Mesa 1: Encontros e desencontros na prática psicoterápica com crianças: o gestalt-terapeuta diante da relação entre pais e filhos

Palestrantes: Guilherme de Carvalho e Luciana Aguiar e Luciana Soares.

Moderadora: Maria das Graças Gouvêa.

 

Resumo: Desde os primórdios da prática psicoterápica com crianças deparamo-nos com um tema que permanece presente como um nó no cotidiano da clínica: as conflituosas relações entre pais e filhos. Nó que vira nódulo, nódoa, o nó que amarra, nó une pontas dispersas, sem que necessariamente crie algo em comum com as partes ali envolvidas. Trazemos para esta mesa uma discussão orientada pela seguinte questão: qual nossa função como gestalt-terapeutas ao examinarmos a psicoterapia com a criança por este ângulo? Apontamos para aspectos constituintes da cena clínica e implicações da contemporaneidade nas relações, em especial, na relação terapêutica.


1.1. Conversando sobre crianças: uma nova gestalt para o terapeuta infantil na atualidade

Guilherme de Carvalho

 

Resumo
O gestalt-terapeuta, atualmente, tem sido desafiado a tecer uma aproximação ótima entre prática clínica, aprimoramento técnico e atualização quanto às transformações trazidas pela pós-modernidade. Busca-se caracterizar a importância da qualidade da formação do terapeuta infantil e, conseqüentemente, avaliar as implicações referentes ao convívio com diferentes configurações familiares.

Proposta
O atendimento infantil, segundo a abordagem gestáltica, configura uma prática singular, repleta de alegrias e idiossincrasias. No entanto, por possuir um caráter intersetorial, encontra-se na interseção entre vários ambientes, ou cenários, o que cabe uma análise pormenorizada.
Atualmente, com um intenso movimento de transformação social, com repercussões diretas para a configuração familiar, vida ocupacional, relações interpessoais e afetivas, nota-se, de igual modo, a necessidade de atualização, por parte do profissional de psicologia com fundamentação teórico-prática apoiada sob os pilares da Gestalt-terapia, acompanhamento das demandas, muitas vezes inéditas, dirigidas ao terapeuta. Fica claro que a velocidade das transformações sociais e políticas (BAUMAN, 2000; GIDDENS, 1991) influenciam marcantemente a experiência vivida das pessoas, e, no caso específico da relação terapêutica, torna-se necessário pensar a qualidade do investimento dispensada, tanto pelo cliente, pelo terapeuta e pela família.
A partir do pressuposto baseado na idéia de que o terapeuta, no interior da abordagem gestáltica, deve ser considerado como um parceiro de viagem, um cuidador, sua postura necessita ser revisitada, ambientada e revisada de acordo com as novas exigências da pós-modernidade, e seus desafios.
Segundo Hycner (1995), “os princípios básicos desta postura são que a abordagem global, o processo, e o objetivo da psicoterapia precisam estar assentados em uma perspectiva dialógica”. Tal postura parece estar em consonância com uma proposta real de transformação das relações interpessoais contemporâneas, tão marcadas pelo imediatismo, por relações tecnocráticas, hipervalorização de valores pessoais em detrimento da coletividade, etc. De acordo com o autor, a noção de abordagem define uma orientação pessoal e filosófica do terapeuta; o processo caracteriza-se pela interação mesma entre terapeuta e cliente; e o objetivo representa o resultado da terapia, isto é, o aumento da habilidade relacional do cliente.

Neste trabalho, aponta-se para uma série de posturas sugeridas ao gestalt-terapeuta, de forma a caracterizá-lo como um elemento importante para a relação terapêutica, especialmente no atendimento infantil. Sobre este último tema, é de fundamental importância uma aproximação real e efetiva do terapeuta com os novos arranjos e transformações quanto à configuração do modelo de família atual (PASSOS, 2003). Tais modificações transformam, com grande impacto, as relações que se estabelecem entre a família e o contexto clínico, tanto em termos de quanto em razão da natureza das relações travadas entre família e gestalt-
setting terapeuta.

Buber (2004) admite que o terapeuta necessita praticar o que chama de inclusão, ou seja, implica em uma atitude de disponibilidade e salto em direção à experiência do outro, e conscientização plena de toda a sua alteridade. Entende-se esta característica como um dos três pilares basais para a prática clínica em Gestalt-terapia, juntamente com as noções de confirmação e mutualidade. É traçado um paralelismo direto entre o atendimento adulto e o infantil, a partir da afirmação que em ambos os contextos, trata-se, acima de toda avaliação, de pessoas. O momento específico do ciclo vital somente contribui com especificidades típicas
de cada faixa etária, e não compromete, em absoluto, a expressão da totalidade da experiência da pessoa. A característica de mutualidade complementa a discussão na medida em que localiza o movimento dialético de inclusão – do terapeuta em relação à experiência do cliente -, mas também de retorno à própria experiência do terapeuta, de forma a manter seu auto-suporte.

“O terapeuta precisa lutar vigorosamente para experienciar o que o cliente está experienciando. Nas melhores condições, é apenas uma experiência momentânea, pois não é possível manter indefinidamente a postura inclusiva. Ao mesmo tempo, o terapeuta precisa também manter-se centrado em si mesmo.” (HYCNER, 1995, p. 58-59)

Incentivado pelo sentimento de mutualidade, o do cliente é capaz self de reconhecer a singularidade do terapeuta e fazer um uso efetivo self deste reconhecimento formal. Assim, cria-se um ambiente facilitador para o estabelecimento de uma relação genuína e autêntica. No pólo oposto, a ausência da última das três características sugeridas como fundamentais para o gestalt-terapeuta – a confirmação – configura um grave problema, núcleo constitutivo da problemática psicológica. A natureza intersubjetiva e relacional do ser humano depende condicionalmente da confirmação do outro para a formação natural do ser humano enquanto tal (HYCNER, 1995). Assim, a “confirmação (...) reconhece e afirma a existência dessa pessoa, mesmo que talvez seu comportamento atual seja inaceitável”. (p. 62)

É necessário estarmos atentos à importância da integridade e disponibilidade do do terapeuta para este encontro. E de certo modo, sua inteireza é tão ou mais self importante que sua orientação teórica. Segundo Hycner (1995), o terapeuta deve lutar sempre para trazer suas “feridas” (o termo diz respeito à metáfora do curador) para o espaço de terapia, sem que a cura do seu próprio ferido self seja o foco.
Enquanto abordagem fenomenológico-existencial, a Gestalt-terapia é fundamentada no processo, utilizando a metodologia fenomenológica para a compreensão da expressão do cliente, na cena clínica, de forma a privilegiar o aspecto descritivo, em detrimento do explicativo. De acordo com Antony (2010), o instrumental utilizado pelo gestalt-terapeuta consiste em um ato de observação e descrição dos fenômenos vividos na experiência. No que tange ao atendimento com crianças, tal perspectiva aponta para a importância da figura do terapeuta enfocando a compreensão da criança em seu contexto, a saber: o brincar, “Com crianças, a experiência é a via da consciência. A criança e o terapeuta então iniciam uma jornada em que cada fenômeno emocional que acontece no campo terapêutico é resultante da corregulação e da cocriação oriundas do processo de intersubjetividade vivido.” (p. 84)

Torna-se indispensável a preocupação manifesta de gestalt-terapeutas com clínica infantil quanto à atualização técnica, facilitação de uma relação terapêutica baseada em princípios dialógicos e, especialmente, uma proposta de trabalho que integre elementos vivenciais como funções de contato; experiências corporais de integração/diferenciação e estratégias que possam viabilizar o exercício de preparação emocional, tanto com o público infantil, quanto com pais e cuidadores, otimizando, assim, o investimento de todos os elementos que configuram o campo terapêutico. Em consonância com este pensamento, observa-se a necessidade também de acompanhamento das relações impostas hoje pela pós-modernidade, que vem alterando a qualidade e a expressão das relações interpessoais, a partir das transformações sociais e culturais observadas no cotidiano. A princípio, tais transformações são naturais e tidas como necessárias para o crescimento de um grupo social, no entanto, podem causar uma sensação de desmapeamento (FIGUEIRA, 1987), especialmente na esfera familiar. O gestalt-terapeuta precisa ser capaz de, orientado por este novo paradigma, integrar-se aos novos elementos que surgem, como arranjos familiares inéditos, aspectos da vida ocupacional de pais, além da própria rotina de cuidados (e dos cuidadores) em sua estratégia clínica de atendimento.

Referência bibliográfica
ANTONY, S. A clínica gestáltica com crianças: caminhos de crescimento. SP: Summus, 2010.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

BUBER, M. Eu e tu. SP: Centauro, 2004.

FIGUEIRA, S. A. Uma nova familia? O moderno e o arcaico na família de classe média brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991.

HYCNER, R. De pessoa a pessoa: psicoterapia dialógica. São Paulo: Summus, 1995.

PASSOS, M.C. A família não é mais aquela: alguns indicadores para pensar suas transformações. In: FÉRES-CARNEIRO, T. Família e casal : arranjos e demandas contemporâneas. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2003.

 

1.2 Conversando sobre crianças

Luciana de M. Aguiar

Resumo
De acordo com a Gestalt-terapia, particularmente com sua perspectiva de campo, temos como objetivo destacar as possibilidades de compreensão do cenário clinico e das intervenções técnicas por parte do psicoterapeuta junto as famílias que demandam psicoterapia para suas crianças, tendo em vista as vicissitudes típicas da contemporaneidade.

Proposta
A prática clínica com crianças nos traz a questão da presença concreta de uma família que é porta-voz da demanda inicial de psicoterapia, conforme encontramos nos relatos do escopo teórico das principais abordagens no cenário da Psicoterapia Infantil (AXLINE, 1969; MANONNI, 1981; OAKLANDER, 1980; WINNICOTT, 1989). Isso aponta para a existência de uma estreita vinculação entre as questões apresentadas pelas crianças e as dificuldades e expectativas parentais, que, por sua vez, encontram-se mergulhadas no cenário contemporâneo marcado pela competitividade, pela lógica do consumo e pelas relações fugazes e descartáveis. (BAUDRILLARD, 1995; BAUMAN, 2007)

Tal cenário nos convida a indagar sobre as características de tal vinculação e sobre como manejá-la ao longo do processo terapêutico, bem como também a respeito de sua possível influência no objetivo e prognóstico da psicoterapia.

Entendemos que a Gestalt-terapia, com sua perspectiva de ser humano e de mundo embasada na teoria de campo, traz a possibilidade de compreendermos os meandros de tal vinculação e de tentarmos apontar possibilidades para o encaminhamento do processo terapêutico, a partir de intervenções especificas no campo, do qual o psicoterapeuta também faz parte e encontra-se implicado.

Para isso, utilizaremos o arcabouço teórico da Gestalt-terapia, particularmente as contribuições da Fenomenologia e da Teoria de Campo (RIBEIRO, 1985; YONTEF, 1976, 1991) destacando, dentre outros aspectos, os limites e possibilidades de se trabalhar com uma criança sem a participação da família e as conseqüências em termos de prognóstico, os prós e contras das sessões conjuntas e familiares e da importância crucial do trabalho com os pais no processo de término da terapia.

Referência bibliográfica

AXLINE, V. Play Therapy. Ballantine Books, 1969.

BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos, 1995.

BAUMAN, Z. Mundo Liquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

MANNONI, M. A primeira entrevista em psicanálise. Rio de Janeiro: Campus, 1981.

OAKLANDER, V. Descobrindo crianças: a abordagem gestáltica com crianças e adolescentes. São Paulo: Summus, 1980.

RIBEIRO, J. P. Gestalt-terapia: refazendo um caminho. São Paulo: Summus, 1985.

WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

YONTEF, G. A aplicação diferencial da Gestalt-terapia (1990). Processo, Diálogo e Awareness: Ensaios em Gestalt -Terapia. São Paulo: Summus, 1998.

__________. Gestalt-terapia: fenomenologia clínica (1976). Processo, Diálogo e Awareness: Ensaios em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1998.

__________. Introdução à teoria de campo (1991). Processo, Diálogo e
Awareness: Ensaios em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1998.

 

1.3. O psicólogo diante de um desafio: como decidir quando a psicoterapia é para a criança ou quando é para a família?

Luciana Loyola Madeira Soares

Resumo
Vivemos um momento de grande expansão da prática da terapia familiar, assim como dos cursos de formação e de especialização na área, o que evidentemente significa um importante avanço no campo das psicoterapias. Já há uma demanda mais específica para tal modalidade na população que procura voluntariamente a ajuda psicológica, pois participamos do movimento no mundo contemporâneode voltar a atenção para os processos relacionais do grupo familiar, em meio ao turbilhão de transformações pelas quais este tem passado. Neste trabalho voltamos a um tema abordado no Congresso Nacional de Gestalt-terapia em Gramado, agora numa perspectiva ampliada. Aqui apresentaremos uma proposta de reflexão ao compartilharmos nossas inquietações referentes à situação de encaminhamento de crianças à psicoterapia diante da corrente tendência que vem se encorpando entre os profissionais da área de saúde mental de atribuir o sofrimento dos pequeninos exclusivamente a uma origem familiar e, dentro desta perspectiva, radicalizar ao indicar a terapia familiar como o único modo eficaz de tratar o sofrimento das crianças. No exame da dicotomia vigente no campo das psicoterapias acerca do tratamento que é mais indicado, consideramos então procedente colocar duas perguntas:
– ainda há espaço para a psicoterapia individual da criança?
– estamos diante de novas demandas para a psicoterapia da criança?

Um pouco da dimensão histórica da relação família/criança
O lugar da criança na família e na sociedade tem sofrido significativas
modificações ao longo dos séculos no mundo ocidental. Historiadores,
antropólogos e demais pesquisadores têm tentado dar conta do entendimento acerca da mobilidade da criança e de sua importância especialmente no cenário contemporâneo, no qual as mudanças são velozes.

Ariés (1981), em seu renomado livro A história social da família e da criança, traça um perfil da evolução da relação família/crianças desde a época Medieval.
O autor inicia seu percurso informando-nos que a família medieval predominava como instituição e, não como sentimento existencial, sendo muito mais uma realidade moral e social do que sentimental, na qual as crianças aprendiam diretamente com os adultos, misturados em suas atividades cotidianas. Segundo Ariés, o sentimento de família surge na Idade Moderna, junto com o advento da escola, a partir do que, as famílias passam a ter maior responsabilidade pelos filhos, fazendo brotar o apego, a intimidade, o segredo - passa a existir algo em comum entre os membros de uma família.

A família que conhecemos hoje ainda tem forte inspiração na família Moderna, porém já é possível afirmar que esta tem sido alvo de diferentes olhares, principalmente a partir das idéias de S. Freud sobre o valor das experiências primeiras do indivíduo. Toda a teoria de Freud baseia-se no primado da relação amorosa mãe/bebê, de modo que o método de tratamento por ele proposto fundamenta-se no dispositivo da transferência, que justamente vem a ser a reedição daquela relação primordial, agora com o analista. Temas como triangulação edípica e castração referem-se sempre ao contexto das funções parentais no princípio da existência do sujeito e, através de E. Roudinesco (2003).

Em A família em desordem vemos como hoje funciona a família após a ampla difusão da Psicanálise no mundo ocidental e após tantos dizeres e fazeres que questionam sua validade. A autora indica que, mesmo a despeito de todas as transformações e desconstruções pelas quais tem passado, a família permanece construindo-se e reconstruindo-se ainda com base nos princípios fundadores da constituição do sujeito (a triangulação - que pressupõe, acima de tudo um diante do outro e o terceiro - o desejo, o investimento libidinal encontrando a diferença, a alteridade) princípios esses que são os próprios princípios da Psicanálise.
Roudinesco enfatiza que a família ainda é a instituição mais sólida que se conhece.

Para a autora, a família contemporânea ou pós-moderna surge a partir da década de 60 do século passado, com a principal característica de contornos pouco ou mal definidos em virtude da confusão em torno da transmissão da autoridade e da manutenção de relações afetivas mais ou menos duradouras.

Outros autores acompanham Roudinesco quanto à importância atribuída à família, como por exemplo, S. Mello (2002), em Família, uma incógnita familiar, que afirma que, embora sem padrões fixos para sua constituição, a família é onde ocorrem os mais valiosos eventos da vida da pessoa, é o lugar onde se escreve uma história e onde se inscreve o sujeito. A autora aponta a densa relação entre família e afetos, que de tão intensos, tanto afastam quanto unem, tanto constituem quanto destituem o sujeito, tanto elucidam quanto confundem. Mello esclarece que apesar de estar conseguindo sobreviver às intempéries do pós-modernismo, a família não
pode ser naturalizada, mas sim considerada como construção sócio-histórica e examinada numa dimensão ética e política também.

Rubens Adorno e Rosa L. dos Santos (2002), em (Um ensaio sobre famílias), provocam-nos com a instigante reflexão de que, devido à
e suas intersecções crise de autoridade que atingem família e Estado a primeira, como é considerada expressão genuína do movimento presente da sociedade, vem sendo duramente criticada e golpeada por estar sendo responsabilizada pelas crises do homem sobre a Terra.

Entendemos que o Estado, por sua vez, omite-se na função paterna que lhe poderia ser atribuída, mantendo-se em confortável distanciamento que lhe permite exercer o papel de crítico de um sistema para o qual não contribui nem se estabelece como diferença, como seria desejável numa perspectiva psicanalítica.
Presenciamos hoje a criança tendo que corresponder à acelerada rotatividade dos modismos, acelerando seu crescimento, mas sem sinais de que seu desenvolvimento esteja realmente sendo beneficiado. Efetivamente este fenômeno não é um privilégio dos pequeninos, já que o adulto tem um estilo de vida predominantemente atribulado, acelerado, fugaz, de pouco contato consigo mesmo, marcado por relações utilitárias e por um rol de experiências fragmentadas, que não chegam a perfazer um sentido existencial. Nós psicoterapeutas constatamos que este estilo de vida está na base da formulação da maioria das demandas atuais por psicoterapia dos adultos. Evidentemente não é possível negar que tal panorama também afete a produção de demanda por psicoterapia nas crianças.

N. Postman (1999), em seu livro O desaparecimento da infância, lembra-nos que até a Idade Média não havia olhar diferenciado para a criança, até o surgimento da imprensa que, ao popularizar a até então elitizada leitura, estabeleceu critérios para distinguir a população entre os que liam e os que não liam e, as crianças passaram a pertencer a este último grupo. Este marcante e definitivo momento na história da humanidade colocou a criança na condição de ser diferenciado do adulto.

A partir de meados do século XX, segundo Postman (1999), principalmente após o advento da televisão, essa distinção começa pouco a pouco a desaparecer: tudo pode ser comunicado a todos, a qualquer momento e a baixo custo. Atualmente com a Internet isso é a mais fiel tradução das relações humanas, com a ênfase na sensação de poder ampliado pela ação das pontas dos dedos, e sem culpa.
A onipotência nutrida pela velocidade do desenvolvimento tecnológico desfaz os contornos das relações de cuidados entre adultos e crianças, de modo que abandono e solidão são confundidos com dar e ter autonomia. Observamos o aumento dos substitutivos para as relações humanas, por exemplo, a força das relações virtuais (em amizade e educação) e o avanço do mercado Pet refletindo a expansão da adoção de animais de estimação.

Num tempo em que o ser humano crê que tudo pode, verificamos que, paradoxalmente, o adulto tem se oferecido às novas gerações como modelo frágil, inseguro e impotente diante dos fatos imutáveis de seu ciclo vital, com destaque especial para a atitude de negação do envelhecimento e da morte. O culto à saúde, à beleza e à longevidade cria distorções de percepção, já que por mais vigoroso e jovial que possa parecer, o ser humano continua ansioso por criar novos dispositivos que lhe assegurem garantias que, em realidade são inatingíveis. Não por acaso a ansiedade e a depressão constituem-se as principais manifestações de
sofrimento humano desde o final do século passado. O ideal de cuidados físicos cria também paradoxalmente distorções relacionais, na medida em que a idéia de estender a duração do ciclo vital redunda numa individualização exacerbada e, conseqüentemente numa perda da perspectiva da sobrevivência da humanidade, seja esta entendida como permanência sobre a face da Terra ou como qualidade do modo como os humanos criam e fortalecem os laços de humanidade.

Autores clássicos como J. Bowlby, M. Mahler, D. Winnicott, R. Spitz e D. Stern, dentre outros, discorreram sobre a necessidade humana de contato com as figuras parentais e do estabelecimento de relações estáveis e duradouras, nas quais a criança tanto é confirmada quanto confirma seu cuidador. Se progressivamente as gerações vão perdendo esta experiência confirmadora, estaremos diante do sério risco de danos ao processo de hominização. Aliás, este já é um dado real na vivência de muitas crianças no mundo contemporâneo: estão expostas a muito mais informação e estímulos do que podem dar conta sozinhos. O sentimento de impotência está presente, a solidão também, e igualmente a crença de que não há com quem contar e em quem confiar. Desde muito pequena a criança já está exposta a padecer dos mesmos males que afetam os adultos: no modo de falar, de se vestir e até de adoecer, ela está se comportando como um adulto em miniatura.
O mal-estar da criança aparece de maneira explícita ou metafórica e informa-nos de necessidades não atendidas quanto a modelos, orientação, parâmetros e cuidados.

Sendo a fluidez, a pluralidade e a dúvida marcas do chamado mundo pós-moderno, restou a pais e mães a desconfortável sensação de desconstrução, de que nada ficou do passado. Vive-se e transmite-se uma desilusão com figuras de poder: pais, professores, terapeutas, lideranças políticas, etc... Efetivamente, não é mais possível crer em modelos que forneçam a sensação de verdade absoluta: há pontos-de-vista. A ênfase na singularidade surge como novo parâmetro para orientar as funções parentais e acaba por conduzir a uma indefinição quanto ao posicionamento a ser adotado na relação com os filhos, gerando um quadro em que tudo é possível e aceitável, e que não é preciso renunciar às vontades e liberdades individuais, em detrimento das normas de respeito que regulam o convívio entre humanos. Numa perspectiva psicanalítica, podemos entender isso como a falta do pai como aquele que marca a diferença que permite a alteridade, aquele que barra a livre manifestação pulsional e impõe a renúncia.

Por outro lado, embora tendo rompido com noções de certo e errado, bem e mal, com o primado dos vínculos consangüíneos e dos papéis estáticos, o adulto na função parental vê-se tendo que gerir afetos e transformações e, com isso, tornou-se mais aflito diante de cuidar da prole e busca ajuda: seja dos novos manuais, seja da Supernanny, ou do psicólogo.

Jurandir C. Freire em Ordem médica e norma familiar propõe como ponto para reflexão a mudança significativa no conceito de família na sociedade brasileira: da colonial à colonizada. O autor refaz o percurso da família brasileira e aponta que a família colonial brasileira persistiu sem afetos e sem intimidade até a chegada da família real ao Rio de Janeiro, que trouxe consigo os ares que se respirava na Europa e, com isso, o furor da mudança capitalista na acanhada sociedade local, que se enfeitiçou com os ideais e costumes burgueses. Se já era conhecida no Velho Mundo a força com que despontava a Medicina, esta chega aqui como nova forma de poder e controle; o médico aparece como exigência do Estado para normatizar à higiene, a saúde e o convívio familiar – este último supostamente inclinado à transgressão, à sujeira e à má-educação. É quando então Igreja, Medicina e Estado unificam-se em torno da regulamentação da família, o que contribui decisivamente para sua fragilização. É neste berço nada esplêndido que surge a família nuclear
que conhecemos até hoje.

Podemos pensar se, devido à demanda contemporânea de aprender a cuidar dos filhos, numa busca por filhos mais saudáveis, os pais vêm convidando o psicólogo a ocupar a função higienista. Pensemos também se estamos nós, psicoterapeutas, nos especializando em “orientar corretamente” as famílias, transformando-nos em cuidadores terceirizados e impedindo o fluir da cultura, afetos e da percepção sensível dentro de cada família.

Um dado presente no mundo contemporâneo é o excesso de informações disponíveis acerca de como se deve educar os filhos, o que vem a preencher a lacuna da intimidade nas relações parentais e o desafio de desempenhar a função de pai e de mãe. Embora possam ser esclarecedoras sob muitos aspectos, tais informações sugerem um novo padrão a ser seguido e não favorecem a autonomia na construção da função parental a partir da genuína experiência dialógica com o filho. Por outro lado, também não estabelecem uma interlocução proveitosa com o leitor: permanece o poder de percepção e de decisão centralizado nas mãos e voz do especialista. Segundo Ariés, este tipo de transmissão de ensinamentos equivale a “aprender com os mortos” - os livros, à época da Idade Moderna. Havia os “Tratados de civilidade”, que valorizavam incutir nos leitores a ênfase no que se podia aparentar, polindo a rudeza - manuais que indicavam atitudes para crianças e adultos, só que com regras mais indicadas aos adultos. Tais textos foram precursores de leis que tornaram o Estado detentor do poder de legislar e julgar as normas de conduta da população. Já nos séculos XVIII e XIX, surgem os manuais voltados para formar na criança o adulto, modelo que obviamente inspira-se no ideal burguês de família, e que passa a impor-se tiranicamente às consciências.

Este modelo caracteriza-se por retirar as crianças da vida social, correspondendo ao mesmo ideal burguês de higiene, saúde e educação. Temos aqui a família posta em oposição à sociedade.
Nesse ponto percebemos uma convergência com as idéias de Postman, que afirma que estamos vivendo um retorno aos costumes medievais após o furor de desenvolvimento dos meios de telecomunicações e de comunicação de massa, que vêm, progressivamente, estabelecendo um novo padrão de comportamento pautado num comando superior de alguém que, supostamente, sempre sabe o que é melhor para a vida de outrem.

Mudanças no contexto das psicoterapias
Em meio às contínuas mudanças que vem sofrendo na contemporaneidade a família tem sido alvo de olhares e cuidados específicos. Observamos em nossa prática clínica um aumento considerável do número de terapeutas dedicados ao tratamento de famílias, movimento que vem trazendo consigo uma redução do contingente de psicoterapeutas de crianças. Este trabalho tem sido até apontado por alguns especialistas como ultrapassado por ser incompleto. A idéia é defendida por aqueles que crêem numa intervenção que alcance todo o sistema familiar em que a criança está inserida, como sendo a única possibilidade de atenção ao que o pequenino ser quer comunicar através de seus sintomas e sofrimentos. Acreditamos que tal ponto de vista situa-se na esfera do estágio de desenvolvimento teórico chamado de Essencialista por M. Nichols e R. Schwartz (1998) em quando autores e profissionais Terapia familiar, conceitos e técnicas, posicionam-se de modo a radicalizar na defesa de sua perspectiva teórica como sendo a mais correta ou mais completa.
Citando Bateson (1979), os autores acima referidos indicam que a ênfase no contexto como produtor de significados é uma das maiores contribuições da Terapia Familiar, que veio retirar o foco de indivíduos que eram anteriormente considerados problemáticos isoladamente.

Nesse mesmo livro, falam Nichols e Schwartz que desde a década de 50 do século passado inúmeros autores vêm trazendo suas contribuições ao campo da Terapia de Família, alternando foco ora na comunicação afetiva entre os membros, ora na auto-estima, ora na diferenciação e no fortalecimento dos selves individuais, ora no ciclo de vida da família, ora nos padrões transgeracionais, ora sendo mais diretivos, ora menos, baseando-se na Psicanálise, ou na Teoria Geral dos Sistemas, ou na Abordagem Estratégica. Cada nova abordagem traz uma visão sobre o ser humano e de como se pode interferir tecnicamente para a mudança. O fato é que todos buscam respostas para questões recorrentes na prática do terapeuta de famílias. As indagações giram em torno de como funcionam saudavelmente ou não as famílias e como tratar suas resistências; perguntas de fora para dentro. São questões deles, pesquisadores que são, mas onde ficam as questões produzidas pelas próprias famílias? Serão as questões dos teóricos as que devem receber mais atenção? Tudo isso leva-nos a crer que ainda correrá muito tempo para que os estudiosos do tema da Família possam avançar para um estágio chamado de Ecológico por Nichols e Schwartz. Eles denominam de Ecológico ao estágio caracterizado pela conexão entre diferentes modelos teóricos, com o aparecimento de uma meta-teoria capaz de contemplar um escopo mais amplo acerca das necessidades de compreensão do humano e de seus fenômenos relacionais.

Efetivamente precisamos caminhar na direção da complementariedade, do encontro com a diferença que tanto delimita quanto completa e acrescenta.
Uma única vertente teórica não preenche todo o campo de descobertas a serem feitas sobre a condição humana. Seria o estágio essencialista um momento no desenvolvimento teórico que ainda carece de ser barrado pela alteridade que só a função paterna pode fornecer? A constatação de que só na alteridade podemos tomar posse de nossa existência abre espaço para o novo, o que ainda não foi dito, mas que está aí para ser criado.
Em resumo, nem a terapia de família dá conta de tudo, nem tampouco a da criança.
É fato que nós, psicoterapeutas de crianças (nos consultórios particulares ou nos Serviços de Psicologia Aplicada das faculdades de Psicologia ou nos serviços públicos de atendimento psicológico), temos recebido para tratamento crianças ansiosas, agitadas e insatisfeitas, facilmente sendo confundidas como sendo portadoras do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade.

Elas esquecem tudo rapidamente, têm dificuldade em assumir compromissos e responsabilidades. Em razão disso, são freqüentemente medicadas. Diferente do que acontecia a cerca de 25/30 anos atrás, quando as crianças eram geralmente encaminhadas à psicoterapia padecendo de timidez.

De fato, a criança em muitos casos é apresentada como o chamado “paciente identificado”, termo que passou a designar todo aquele que aponta com seus sintomas para a patologia familiar. Quando dizemos que a criança é o “porta-voz” da família, precisamos ser cautelosos, pois a afirmação pode conduzir a um entendimento equivocado ou demasiadamente simplificado de sua situação. Em muitos casos, o modo como a família se constituiu, organizou-se e como interage aparece materializado na sintomatologia do elemento mais frágil que, geralmente é a criança. Podemos entender que esta faz o possível para alcançar a melhor forma de arranjo nas relações familiares, de modo a obter os cuidados de que necessita.

No entanto, esse arranjo fica distante do desejável para uma condição de convívio satisfatória para ela. Por essa habilidade em fazer ajustamentos criativos nas relações defendemos a idéia de que não podemos considerar a criança como um mero prolongamento ou conseqüência das mazelas familiares, nem tampouco que esteja apenas respondendo passivamente ao desconforto do sistema no qual está inserida. Acreditamos que a criança reaja à família, assim como a denuncia e nela interfere.

Assim, muitos pedidos de terapia para o filho trazem embutidos um propósito de encobrimento das mazelas familiares, de calar segredos que teimam em vir à tona, de “consertar” alguém que parece criar um desconforto com suas atitudes que contrariam projetos feitos para a família a gerações. Pedir ajuda terapêutica para um filho constitui-se num modo de pedir ajuda para si mesmo e para uma vida familiar marcada por um convívio frustrante para todos, mesmo que sentido e percebido de maneiras diferentes pelos membros de um mesmo grupo familiar.
Tudo isso precisa ser levado em conta ao acolhermos uma criança e compreendermos sua demanda. A importância do espaço terapêutico individual para a criança é indicado nas situações em que elas estejam precisando recuperar a habilidade dialógica que foi precocemente abortada em suas existências.

Consideramos precioso valorizar junto aos cuidadores principais o esforço empreendido pela criança no sentido de criar recursos para fazer frente aos estímulos e exigências do meio, reconhecendo e compreendendo esse movimento como uma experiência exclusiva dele, que não deve ser comparada a nenhuma outra experiência de outro membro daquela família digamos a significativa. In singularidade da experiência de nosso pequeno cliente com o intuito de validar sua existência, de modo que a psicoterapia não se encaminhe para a mera produção dos resultados pretendidos pela família. Uma vez que seja entendido pelo terapeuta, pelo pequeno cliente e por seus cuidadores principais qual o propósito da terapia individual para a criança, esta tem a chance de criar novas formas de relacionar-se e de manifestar-se em sua existência à medida que explorará recursos encobertos ou semidescobertos.
Enfatizamos que durante todo o processo de psicoterapia da criança a família deve ser acompanhada, de modo a tecer parceria com seu desenvolvimento e a disponibilizar-se na acolhida às transformações decorrentes do processo.

Especialmente nos casos em que não há colaboração familiar a psicoterapia da criança é recomendada. Como exemplo disso, temos a parceria entre psicólogos e Justiça que tem sido intensificada, pois hoje contamos com o apoio de órgãos da Justiça, como os Conselhos Tutelares, além do Estatuto da Criança e do Adolescente que vem garantindo o direito da criança a cuidados mesmo quando os genitores prejudicam ou nem mesmo participam do processo de desenvolvimento do filho.

De acordo com o que apresentamos no decorrer deste texto convidamos o psicólogo a refletir sobre sua função junto às famílias no sentido de estarmos atentos à necessidade que tem emergido nos sistemas familiares de obter uma visão de sua dinâmica apenas através de um olhar externo: o do especialista em famílias. Assumir o papel de cuidador terceirizado estabelece uma relação onde o poder de conhecer fica centralizado na figura do especialista e não flui de parte a parte. Essencialista, portanto. Propomos que a principal função do psicoterapeuta seja a de emprestar os seus “olhos de quem quer conhecer”, humildemente, nem maior nem menor que seu(s) cliente(s), apenas do tamanho da importância que lhe cabe num dado contexto. Ecológica, portanto.

Finalizando...
Sem dúvida a terapia familiar é uma valiosa abordagem de que hoje dispomos para o encaminhamento e intervenção nas situações em que o sistema familiar apresenta-se em sofrimento, precisando cuidar de uma dor que ali circula, talvez a gerações, e a todos prejudica mesmo que de formas diferentes. Entendemos que é fundamental ter cautela ao recomendar a terapia de família, pois uma crise pode ser parte de um genuíno processo de transformação e de superação e, não necessariamente o anúncio de u m fracasso. A crise não pressupõe obrigatoriamente uma intervenção profissional na direção de encontrar um novo contorno – no indivíduo ou na família. Profissionalmente podemos intervir a favor da descoberta da melhor configuração possível para aquele sujeito ou para o sistema no qual toma parte, desde que o direcionamento seja dado por quem o demanda - o cliente. Por outro lado, se pais e mães necessitam de tanta ajuda quanto seus filhos, convêm av aliar também se o mais proveitoso é que o sistema seja apenas tratado como um todo, ou que se indiquem cuidados a cada um, de acordo com suas diferentes demandas. Frisamos que a pesquisa da demanda quando se recebe uma família ou uma criança para psicoterapia é o que decidirá qual o melhor encaminhamento a ser feito. Apostamos num trabalho psicoterápico, seja ele individual ou familiar, mas que seja Ecológico, integrado e integrador, que sirva como caminho para a libertação de afetos, percepções, indivíduos e famílias dos pesados comandos externos da pós-modernidade que teimam em aprisioná-los numa redoma de suposta e estéril perfeição a ser alcançada.

 

Bibliografia
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Editor, 2003.