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CIÊNCIA  COGNITIVA  E  EXPERIÊNCIA  HUMANA
(Cognitivismo, Conexionismo e Ciência Cognitiva Enativa: Suas Implicações Éticas)

 Humberto Mariotti

O cérebro existe num corpo, o  corpo existe no mundo e o organismo age, move-se, caça, reproduz-se, sonha, pensa. É dessa atividade permanente que emergem o sentido de seu mundo e as coisas.  
(Francisco Varela)

Nos dias atuais, cresce o número de pessoas que acreditam que a sobrevivência do ser humano neste planeta depende de uma profunda mudança em sua mentalidade. Tal modificação conduzirá a uma epistemologia bem diversa da que hoje predomina em nossa cultura.1 Ela ocorrerá (ou não) em função de alterações em nossa postura ética, tanto em relação a nós próprios quanto em relação ao meio ambiente.

Este artigo pretende mostrar que uma epistemologia diferente da atualmente dominante pode produzir (como já vem acontecendo, em certas áreas) mudanças políticas, científicas, éticas, filosóficas e, conseqüentemente, de práticas cotidianas. Estas, por sua vez, despertarão imensas resistências em muitos setores da sociedade (o que, nessas mesmas áreas, já começa a tornar-se evidente). A intensidade de tais resistências constitui talvez a melhor demonstração da necessidade dessas transformações. 

Há várias maneiras de demonstrar esta tese. Escolhi fazê-lo por meio da ciência cognitiva porque, como assinala Francisco Varela2, as interações entre os pesquisadores, os tecnólogos e o grande público são de fundamental importância nos dias de hoje, época em que a ciência representa para as nossas sociedades uma espécie de guia e oráculo, que legitima e sustenta boa parte das ações humanas.

Eis os meus pontos de partida:

a) nossa idéia de mundo vem de nossa cognição;
b) conhecemos o mundo segundo nossa estrutura;
c) essa estrutura cognitiva implica um determinado modo de elaborar o que foi percebido;
d) os resultados dessa elaboração orientam nossas ações;
e)  tais ações têm conseqüências éticas;
f)  logo, para mudá-las, é preciso modificar nossas idéias sobre a cognição, o que por sua vez alterará nossa estrutura cognitiva.

Para aprofundar essa argumentação são necessárias algumas informações preliminares, a seguir expostas de modo breve.

Ciência Cognitiva: Despertar e Trajetória
Pode-se definir a ciência cognitiva como o estudo da mente e do conhecimento em todas as suas manifestações. Como observam Varela e colaboradores, a expressão “ciência cognitiva” é usada para mostrar que o estudo da mente é, por si mesmo, um empreendimento científico respeitável.3 Os primeiros passos nesse sentido foram dados nos EUA, no século 20 (início da década de 40), por um grupo de estudiosos oriundos de várias áreas. Ao longo de cerca de uma década, eles se reuniram em uma série de conferências (que ficaram conhecidas como "conferências Macy") para estudar a mente e a cognição —  e o fizeram de uma forma diferente da até então utilizada pela psicologia tradicional.

Eram engenheiros, antropólogos, cientistas sociais, matemáticos, filósofos, psicólogos e pesquisadores de outras áreas. Formavam, pois, um grupo interdisciplinar. Dessa maneira, a interdisciplinaridade tornou-se uma das principais características do que atualmente conhecemos como ciência cognitiva, e hoje a beneficia com a convergência de pelo menos cinco disciplinas: neurociências, psicologia cognitiva, inteligência artificial, lingüística e filosofia. Essa primeira fase ficou conhecida como período cibernético. De um modo sumário, pode-se dizer que suas características básicas são: a) escolha da lógica matemática como instrumento de descrição do funcionamento do sistema nervoso e da mente; b) utilização da teoria geral dos sistemas como fio condutor de raciocínios e pesquisas; b) surgimento da teoria da informação; c) construção dos primeiros robôs.

Em 1956 começou a segunda fase da ciência cognitiva, o chamado período cognitivista ou computacional. Seus principais pressupostos são: a) o cérebro é um computador neuronal produzido pela evolução; b) a cognição resulta do processamento de informações vindas no mundo natural; c) tais informações são processadas num nível simbólico existente na estrutura cerebral. Em outros termos, o que percebemos do mundo são representações. 

A metáfora do computador logo se tornou o “núcleo duro” da ortodoxia cognitivista. O cérebro é o hardware e as informações por ele processadas o software. O processamento (computação) das informações vindas do ambiente é feito sobre símbolos, isto é, elementos que representam as percepções às quais correspondem. No entanto, a dimensão cerebral que abriga esses símbolos como realidades físicas não é redutível à realidade tecidual, concreta, desse órgão.

O pressuposto de base do cognitivismo é que o mundo é predeterminado, ou seja, pré-dado em relação ao observador, que assim o perceberia de modo passivo: absorveria informações que já viriam configuradas de fora. A esse modo de pensar chama-se representacionismo. Ele afirma que o conhecimento corresponde às representações que fazemos do mundo em nossa mente, a qual desse modo seria um espelho da natureza. Esse mundo anterior à nossa observação conteria informações independentes de nossa elaboração, cabendo-nos extrai-las dele por meio da cognição.

A hipótese cognitivista sustenta que o cérebro manipula (processa) apenas os atributos físicos dos símbolos (isto é, sua forma), mas não a sua semântica (seu significado). Essa particularidade criou uma dificuldade teórica, mencionada por Varela. Como sabemos, no caso do computador o programador humano insere os programas (o software) e também sua semântica, isto é, o que eles significam. Já no caso do cérebro, que supostamente só lida com os aspectos físicos dos símbolos, quem inseriria esses significados?

Essa questão, não satisfatoriamente resolvida, levou à busca de novas formas de teorização. Surgiu então a terceira fase da ciência cognitiva, o período conexionista. Aqui, a hipótese fundamental é que a cognição acontece por meio da dinâmica das redes de neurônios, de cujas conexões surgem as chamadas propriedades emergentes. O processo consiste, então, na emergência de estados globais a partir de redes de componentes simples. Não mais se trata de processar símbolos, mas sim dos resultados das interações complexas entre os elementos constitutivos dessas redes. O conexionismo mantém a idéia de que o mundo é anterior à experiência do observador e que a cognição corresponde a representações mentais. Depois do modelo conexionista, Francisco Varela introduziu a abordagem que chamou de enativa (teoria da atuação) e que examinaremos logo mais. 

Hard Problem, Explanatory Gap e Outras Questões
Examinemos duas posições de Howard Gardner em relação às abordagens dominantes da ciência cognitiva, isto é, o cognitivismo, o conexionismo e combinações entre ambos:

"O terceiro aspecto da ciência cognitiva é a decisão deliberada de não enfatizar certos fatores que podem ser importantes para o funcionamento cognitivo, mas cuja inclusão neste momento complicaria desnecessariamente o empreendimento cognitivo-científico. Estes fatores incluem a influência de fatores afetivos ou emoções, a contribuição de fatores históricos e culturais, e o papel do contexto de fundo no qual ocorrem atitudes ou pensamentos particulares."4

E, mais adiante:

"Embora os cientistas cognitivos da linha dominante não tenham necessariamente aversão ao campo afetivo, ao contexto que cerca qualquer ação ou pensamento, ou à análise histórica ou cultural, na prática eles tentam excluir ao máximo esses elementos. Até mesmo os antropólogos o fazem quando estão atuando como cientistas cognitivos. Isto pode ser uma questão de praticidade: caso se fosse levar em consideração estes elementos individualizantes e fenomenalistas, a ciência cognitiva poderia tornar-se inviável. Em um esforço para explicar tudo, acaba-se não explicando nada. E assim, pelo menos provisoriamente, a maioria dos cientistas cognitivistas tenta definir e investigar problemas de forma tal que uma explicação adequada possa ser dada sem que se recorra a estes conceitos obscuros."5 

Trata-se, portanto, de excluir os sentimentos e emoções, os fatores históricos e culturais e o contexto. Isto é, afastar o fenomenológico, e com ele tudo aquilo que mais fundamentalmente caracteriza o ser humano — porque tudo o que é humano implica inevitavelmente afetividade, emocionalidade, culturalidade, historicidade e contextualidade. Não há ser humano sem mundo.

Tais fatores "individualizantes e fenomenalistas" são expurgados porque são julgados "obscuros". O que se quer, pois, é estudar a mente excluindo grande parte do humano desse estudo. O afã de formalizar, mecanizar, quantificar e artificializar caracteriza, assim, uma ciência afastada da experiência humana, como notou Varela. Uma ciência que exclui, que expurga em nome de uma suposta "objetividade". Eis aqui um exemplo nítido de separação sujeito-objeto e observação não-participante. Pretende-se estudar a mente como se ela estivesse fora do corpo, e até mesmo fora do mundo. Trata-se de estudar uma mente não-corporificada, separada do corpo — uma coisa, um "isso", e não um fenômeno natural. Mais ainda, trata-se de afastar a consciência do âmbito da ciência cognitiva. Na opinião (embora emitida a contragosto) de Ray Jackendoff, por exemplo, se a consciência não é eficaz, em termos causais, ela "não serve para nada".6 

Para David Chalmers7, as questões ligadas ao processamento da informação no cérebro  são os "problemas fáceis" (easy problems). Com isso, ele quer dizer que se trata de questões que podem ser trabalhados pela metodologia das ciências naturais. Mas a consciência não se presta a essa redução, e por isso Chalmers a denomina de "o problema difícil" (the hard problem). Em seu modo de ver, mesmo quando conseguimos explicar todas as funções cognitivas, como a discriminação perceptiva, a categorização, o acesso interno e a capacidade de relatar verbalmente, uma pergunta continua não respondida: por que essas funções são acompanhadas de experiência? Em outras palavras: quando estou pensando, por exemplo, por que me dou conta de que estou pensando? Por que tenho a experiência de estar fazendo isso? Ou, como indaga Chalmers, por que os processos mentais não acontecem "no escuro", separados de sentimentos internos?

A exclusão da consciência do âmbito das abordagens dominantes da ciência cognitiva pode levar ao equívoco de que é possível conhecer sem saber que estamos conhecendo, que podemos pensar sem ter a experiência de estar fazendo isso. Dessa maneira, os dados fenomenológicos são afastados, ignorados, como denunciou — mesmo sem referir-se explicitamente à fenomenologia — Owen Flanagan, o que o levou a perguntar como seria possível conceber a mente sem a consciência.8 

A separação entre mente e experiência (entre o o conhecer e o dar-se conta de estar conhecendo) equivale a ignorar os dados fenomenológicos do processo cognitivo. Isso significa descartar a subjetividade como fonte de dados importantes para a ciência cognitiva. Sabemos que conhecer a estrutura do sistema nervoso, a histologia e a fisiologia dos neurônios e o modo de produção e ação dos neurotransmissores, por exemplo, nada nos ensina a respeito de como esses dados e processos neurofisiológicos produzem sensações subjetivas. Ou seja, nada sabemos sobre como se dão as relações entre o físico e o não-físico — o material e o imaterial, o corpo e a mente. Eis a chamada "lacuna explicativa" (explanatory gap), expressão introduzida por Joseph Levine9  para nomear o que talvez seja a principal limitação dos modelos dominantes de ciência cognitiva.

Sob esse ponto de vista, experiência e sentimentos, na qualidade de domínios não-físicos, são fenômenos irredutíveis à concretude do organismo. Seria, portanto, impossível estabelecer uma ponte entre esses dois âmbitos. A abordagem enativa da ciência cognitiva se propõe a construir essa ponte, isto é, pretende preencher a lacuna entre o físico e o fenomênico, entre ciência e experiência. No estado atual das pesquisas, o instrumento que tem se mostrado mais adequado para a busca desse objetivo é a integração da fenomenologia husserliana clássica às ciências da cognição. Para tanto, porém, ela clássica precisa ser modificada. As bases e metodologia desse empreendimento foram lançadas em vários trabalhos de Varela e colaboradores.10, 11      

A abordagem Enativa
Depois das hipóteses cognitivista e conexionista (que foram seguidas por propostas de fusão entre ambas), surgiu a alternativa proposta por Francisco Varela — a abordagem a que ele deu o nome de enativa (ou teoria da atuação). Aqui a perspectiva muda radicalmente, porque a base passa a ser o conjunto das idéias desenvolvidas por ele em colaboração com Humberto Maturana12, 13, 14. Para esses autores, a cognição não consiste em representações que o cérebro do observador faz de um mundo que é predeterminado em relação a ele. Em vez disso, o processo cognitivo é visto como uma construção de mundo — uma construção dinâmica e portanto inseparável do histórico de vida, do processo do viver.

Isso implica que os seres vivos são estruturalmente determinados, isto é, percebem o mundo segundo sua estrutura. A percepção de um sistema vivo num dado momento depende de sua estrutura nesse momento. O que vem de fora apenas desencadeia potencialidades que já estão determinadas na estrutura do sistema percebedor.Varela sugere uma metáfora útil para a compreensão desse conceito, que modifico um pouco e passo a expor. Imaginemos uma campainha de vento — aqueles tubos de diferentes diâmetros e comprimentos que se penduram nas varandas das casas para que, tangidos pela brisa, produzam som. O som que um móbile desses produz não é determinado pelo vento, e sim pelo modo como os tubos se relacionam uns com os outros para formar o conjunto. O vento apenas deflagra potencialidades que residem na estrutura desse conjunto. O móbile está em interação (acoplamento) constante com o meio, de onde vem o vento. Seja este mais forte ou mais fraco, o som produzido pelo móbile será sempre uma potencialidade da interação de seus tubos. O soprar do vento desencadeará algo que está determinado na estrutura do móbile. Assim, o vento e o móbile se codeterminam e o som emerge dessa interação. Sem a brisa não haveria som, é claro, mas este está determinado no móbile e não nela. 

O mesmo fenômeno pode ser ilustrado pela percepção cromática, como observa Varela. Percebemos as cores de modo diferente dos pombos, por exemplo, cuja visão é pentacromática. As abelhas, por sua vez, têm visão ultravioleta. Mas qual será, afinal de contas, a cor do mundo? É lógico admitir que ele deva ter uma cor, mas não sabemos qual é. Tudo o que conhecemos são cores percebidas segundo estruturas determinadas (sejam elas de seres humanos, de pombos, de abelhas etc.) e em interação com o ambiente. Assim, é lícito supor que o mundo seja o mesmo para todos os seres vivos — mas seguramente não é percebido do mesmo modo por todos eles. Assim, a cognição é uma construção que resulta da interação do ser vivo com o seu mundo. À medida em que vive ele o constrói e vai sendo também por ele construído. Trata-se de uma relação de congruência, codeterminação, criação mútua.

Na enação não há mais necessidade da representação de um mundo anterior à percepção do observador. Não se trata de uma estrada já aberta, mas sim da construção de um caminho pelo próprio caminhante, que interage com ele momento a momento. Como nos sempre citados versos do poeta espanhol António Machado: “Caminante, no hay camino / se hace camino al andar” [“Caminhante, não há caminho / o caminho se faz ao caminhar”]. Esse processo constitui um en-agir, um fazer-emergir, uma ação intimamente ligada a seu autor.

Dessa forma, há pelo menos dois modos de considerar um caminhar, e cada um deles tem suas próprias conseqüências éticas. O primeiro consiste em levar em conta apenas o ponto de chegada. É o que poderíamos chamar de "viagem de resultados". O que interessa é o ponto final. No segundo, o interesse maior está voltado para o trajeto, isto é, para o processo. Diz-se então que o caminho se faz ao caminhar, desvela-se à medida em que o percorremos. No primeiro caso estamos preocupados com um ponto, com uma coisa. No segundo, interessa-nos um processo. Na primeira circunstância abrevia-se o mais possível o caminho, porque ele não interessa. Na segunda, busca-se a experiência do trajeto.

 É claro que há momentos da vida em que o que nos deve interessar mesmo é a meta final, e há situações em que podemos e devemos apreciar o que ocorre durante o caminho. No mais das vezes, porém, nossa atenção deve ser voltada não apenas para a meta, mas também para o trajeto que foi percorrido para atingi-la. De todo modo, uma coisa é certa: o fato de não nos preocuparmos com o caminho não significa que podemos eliminá-lo. O fato de tentarmos excluir a experiência não significa que estejamos livres dela — nem das conseqüências dessa tentativa de exclusão. Tudo isso significa que não somos passivos diante do mundo: nós o percebemos à medida em que o construímos e enquanto somos por ele construídos. Trata-se de um processo dialógico. A cognição não é uma simples representação do mundo em nossas mentes, resulta de nossa interação com ele. Trata-se de um desvelamento mútuo.

Na abordagem enativa, é fundamental observar que: a) a mente não é uma instância abstrata e separada do cérebro, isto é, ela está corporificada; b) o cérebro faz parte do corpo; c) o corpo faz parte do mundo e nele vive sua história, segue o fluxo de sua existência. O corpo e seu meio ambiente vivem histórias que interagem enquanto dura o processo vital de ambos. Quando Varela diz que a mente está corporificada no cérebro (e portanto no corpo), sustenta também que ela não está separada do mundo. E é claro que assim deve ser, porque, como disse Heidegger, todo ser vivo é um ser-no-mundo. Ou, como expressa a conhecida formulação de Merleau-Ponty, os seres vivos estão encarnados no mundo, fazem parte da carne do mundo.

Para a abordagem enativa, a interação produz significados compartilhados. Fazer-emergir é fazer-emergir-com. Aqui se inclui a consciência e, claro, os sentimentos, as emoções, a dimensão histórica e o contexto em que ocorrem os fenômenos. Tudo isso influencia a cognição, que não é um simples meio de resolver problemas propostos por um mundo pré-dado: ela define questões na interação com o mundo. A ciência não deve se afastar da experiência. Pelo contrário, como diz Varela, a experiência é o locus de toda unidade cognitiva. Ao inverso do que se possa imaginar, nada disso diminui o rigor da abordagem enativa. Como observa Varela, em vez de lidar com símbolos e regras, é preciso — sem deixar de reconhecer o avanço representado pela abordagem conexionista — trabalhar com sistemas compostos por variáveis reais, utilizando equações diferenciais. 

Como já foi dito, esse esforço implica  estabelecer a fenomenologia husserliana como um dos instrumentos básicos da ciência cognitiva. Sabemos, entretanto, que Husserl propunha que o método fenomenológico deveria se afastar do universo das ciências naturais, o que o tornaria inadequado para essa finalidade. Em vista disso, autores como Francisco Varela, Natalie Depraz, Jean-Pierre Dupuy, Shaun Gallagher, Evan Thompson, Bernard Pachoud, Luiz Pessoa, Jean Petitot e Jean-Michel Roy, entre outros, vêm desenvolvendo um minucioso trabalho teórico, com a finalidade de promover a "naturalização" da fenomenologia. O objetivo é modificá-la, de modo a que ela passe a ser não apenas compreensiva, mas também explicativa. Dizendo de outro modo: para que por meio dela seja possível fazer uma ciência cognitiva ao mesmo tempo naturalista e fenomenológica. Essa abordagem vem sendo chamada de "fenomenologia naturalizada".

Conseqüências Éticas
É importante assinalar que desde sempre a ciência produz, por meio da tecnologia, modificações nas práticas cotidianas das culturas nas quais se manifesta. Além disso, como assinalam vários autores (inclusive Varela), a ciência cognitiva e as tecnologias dela derivadas constituem a revolução mais importante desde a física atômica. Como a física, ela terá (já vem tendo, aliás) um papel importantíssimo em nossas sociedades. Nossa preocupação, cuidado e responsabilidade em relação a um mundo que é parte de nossa carne — e de cuja carne fazemos parte — é muito diferente da atitude diante de um mundo do qual estamos supostamente separados, e que é predeterminado em relação á nossa presença. Portanto, não é difícil deduzir que as conseqüências éticas do cognitivismo e do conexionismo são muito diferentes das da abordagem enativa. 

A exclusão de dimensões importantes da condição humana produz conseqüências éticas importantes, dentro e fora do âmbito das teorias científicas. Tentar, mesmo que provisoriamente, afastar a incerteza, a aleatoriedade, a finitude e a imprevisibilidade, corresponde a pretender negar aquilo que mais visceralmente caracteriza o ser humano. Ele só é (e mesmo assim até certo ponto) mecanizável e quantificável em relação aos parâmetros de sua vida mecânica: ingestão, digestão, excreção, reprodução e as praxes sociais a isso destinadas ou daí decorrentes. Existe, porém, a vida não-mecânica, que além dos sentimentos e emoções inclui os fatores já mencionados, que a ciência cognitiva ortodoxa pretende expurgar.

É evidente que todos têm inteira liberdade para adotar e defender o cognitivismo, o conexionismo (este já mais próximo da biologia), alguma forma de fusão entre eles ou outras teorias ainda por surgir. O mesmo vale para qualquer outro modo de pensar, em qualquer campo. No entanto, é preciso que quem o fizer esteja consciente das conseqüências éticas implicadas, isto é, do pensamento daí decorrente, das ações dele oriundas e de seus resultados quando da aplicação à prática cotidiana. Tais conseqüências podem ser percebidas com nitidez quando se muda de ângulo de observação. Quando se exclui o contexto histórico, o meio ambiente e os sentimentos e emoções — isto é, quando se desumaniza a metodologia—, tudo parece clean, facilmente quantificável, pragmático e assepticamente científico. No entanto, quando se levam em consideração as dimensões humanas não-mecânicas antes excluídas, surgem com clareza as conseqüências resultantes dessa exclusão. É o que veremos logo mais.  

Já que vivemos num mundo de homens “práticos”, numa cultura de resultados (e resultados quantitativos), nada mais natural do que tomar consciência das conseqüências desse modo de ver o mundo. Já que somos orientados por um modelo mental pragmático e quantitativo, falemos sobre números. Por exemplo: no mundo de hoje, quantos milhões de pessoas estão à margem dos benefícios derivados da ciência, inclusive a cognitiva? Eis o que realmente importa averiguar: que tipo de responsabilidade (ou irresponsabilidade) se origina dessa ou daquela teoria (científica ou não), a partir do momento em que ela dá origem a pensamentos, que por sua vez modificam as práticas sociais?

Para muitas pessoas, pode parecer absurdo comparar o cérebro ao computador, separar dele a mente e, como se não fosse bastante, expurgar do âmbito do estudo da mente dimensões inerentes à condição humana. Mas na prática foi exatamente isso que aconteceu. E não só aconteceu como os modelos ortodoxos de ciência cognitiva são os atualmente dominantes.

  A “McDonaldização” do Mundo  
 O expurgo de boa parte das características fundamentais da condição humana tem vários objetivos. Um deles é padronizar e quantificar as pessoas. Essa circunstância por um lado as reduz a meios de produção, e por outro as transforma em clientes — máquinas de consumo e descarte. Essa visão de mundo vem sendo posta em prática de forma avassaladora, e tem sido denunciada de muitos modos e em inúmeras publicações e pronunciamentos. Corresponde ao que George Ritzen, em livro publicado nos EUA em 1996, chamou de “McDonaldização da sociedade”, como registram Rafael Alcadipani e Ricardo Bresle15. Em meu livro mais recente — As paixões do ego:  complexidade, política e solidariedade16 —,  examino com detalhes esse conjunto de fenômenos. Dada sua a importância, porém, convém reexaminá-los de modo breve. É o que passo a fazer, desta vez a partir de novos ângulos.

Como se sabe, esse ímpeto mensurador, racionalizador e padronizador reflete as orientações básicas do que se convencionou chamar de "projeto da modernidade", cujas características principais são o controle, a previsibilidade e a quantificação. Ou, como diz Edgar Morin, ciência materialista, razão laica e inevitabilidade do progresso histórico. Assim, não é de admirar que, a partir da exclusão de algumas das características ontológicas fundamentais do ser humano, tenham sido tomadas medidas concretas para exclui-lo tout court. É o que vem acontecendo, de modo mais que explícito, no mundo de hoje. A esse respeito, é importante que todos tomem conhecimento do trabalho fotográfico de Sebastião Salgado, documentado em diversos livros (Êxodos17, por exemplo) e em publicações e exposições no mundo inteiro. Lá estão documentados os resultados de três séculos de quantificação, racionalização e controle, hoje consubstanciadas na chamada "globalização neoliberal".

Além dessa dramática constatação é possível apontar outras, facilmente verificáveis em muitas das áreas do nosso dia-a-dia. A seguir, descrevo algumas das características desse conjunto de fenômenos. É claro que todas elas estão interligadas.

Negação da reflexão. A indução à ação pura, não pensada, e à satisfação imediata dos desejos (em especial os de ordem material) tem um objetivo bem definido. Para compreendê-lo, é importante lembrar a relação entre experiência e reflexão, delineada por Varela18. Para ele, a experiência é uma forma de consciência. Contudo, é uma consciência à qual falta a reflexão, a capacidade reflexiva. A reflexão confere à consciência a dimensão humana. “Se só tenho a experiência”, diz Varela”, “não serei mais que um gorila”.19  A reflexão que se segue à experiência abre-nos a possibilidade de trabalhá-la e ampliá-la. Pode-se dizer que ela é um meio — e dos mais importantes — de ajudar a perceber o mundo, compreender como ele se desvela em suas interações conosco, como é construído por nossa experiência e, por sua vez, a constrói. Ou, como diz Varela, “explorar a experiência humana com grande rigor de coleta de dados fenomenais"20.

A conclusão acaba sendo um lugar-comum: condicionar as pessoas para a pressa, o imediatismo, o desejo de saciedade instantânea e invariável e, principalmente, para a padronização de movimentos, escolhas e desejos, é uma forma eficaz de impedir que elas pensem — é a negação de sua capacidade reflexiva. Trata-se de um modo de impedir que elas construam seus mundos segundo suas estruturas e, assim, passem a acreditar que existe um mundo que é igual para todos, que pode ser facilmente padronizado, bitolado, edulcorado. E quem não o perceber dessa maneira está com problemas: é diferente, excêntrico, “subjetivo”. Está, enfim, à margem da sociedade estabelecida. Portanto, a negação da reflexão é uma forma de controlar as pessoas. Tudo isso é óbvio. É um conjunto de platitudes que nem mereceriam repetição, não fosse exatamente esse o nosso principal problema: em muitas circunstâncias de nossas vidas, somos incapazes de perceber o óbvio. É o que mostram tanto a experiência cotidiana quanto os registros históricos. Uma boa amostra destes pode ser encontrada no livro de Barbara Tuchman The march of folly21.

Se o mundo é igual para todos — como sustenta a hipótese representacionista —, que necessidade há de refletir sobre ele? Que necessidade há de pensar sobre nossas experiências? O corolário é que se o mundo é predeterminado, se é o mesmo para todos, basta manipulá-lo para que as pessoas sejam também facilmente manipuladas — e em massa. Eis mais outro exemplo desse vasto conjunto de obviedades, que quanto mais patentemente se mostram menos percebidas são.

As relações entre o modelo de cognição representacionista e as muitas formas de autoritarismo são também óbvias. Destaco o "novo autoritarismo", que, alegando proporcionar "liberdade de escolha", na verdade impõe às pessoas o chamado “pensamento único”. Sob esse ponto de vista, teoricamente podemos construir o mundo que quisermos — desde que ele seja o mesmo para todos e possa ser quantificado, padronizado e pasteurizado. Trata-se, pois, de um mundo de resultados. As implicações de tudo isso em relação à educação também são óbvias, e têm sido examinadas de várias maneiras. Como exemplo, volto a mencionar o artigo de Alcadipani e Bresle, cujo título é, apropriadamente, McDonaldização do ensino: universidades e escolas adotam o modelo da fast-imbecilização.22

Como já foi dito, a manutenção da separação consciência/mente (ou experiência/mente), imaginada pelo cognitivismo e pelo conexionismo, afasta a ciência da experiência. Ao propor uma mente não-corporificada (separada do cérebro), essa abordagem permite, por um lado, a apropriação do corpo para a produção de energia mecânica. Entretanto, como tal energia já não é tão importante nesta era do virtual, o corpo ficou sujeito (e muito freqüentemente é conduzido) ao descarte em massa. Por outro lado, essa mesma orientação propicia a apropriação da mente, que assim pode ser submetida com facilidade ao "pensamento único" e, dessa maneira, é impedida de questionar a apropriação do corpo.

Neotaylorismo. A padronização da gestualidade para a produção no menor tempo possível de energia mecânica, é a característica básica do taylorismo, ou gerência científica, que se consolidou no começo do século 20. O objetivo era o de sempre: calculabilidade (previsibilidade, evitação da incerteza), eficiência (os fins justificam os meios) e padronização. Como se sabe, tais práticas deram margem a muitas críticas. Uma delas foi o célebre filme de Charles Chaplin, Tempos modernos. Outra está expressa na frase de Albert Camus: “Os homens não estão em ordem, estão em fila”.23

Para quem pensa que o taylorismo acabou, será uma surpresa constatar que ele não apenas continua como se sofisticou muito, e pode ser facilmente observado visitando-se qualquer uma das muitas lojas de fast food que proliferam nas grandes cidades de todo o mundo. Talvez os cientistas cognitivistas se surpreendam (e é lícito supor que eles não planejaram nada disso), mas o fato é que esse neotaylorismo segue, passo por passo, algumas de suas propostas. Vejamos as principais.

a) exclusão dos sentimentos e emoções: pela padronização do paladar, do olfato, da visão, dos gestos, do senso estético — pela impessoalidade, enfim;
b) exclusão do contexto: a filosofia dos fast food de Nova York é a mesma dos de Moscou, São Paulo, Paris, Roma e assim por diante;
c) exclusão dos fatores culturais, históricos e sociais: com pequeníssimas variações (concessões às culturas locais), nessas lojas serve-se exatamente a mesma comida; os alimentos têm praticamente os mesmos nomes; trabalha-se no mesmo ritmo e com a mesma idéia de temporalidade, espacialidade e quantificação.

O fast food neotaylorizado, tal como as linhas de montagem industriais — e tal como proposto pela ortodoxia da ciência cognitiva —, afasta-se da biologia e se aproxima da engenharia; distancia-se da diferença e se avizinha da repetição; afasta-se da experiência e se aproxima das ciências ditas exatas; vai para longe do processo e para perto dos resultados; privilegia e vida mecânica e desvaloriza os sentimentos e emoções. Numa palavra, valoriza o valor-coisa e desvaloriza o valor-processo.

Clientização. Para se manterem, o neotaylorismo e as práticas sociais a ele ligadas precisam arregimentar e conservar seus públicos-alvo. Se o objetivo é vender padronização, imediatismo e repetitividade, é preciso induzir as pessoas a serem padronizadas, imediatistas e repetitivas: fazer as mesmas coisas no menos tempo possível e fazê-las continuamente. Isso implica que elas devem ser transformadas em clientes. É o que chamo de clientização. Para que isso seja possível, é preciso que as pessoas: a) sejam impedidas de refletir (porque tudo já vem empacotado e com instruções de uso); b) tenham seus desejos prontamente atendidos: ao menor sinal de insatisfação, tal como bebês que ameaçam chorar, elas recebem, já prontas para o consumo, suas “mamadeiras”. 

Eis a vida conduzida apenas pelo princípio do prazer — a filosofia da satisfação instantânea como estratégia de manutenção de comportamentos infantis e, assim, mais facilmente controláveis. Desse modo criam-se populações regredidas, condicionadas e portanto alienadas. A partir daí, fica fácil induzir condutas estereotipadas e se padronizam o paladar, o olfato, a audição, o senso estético e assim por diante.

A condição si ne qua non para alguém ser clientizado é ter dinheiro para pagar pelos produtos e serviços padronizados. Quem não o tem não pode ser um cliente. E, como na ótica da nossa cultura de resultados quantitativos não existem senão clientes, quem não é cliente não é nada. Precisa, portanto, ser excluído. Substituem-se a reflexão e a individualidade pelo individualismo, pela “competitividade” e pela ética do empanturramento. Da condição de pessoa, passa-se ao status de cliente; da cidadania à mentalidade de rebanho; da reflexão à obediência. É assim que o indivíduo vai, sem se dar conta disso, do qualitativo ao quantitativo. E ainda é levado a crer que está adquirindo uma “boa qualidade de vida”.

O Neo-Autoritarismo
 Nos últimos tempos, ouvimos com freqüência que uma das grandes conquistas das sociedades atuais é o virtual desaparecimento das ditaduras em todo o mundo. A constatação é sem dúvida auspiciosa e deve ser aplaudida. No entanto, ela não implica a eliminação de todas as formas de autoritarismo. Em outras palavras, a diminuição da quantidade de governos ditatoriais no mundo não necessariamente significa liberdade de pensamento, que por sua vez levaria à liberdade de escolha. Tal não acontece porque continuamos vivendo em uma cultura na qual, para a maioria das pessoas, a liberdade de pensar e escolher está controlada pelos meios de condicionamento de massa.

Tudo isso é bem conhecido. O que não é tão amplamente sabido é o que existe por trás dessa estrutura de indução das pessoas à obediência e ao conformismo. Em As paixões do ego24, sustento que a causa mais importante desse fenômeno é a profunda formatação da mente de nossa cultura pelo pensamento linear. Esse modelo mental propõe que as causas são imediatamente anteriores aos efeitos (ou estão muito próximas deles) e ambos estão sempre no mesmo contexto de espaço e tempo. Um dos resultados disso é que hoje, mais do que nunca, as dimensões mecânicas e econômico-financeiras da vida são vistas como um fim em si. E, também mais do que nunca, as pessoas se identificam com os valores da vida mecânica..

Desde os tempos de Platão, estamos profundamente convencidos de que existe uma hierarquia do conhecimento. Convencionamos que a ciência está acima de tudo, que o conhecimento técnico e acadêmico vem logo abaixo dela e que, por último, situa-se conhecimento gerado pelas "pessoas comuns" — isto é, por todos nós. As conversações da ciência seriam "superiores" às do grande público, e deveriam ser vistas por ele como um guia, farol ou oráculo a seguir. Não há dúvida de que em muitas ocasiões isso é verdadeiro. Mas também é verdade que em muitos casos as redes de conversação formadas pelo grande público produzem conhecimentos de importância. Assim, a inclinação para privilegiar determinados ideários e ideologias baseia-se no pressuposto, firmemente enraizado em nossa cultura, de que os conhecimentos ditos científicos são "mais corretos", "mais exatos" e portanto "mais importantes" do que os demais. Mesmo no âmbito científico, as chamadas "ciências exatas" são privilegiadas, o que as leva a serem consideradas “"mais sérias" ou "mais confiáveis" do que as ditas "humanas".

Essa é a posição adotada pela ciência cognitiva ortodoxa. Ao agir assim, ela dá a sua contribuição à tarefa na qual todos nós, há séculos, nos empenhamos com afinco: fazer com que o homem se divida e se aliene de si próprio. Fazer com que ele se distancie cada vez mais de seu lado não-exato, não mecânico, no qual residem "conceitos obscuros" como os sentimentos e as emoções — ou seja, as dimensões que tão profundamente definem a sua condição.

É claro que pelo menos em tese tudo o que os cientistas querem é exercer suas funções. Eles não têm, naturalmente, nenhuma intenção de causar danos ou problemas. Contudo, não há dúvida de que existe aquilo que Morin chamou de ecologia do pensamento, que por sua vez gera a ecologia da ação. Nossos pensamentos e atitudes repercutem muito além de nossas intenções e atuações imediatas, o que mostra que, como ocorre com qualquer circunstância humana, o projeto científico não está isento de variáveis que não podem ser controladas e/ou excluídas, embora com freqüência ele tente se auto-enganar a esse respeito. Recordemos uma frase de Jean-Pierre Dupuy: “Sem poder tornar-se senhor e proprietário do mundo, o cientista constrói dele uma imagem mais simples e tão fiel quanto possível, da qual, como de um fetiche, garante o domínio”.25

Não nos esqueçamos da imensa (e em muitos casos justificada) autoridade moral que a ciência exerce em nossa cultura. Mas também não nos esqueçamos de que os cientistas, como qualquer ser humano, são animados — uns mais, outros menos —  pela vontade de poder. É nesse sentido que a visão de mundo representacionista pode reforçar os três grandes objetivos da modernidade: a previsão, o controle e a quantificação. Esses objetivos compõem, desde sempre, a base de todos os autoritarismos, que precisam da ciência para dar-lhes credibilidade, e portanto mais autoridade. É exatamente esse o papel que, hoje, as ciências cognitivas ortodoxas (entre muitas outras) cumprem em relação ao chamado “pensamento único”.  

É evidente que não estou afirmando que os modelos representacionistas tenham preparado deliberadamente o terreno para formatar uma sociedade sobre a qual comandos possam ser facilmente exercidos. Mas o fato é que o pressuposto de que o mundo é igual para  todos facilita — e muito — as sugestões e os condicionamentos padronizadores. O chamado "pensamento único" é de extrema utilidade para manter esse status quo. Numa época em que a ciência tenta se aproximar cada vez mais da sociedade (fenômeno conhecido como "terceira cultura"), enfraquece cada vez mais o argumento de que aquilo que vale para ela pode ser separado do âmbito sociocultural. Também não estou afirmando que a ciência cognitiva ortodoxa conduziu diretamente ao "pensamento único" do novo autoritarismo, o que seria uma extrapolação indevida. Entretanto, não se pode deixar de observar que em ambos os casos existe uma identidade de epistemológica, que leva à negação de algumas das dimensões humanas fundamentais e às suas tristes conseqüências.

A idéia de um mundo predeterminado diminui o valor da experiência e da reflexão, favorece o condicionamento e a padronização e, no limite, a dominação. Um mundo assim não é desvelado, não é construído. É um mundo no qual se vive como quem segue um manual de instruções já prontas, vindas de fora. Um mundo predeterminado não é um horizonte a desvelar, e sim um corpus de diretivas a obedecer. Por que então cuidar dele, responsabilizar-se por ele?  

O objetivo de todas essas estratégias é simplificar o que não pode ser simplificado — a complexidade inerente aos fenômenos da natureza — e, por fim, excluir o que não se presta à quantificação e à mecanização. Tenta-se criar uma ética da super-simplificação, a ser imposta a seres que só podem ser compreendidos em sua totalidade e complexidade. Os resultados estão aí, à vista de todos. O propósito inicial pode ter sido apenas propor a hipótese de que o mundo é predeterminado, e por isso deve ser percebido de modo padronizado. Na prática, porém, não conseguimos ocultar as evidências de que estamos construindo um mundo que a cada dia nos aterroriza mais.

Conclusões
a) a manutenção da crença de que existe uma verdade fora de nós, que é a mesma para todos e que pode ser veiculada por meio de discursos “autorizados”, é essencial à manutenção das atuais estruturas de dominação social;
b) para que essas estruturas funcionem, é indispensável que todos estejam convencidos de que o mundo corresponde à representação que dele fazemos em nossas mentes;
c) em outros termos, é preciso manter a crença de que tudo está determinado antes de nossa participação;
d) manter essa crença é um dos papéis (não importa se consciente ou não) de boa parte do pensamento científico atual;
e) esse mundo predeterminado deve ser aceito sem questionamentos. Devemos viver nele como quem segue um manual de instruções elaboradas fora de nossa percepção;
f) nos dias atuais, esses são os principais fundamentos das éticas que levam à criação e à manutenção do conformismo e da obediência coletivos;
g) enquanto nossa cultura permanecer formatada pelo pensamento linear, terá imensas dificuldades para produzir modelos mentais diferentes desse padrão;
h) como vimos ao longo deste texto, a abordagem enativa da cognição é uma proposta que pode contribuir substancialmente para mudar essa situação.

Referências Bibliográficas 
1. VARELA, Francisco J. 2000. "O caminhar faz a trilha". In THOMPSON, William I., org., Gaia: uma teoria do conhecimento, São Paulo, Gaia, p.46.
2. VARELA, Francisco J. 1996. Invitation aux sciences cognitives, Paris, Éditions du Seuil, 1996, p. 10.  
3. VARELA, Francisco J., THOMPSON, Evan  e ROSCH, Eleanor. 1997. The embodied mind: cognitive science and human experience, Cambridge, Massachusetts, The Massachusetts Institute of Technology Press, p.4. 
4. GARDNER, Howard. 1996. A nova ciência da mente: uma história da revolução cognitiva, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1996, p. 20. (Grifos meus).
5. Id., ibid., p. 56. (Grifos meus).
6. JACKENDOFF, Ray. 1987. Consciousness and the computational mind. Cambridge, MA: MIT Press/Bradford Books, p. 26.
7. CHALMERS, David. "Facing up to the problem of consciousness". Journal of Consciousness Studies 2: 200-220. 
8. FLANAGAN, Owen. 1992. Consciousness reconsidered. Cambridge, MA: MIT Press/Bradford Books.
9. LEVINE, Joseph. 1983. "Materialism and qualia; the explanatory gap". Pacific Philosophical Quarterly 64: 354-361.
10.
VARELA, Francisco J., SHEAR, Jonathan, eds.1999.The view from within: first-person approaches to the study of consciousness. Thorverton, UK: Imprint Academic.
11. PETITOT, Jean, VARELA, Francisco J., Pachoud, ROY, Jean-Michel, eds.1999. Naturalizing phenomenology: issues in contemporary phenomenology and cognitive science. Stanford: Stanford University Press. 
12. VARELA, Francisco, MATURANA, Humberto, URIBE, Roberto. 1974. Autopoiesis: the organization of living systems, its characterization and a model. Biosystems 5:187-196, 1974.  
13. MATURANA, Humberto, VARELA, Francisco J. 1980.  Autopoiesis and cognition: the organization of the living, Boston, Reidel.
14. MATURANA, Humberto, VARELA, Francisco J. 1992. The tree of knowledge, Boston, Shambhala.
15. ALCADIPANI, Rafael, BRESLE, Ricardo. 2000. "McDonaldização do ensino: universidades e escolas adotam o modelo da fast-imbecilização". CartaCapital (São Paulo), ano 6, No. 122, 10 de maio, pp. 20-24.
16. MARIOTTI, Humberto. 2000. As paixões do Ego: complexidade, política e solidariedade, São Paulo, Palas Athena, p.175 e segs.
17. SALGADO, Sebastião. 2000. Êxodos. São Paulo, Companhia das Letras.
18. VARELA, Francisco J. 1998. "Le cerveau n' est pas un ordinateur; on ne peut comprendre la cognition si l' on' s' abstrait de son encarnation". La Recherche, No. 308, Avril 1998, p. 109-112, Entretien avec Francisco Varela par Hervé Kempf. 
19. Id., ibid.  
20.  VARELA, Francisco J. "Neurophenomenology: a methodological remedy to the hard problem". J. Consc. Studies, 3: 330-350, 1996. 
21. TUCHMAN, Barbara W. 1999. The march of folly: from Troy to Vietnam, Londres, Abacus/Little, Brown and Company.  
22. ALCADIPANI e BRESLE, op. cit.
23.  CAMUS, Albert. 1979. Estado de sítio/O estrangeiro, São Paulo, Abril Cultural, p.15.
24. MARIOTTI, Humberto, op. cit.
25.  DUPUY, Jean-Pierre. 1996. Nas origens das ciências cognitivas, São Paulo, Editora da Universidade Estadual Paulista, p. 185).


(Setembro/2000) 

Observação — Uma versão menos detalhada deste artigo foi publicada na revista Eccos (Uninove, São Paulo), vol 2, No.1, pp. 27-43, 2000, sob o título "Cognição, sociedade e o novo autoritarismo; uma análise de algumas abordagens científicas e suas conseqüências éticas".

HUMBERTO MARIOTTI é médico, escritor (ensaio, romance, conto) e professor da Business School São Paulo. Coordena o Grupo de Estudos Contemporâneos (Complexidade, Pensamento Sistêmico e Cultura) da Associação Palas Athena — Centro de Estudos Filosóficos, em São Paulo.  E-mailhomariot@uol.com.br


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