, T.B. Conversa sobre terapia. São Paulo: EDUC; Paulus, 2004.

 


4.2 Em cada canto um encanto, em cada canto uma dor. Semelhanças e diferenças no que é trazido para sessões de psicoterapia por mulheres de classes sociais diferentes.

Magda Campos Dudenhoeffer

O tema surge a partir do início de um trabalho voluntário de atendimento psicoterápico num ambulatório de uma instituição filantrópica que passei a desenvolver desde 2008. Inicialmente, comecei a perceber que como no consultório particular, onde trabalho há mais de 25 anos, a maioria esmagadora dos clientes é formada por mulheres de faixa etária variada.

As questões trazidas pelas clientes do ambulatório aparentemente semelhantes àquelas do consultório particular tinham algo de diferente que começou a despertar minha atenção e interesse. O que estava eu escutando?

“A atenção do terapeuta deve estar centrada não apenas no conteúdo do relato, mas principalmente em como tal conteúdo é narrado.” (JULIANO, 2010, p. 20)
Prestando atenção cuidadosa ao conteúdo que me era trazido comecei a fazer algumas observações que me proponho a trazer como contribuição para o tema desta mesa.
Não há como negar que todo ser humano sofre influência direta do grupo social a que está inserido. “ A sociedade e a cultura em que vivemos influenciam nossas formas de sentir, de nos comportar, pensar, desejar, nos relacionar conosco e com os outros.” (CIORNAI, 1999, p. 54)

Desde o primeiro encontro, as mulheres do ambulatório costumam saber com clareza o que as trazem ali. Falam de uma dor explícita e a presença de um outro atento a escutá-las é motivo para que falem de suas dores de forma concreta, exposta. É como se o espaço aberto se transforme em oportunidade única de extravasar seus pensamentos e sentimentos privados. Muitas delas ao acabar um relato se surpreendem com o que acabam de falar e dizem nunca terem contado tal fato para ninguém. O fato de se escutarem e de serem escutadas é inusitado.

Como acredito que “o objetivo da psicoterapia é a restauração do diálogo do cliente com seu mundo. Partimos do pressuposto de que em algum ponto do seu desenvolvimento, esse diálogo foi gravemente interrompido, o que tornou a pessoa descrente das suas possibilidades.” (JULIANO, 2010, p. 20) Comparando as “possibilidades” dos meus dois grupos de clientes comecei a encontrar diferenças e semelhanças existentes entre eles. A maioria das clientes do consultório são mulheres de escolaridade universitária, algumas pós graduadas, com profissões escolhidas, antenadas com as demandas do mundo contemporâneo e com clareza
do papel feminino no contexto da atualidade. Conhecem seus direitos, lutam por eles. Reclamam de suas jornadas duplas de trabalho, da qualidade da relação com os filhos e parceiros, da insatisfação com a falta de tempo para cuidarem de si mesmas. Têm grupo de referência onde normalmente encontram eco para suas queixas e seus medos com destaque para o temor ao envelhecimento e a solidão. Conhecem bem seu lugar na sociedade, têm um discurso articulado, falam de problemas existenciais e ecológicos, mas trazem uma dor infinita por não conseguirem adequar seus saberes e discursos à vida vivida, experenciando no cotidiano o aparecimento desmascarado de inseguranças.

As clientes do ambulatório são mulheres em sua maioria de escolaridade baixa, que trabalham para suprir necessidades econômicas da família, que em grande número executam trabalhos muito parecidos aos seus afazeres domésticos, já que são empregadas em casas de família, diaristas, cozinheiras de restaurantes ou merendeiras de escolas, camareiras em hotéis ou faxineiras de prédios e escritórios. Na verdade a dupla jornada dessas mulheres é uma repetição de tarefas. Como não tiveram oportunidade de desenvolver seu pensamento crítico desconhecem alguns de seus direitos e papéis sociais. Seus incômodos surgem dos fatos vivenciados que são escancarados em suas vidas. Suas dores são reais, concretas. Suas referências são os modelos sociais nos quais foram criadas e que repetem. Poucas têm que as escutem.

Observando o que vai ocorrendo no processo terapêutico dos dois grupos vou percebendo que alguns pontos fundamentais para terapia gestáltica surgem de forma diferente.
O falar “sobre” é muito mais comum no grupo do consultório. No ambulatório o foco está totalmente no vivido e no sentido. “A ênfase é no que está sendo feito, pensado e sentido no momento, em vez de no que era, poderia ser, conseguiria ser ou deveria ser.” (YONTEF, 1998, p. 16) Contando fatos e se colocando dentro deles é mais fácil identificar as mudanças desejadas no campo do possível e como fazer para alcançá-las. A identificação das necessidades faz com que as mulheres do ambulatório se lancem no caminho de satisfazê-las de uma forma laboriosa do buscar para o alcançar.

O ressentimento pelo não dito ou não vivido se acumula muito mais no grupo do consultório. Os sentimentos não resolvidos constituem gestalts incompletas que paralisam o fluxo natural do contato com o mundo interno e externo. O grupo do ambulatório apresenta uma avidez em resolver situações e uma preocupação menor com o que pensam os outros a seu respeito. As oportunidades são aproveitadas com gana e empenho. O simples fato de conseguirem atendimento psicoterápico depois de meses de espera faz com que o vínculo criado pela oportunidade oferecida seja suporte e ao mesmo tempo abertura para o trabalho proposto. A valorização do espaço terapêutico, assim como o encontro de uma escuta interessada faz com que as clientes dos dois grupos se sintam aceitas e valorizadas, no entanto a falta de oportunidade de serem vistas e escutadas comum às mulheres atendidas no ambulatório torna o espaço terapêutico lugar de encontro consigo mesma e com um outro o que facilita a recuperação da auto-imagem e da auto-estima.

As realidades diferentes de cada grupo facilita ou dificulta alguns passos do processo. Esta realidade que cada grupo traz vem impregnada das experiências singulares vividas, associadas às realidades sociais a que estão inseridas “Cada grupo social desenvolve, na verdade, um sistema específico de tradução da realidade social, através do qual a realidade infinita é filtrada segundo critérios de significação produzida pelo grupo- objetivada, interiorizada e transmutada em realidade.” (VIEIRA, 1993, p. 13) No caso específico das questões do universo feminino o espaço terapêutico passa a ser uma nova realidade relacional a ser experimentada e capaz de restaurar o mundo individual. “Os acontecimentos e traumas, queiramos ou não são patrimônio da pessoa. O que muda radicalmente é o olhar que se tem deles. Durante o processo terapêutico há uma contínua circumambulação ao redor dessas histórias, desta feita em companhia.” (JULIANO, 2010, p. 25) A cumplicidade da relação terapêutica passa ser arcabouço da ressignificação e de releitura da própria história.

As mulheres dos dois grupos diferem na forma de abordagem e experimentação das questões trazidas. “As mulheres têm experiências multifacetárias, semelhantes e diferentes. Semelhantes são suas histórias de opressão. Diferentes, as de libertação e vice- versa.” (REIMER, 1995, p. 5)

Referência bibliográfica

CIORNAI, S. Da Contracultura à Menopausa. São Paulo: Oficina de Textos,1999.

JULIANO, J.C. A Vida, o Tempo, a Psicoterapia. São Paulo. Summus Editorial, 2010.

REIMER, I.R. Vida de Mulheres na Sociedade e na Igreja. São Paulo, Edições Paulinas, 1995.

VIEIRA, M. M. Letras, Artes e boas maneiras - A educação feminina in. Anais do Encontro de Mulheres Portuguesas, 1993.

YONTEF, G.M. Processo, Diálogo e Awareness. São Paulo, Summus Editorial, 1998.

 

4.3 Adoecendo e sendo mulher – das queixas e sintomatologias no universo da clínica feminina

Patrícia Albuquerque Lima – Ticha

Desde meninas ouvimos que ser mulher é algo que dói. As dores do parto, as cólicas, as dores das noites mal dormidas cuidando dos filhos, as dores do corpo que se modifica, dos humores que nos invadem e dos amores que perdemos. Esta polaridade de sentimentos que toda mulher vive – da proximidade da experiência do paraíso e do inferno quase que conjuntamente – é algo com que toda mulher se identifica e um dia já experimentou. Ser mulher é, no mínimo, um aprendizado que gera muita angústia e, muitas vezes, verte muito sangue. O sangue que sai de nossos corpos mensalmente, o sangue que se perde no parto, o sangue que ferve e nos deixa invadidas por sentimentos e emoções que nem sempre sabemos nomear.

Como já cantou Caetano “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Mas pelas dores do corpo passamos e sobrevivemos, quase todas. E quanto as dores da alma? O que fazemos com elas e o que estas podem nos causar?

A psiquiatra Carmita Helena Najjar Abdo – professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e coordenadora do Projeto Sexualidade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo – afirma no site do Ministério da Saúde que 52% das mulheres com depressão apresentam alterações na libido.

Segundo Kehl (2009); “A Organização Mundial de Saúde divulgou que os “transtornos depressivos” se tornaram a quarta causa mundial de morbidade e incapacitação e atingem cerca de 120 milhões de pessoas no planeta.... Até 2020, segundo a OMS, a depressão terá se tornado a segunda principal causa de morbidade no mundo industrializado.” (p. 51) De que modo os quadros de depressão, crises de pânico e outros modos de adoecimentos, tão presentes na realidade contemporânea, atingem as mulheres e chegam a nós, psicoterapeutas, que as ouvimos e as acolhemos nos nossos consultórios? Sabemos que a maior parte dos quadros de depressão são apresentados dentro do universo feminino, mas o que isto significa e nos revela, é algo ainda que nos instiga a refletir e investigar.

A mulher, por vezes conhecida como pertencente a categoria do “sexo frágil”é hoje, em grande parte, uma malabarista que tenta cuidar simultaneamente de sua vida profissional, sua família, sua vida afetiva e sexual e ainda se apresentar bonita e desejável para os olhos masculinos. A mulher conquistou seu lugar no
mercado de trabalho, buscou se libertar dos ditames morais da sociedade burguesa regidas pelas leis da Igreja Católica, conquistou seulugar no mundo dos negócios e inscreveu seu lugar como produtora de saber e cultura. Mas os ganhos reais e o preço pago pelas mulheres nem sempre lhe deram o direito de obter um “lugar ao sol” e desfrutar de uma vida de plenitude e realizações.

A proposta para esta mesa é que ela propicie um clima de reflexão conjunta onde possamos a partir das nossas experiências de vida e dos acontecimentos que temos vivido em nossas clínicas buscar conversar e estabelecer um diálogo acerca das peculiaridades dos processos de adoecimento do feminino, ou quem sabe, dos modos próprios e impróprios pelos quais nós mulheres doemos e nos remoemos.

Referência bibliográfica

ABDO, C. disponível em http://www.saude.df.gov.br/ último acesso em 15 de julho de 2010.

CIORNAI , S. Da contracultura à menopausa. São Paulo: Fapesp, 1999.

KEHL, M. O tempo e o cão – a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.

RODRIGUES , J. Terror, medo e pânico – manifestações da angústia no contemporâneo. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2006.