Workshop 1: Experienciando a fenomenologia na clínica. “Compartilhando experiências sobre a aplicação da metodologia fenomenológica na clínica gestáltica”

 

Hugo Elídio Rodrigues

 

Resumo
A especificidade da metodologia fenomenológica não é reduzível a uma simples atitude descritiva. Indo além, esta metodologia nos faz refletir, sugerindo uma orientação pelos horizontes da indeterminação prévia humana, abrindo nossa percepção para alcançar níveis sutis da nossa tendência a naturalizar o mundo compartilhado e a imputar sentidos idiossincráticos às vivências de outrem. Este workshop é um convite para compartilharmos experiências da aplicação desta metodologia na clínica gestáltica.


Proposta
Fruto de uma rigorosa reflexão filosófica, a atitude fenomenológica apresentada por Edmund Husserl traz um notável potencial para uma abordagem psicoterápica calcada na situação do contato, no referencial contextualizado e presentificante do campo do vivido, como é a Gestalt-terapia. Segundo Perls: “Assim, o que eu gostaria de fazer (é )... trabalhar com base fenomenológica. Isto significa trabalhar na conscientização do processo que ocorre.” (1977-b, p. 138).

Este potencial, entretanto, não é uma simples questão de entender a – às vezes – difícil linguagem dos textos de Husserl, ou entender os resumos destas idéias realizados por autores experientes e estudiosos deste filósofo. A fenomenologia definitivamente não é uma “idéia”, não é um conjunto de extrapolações sobre a realidade ou sobre a natureza humana, mas sim é uma profunda discussão sobre as condições essenciais para compreendermos o que torna o mundo este horizonte como ele se apresenta, mediado pela forma causalista, reducionista, reificante que o paradigma vigente nos traduz. Desta forma, temos uma importante transição a realizar: partindo de como o mundo se apresenta com sua forma paradigmática vigente que nos influencia e reduz nossa capacidade perceptiva e criativa, para uma atitude fenomenológica e, a partir desta, para uma atitude fenomenológica aplicada às experiências na clínica gestáltica.

Pelo acima exposto, a justificativa para esta proposta de workshop contemplará três aspectos fundamentais: a clarificação da forma paradigmática com a qual nossa cultura impregna nossa forma de perceber as coisas e vendo-as como algo simplesmente “natural”; como a atitude fenomenológica discutirá esta forma impregnável e quais suas críticas a tal forma; como a fenomenologia apresentará novas formas para compreender esta tendência naturalizante e como tais formas podem nos auxiliar em nossa prática clínica que compartilha das mesmas bases críticas ao paradigma naturalizante.


a. Forma paradigmática vigente

Quando a Gestalt-terapia é considerada como uma abordagem enquadrada em uma linha humanista (FADIMAN e FRAGER, 1979), podemos compreender que tal enquadre se dá pela forma não teorizante com qual esta abordagem reconhece o outro como “tu” (BUBER, 1979), como um ser humano que se apresenta aqui-e-agora para uma relação de encontro, sendo esta relação sempre determinante para a emersão do sentido do vivido. Desta forma, uma metodologia baseada nesta percepção do ser humano precisa exatamente lidar com isto: com a “percepção” deste ser humano, e conseqüentemente com sua própria capacidade de ir percebendo-se, em suas atitudes, gestos, modos de falar, por suas palavras incompletas, movimentos não percebidos etc. Não buscamos, conseqüentemente, um “enquadramento” classificativo, fundamentado em uma base histórica ou estatística que pudesse nos dizer sobre quem é esta pessoa com a qual tecemos uma relação terapêutica.

Esta tendência classificativa, fundamentada em uma base histórica ou estatística, acaba por produzir um ser abstrato, sendo não exatamente uma pessoa com uma identidade própria, mas sim apenas mais um homem que se enquadra naquela classificação previamente conhecida e que será conclusiva na forma com a qual este será tratado pois - inversamente à atitude fenomenológica - a classificação dada nos condiciona a interpretar o que nele será visto, procurando os “sinais” ou sintomas do comportamento que dele se espera. A pessoa desaparece e lidamos como se fosse pertencente a uma espécie de “natureza humana” o “fato” da pessoa agir assim como age. Vemos a classe ao qual a pessoa é pertinente: a dos loucos, tímidos, em pânico, droga adictos etc, que indicam o que “naturalmente” se esperará de um “sujeito assim”.


b. A crítica fenomenológica

Para compreender mais profundamente a extensão da crítica gestáltica à naturalização com a qual o paradigma vigente vê os “sujeitos”, é importante uma reflexão sobre a visão de ser humano que é pertinente à abordagem gestáltica. De forma imediata, qualquer definição sobre o que é este ser humano já estaria descartada pela própria formulação naturalizante da pergunta que, ao subliminarmente nos induzir ao pensamento sobre “o que é?”, nos faz perder de vista sua essência: “quem ele é” (HEIDEGGER, 2000). Desta forma, o ser humano com o qual a abordagem gestáltica trabalhará é um ser dinâmico, que age, que se apresenta ao mundo de uma forma e sua perfomance é o próprio foco da ação terapêutica: quem está sendo ele aqui-e-agora, neste contexto ao qual a pessoa do gestalt-terapeuta também está inserido, numa situação sempre passível de uma descrição fenomenológica, onde o “como” o que se dá, se dá (“Uma rosa é uma rosa, é uma rosa”, STEIN, G. In PERLS, F. 1979, p. 16) apontando não só para o sentido desta ação em um campo, como também apontando sempre para quem age e quem percebe tal ação.

Temos então uma forma crítica que rebate a tendência classificatória e a contrapomos por uma visão contextualizante, holística, do evento “encontro terapêutico”. Ao fundamento histórico ou estatístico, ampliamos para uma visão de horizonte temporal regido pela luz do presente, que ilumina o que o tornou possível conectando-o ao passado e igualmente delimita as possibilidades que olhamos no futuro (MÜLLER-GRANZOTTO, M. J. & R.L., 2007) Ao modelo abstracionista de lidar com “tipos”, ou “teorias da personalidade” geneticamente embasados, lidamos com a riqueza do encontro único e nunca repetível que no aqui-e-agora se apresenta. Sobre a crítica ao paradigma histórico/estatístico e abstracionista e sua contraposição aqui resumidamente apresentada, ver Lewin, Kurt ( 1965).

 

c. Compreendendo a tendência naturalizante

A Fenomenologia inicialmente critica esta forma com a qual ingenuamente – nas palavras de Husserl (HUSSERL, E. 2000) – encaramos o mundo como algo que está aí e que nos induz a uma percepção de uma realidade diante da qual nada podemos fazer a não ser aceitá-la, já que ela “sempre foi assim”, “sempre aconteceu desta forma”, e conseqüentemente induz a agir “como todo mundo age” pois, afinal
de contas, “é assim mesmo que deve-se agir”, e tornando os comportamentos algo semelhante a uma possível visão de uma “natureza humana” diante da qual “deve-se” agir de acordo.

A clareza da crítica fenomenológica, entretanto, não reflete, por outro lado, uma facilidade existencial em lidarmos com o reconhecimento do uso em nossos relacionamentos desta forma naturalizante de ver as pessoas. Revelar e desmascarar esta tendência naturalizante de “olhar para as coisas e achar que é assim mesmo” requer uma força poderosa no campo vivencial, pois insidiosamente ela nos impregna, como uma espécie de inércia de sentido, onde – se algo não fizermos – impera o que sempre imperou. Precisamos “parar” com o sentido natural e “voltarmos às coisas mesmas”, ou seja, voltarmo-nos à percepção que temos das coisas percebidas, ao invés de lidarmos com as lembranças de outros acontecimentos alhures localizados, de lidarmos com situações inacabadas (PERLS, 1977a, p. 66-67), ou pré julgamentos dos fatos.

Este é o objetivo da redução eidética de Husserl (DARTIGUES, 2002), ou seja, lidando com o que se mostra, almejarmos buscar a essência do sentido do que se mostra, depurando o fenômeno, retirando dele o que é circunstancial para alcançar o estrutural, vendo o nível ôntico e buscando nele o nível ontológico. Esta busca é efetivamente um exercício, uma prática que alcança melhor precisão na medida em que nela investimos nossa atenção. Desta forma, é possível compreender que a Gestalt-terapia não poderia ser entendida apenas como uma “ação terapêutica” ou algo que só acontece no consultório, mas sim como uma atitude constante de busca profunda do sentido das coisas e – esta própria busca – sendo o que exatamente se busca, ou seja, a atitude de mantermo-nos conscientes. (PERLS, 1977b)

A proposta deste workshop visa sensibilizar os participantes sobre este estado de atenção, e como podemos detectar as sutilezas desta alienação do nosso estado essencial de ser: seres da possibilidade e, consequentemente, sendo flexíveis para também aceitar o outro como um ser da mesma inexorável liberdade. Aqui é onde a crítica fenomenológica pode ser compreendida como sendo uma orientação ao favorecimento de uma atitude anti-naturalizante, pois esta metodologia nos facilita a compreender como tendemos a ver no outro o que queremos ver, o que queremos que ele seja, ou o que achamos que ele deveria ser ou fazer.

Concluindo, neste workshop serão propostas experiências de atendimentos pedagógico-terapêuticos, onde esperamos que possam ser detectadas as situações de imposição de sentido (por parte do terapeuta) ao vivido das pessoas (os clientes) e ressaltar a partir daí a forma não-naturalizante de perceber: buscar a descrição do campo, a partir de uma inspiração fenomenológica e, por fim, demonstrar como esta pode contribuir para uma prática clínica que efetivamente se abra para a riqueza do encontro.


Bibliografia

BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Cortez&Moraes, 1979.

DARTIGUES, A. O que é a Fenomenologia? São Paulo: Centauro, 2002.

FADIMAN, J.; FRAGER, R. Teorias da Personalidade. São Paulo: Harper & Row, 1979.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo – Parte I. Petrópolis: Vozes, 2000.

HUSSERL, E. A Idéia da Fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2000.

LEWIN, K. Teoria de Campo em Ciência Social. São Paulo: Pioneira, 1965.

MULLER-GRANZOTTO M.J.; MULLER-GRANZOTTO R.L, Fenomenologia e Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2007.

PERLS, F.S. Escarafunchando Fritz – Dentro e Fora da Lata de Lixo. São Paulo: Summus, 1979.

__________. Gestalt-terapia Explicada. São Paulo: Summus, 1977a.

__________. A Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia. Rio de Janeiro: Zahar, 1977b.