Reflexões gestálticas sobre autorreconhecimento como mulher negra na Amazônia<br>Gestalt reflections on self-recognition as black women in the Amazon

Autores

  • Lívia Cristinne Arrelias Costa Psicóloga Autônoma

Palavras-chave:

Clínica Gestáltica; Mulheres negras; Amazônia; Intersubjetividade.

Resumo

Sem perder de vista suas contribuições teóricas e metodológicas, a Gestalt-terapia inclui, no setting terapêutico, uma visão social e politicamente engajada do encontro clínico. A própria base teórica desenvolvida inicialmente por Fritz e Laura Perls e Paul Goodman mostra a impossibilidade de retirar as problematizações contraculturais da clínica psicológica, as quais estão presentes desde as primeiras reflexões de Fritz e Laura. Os conceitos gestálticos de campo, contato, fronteira de contato e self não podem ser compreendidos retirando-se cliente e psicoterapeuta de seu meio relacional, o qual inclui os aspectos sociais, culturais, históricos, espirituais e emocionais. A partir destes conceitos-chave foi realizada, neste trabalho, uma reflexão teórica de base fenomenológico-existencial, a fim de identificar como esta abordagem pode favorecer a compreensão dos modos de construção identitária de mulheres negras da amazônia paraense, descritos em forma de depoimentos publicados na página do coletivo das crespadas no facebook. Metodologicamente, este trabalho se caracteriza como qualitativo, descritivo e compreensivo, tendo sido construído segundo o método da pesquisa bibliográfica e a utilização de documento público. Os relatos foram transcritos na íntegra e, posteriormente, foi realizada a redução fenomenológica. Falar de mulheres negras da amazônia paraense é científica e socialmente relevante por tornar possível uma visibilidade positiva deste grupo populacional específico, em um lugar geográfico que tradicionalmente nega de forma contundente a presença e, em consequência, as contribuições destas mulheres para a construção da sociedade amazônica. Sendo o Brasil um país que se estrutura, desde o período colonial, a partir do racismo, trazer estas mulheres falando de si em suas experiências de reconhecimento identitário racial se torna mais uma forma de luta contra o racismo contemporâneo. A população negra nunca foi passiva diante da escravidão, e seus modos de luta e resistência vêm ganhando contornos específicos de acordo com as possibilidades identificadas em cada período histórico-social, inclusive neste utilizado pelas crespadas. Nos relatos são descritas experiências infantis como potencializadoras da construção de uma identidade racial estereotipada, segundo um padrão estético europeu. Isto lhes retirou a possibilidade de construção de uma autoimagem positiva, devido não receberem o heterossuporte necessário, naquele momento da vida, para se sentirem seguras, construírem vínculos saudáveis e estabelecerem contatos mais fluidos no seu campo vivencial, conforme iam crescendo. O sentimento de inadequação corporal as levou, por algum tempo, a adotar estratégias de branqueamento, como o alisamento dos cabelos crespos, para se sentirem incluídas. Desenvolveram uma relação mais positiva com seus cabelos, incentivadas por experiências compartilhadas nas redes sociais por outras mulheres, pela dedicação aos estudos teóricos com recortes de gênero, a participação em movimentos sociais, entre outras. A construção de uma identidade positiva passa pelo encontro intersubjetivo, que é sempre corporal, com outras pessoas, especialmente, mas não exclusivamente, mulheres negras. Estes encontros, quando confirmam a pessoa a partir dela própria, possibilitam o estabelecimento de contatos que levam ao crescimento inter-humano das pessoas que se encontram. Estas utilizam suas bagagens de vivências históricas pessoais – ou fundo de vividos – a fim de se autorregularem, no momento presente, em direção a um horizonte de futuro mais integrado. O desafio da clínica gestáltica é se responsabilizar pela acolhida e intervenção empáticas das mulheres negras que tem chegado aos diferentes settings psicoterapêuticos com esta demanda específica. Eis um desafio ético e político imposto pelas formas atuais de estabelecimento de contatos em um país estruturalmente racista e misógino.

Biografia do Autor

Lívia Cristinne Arrelias Costa, Psicóloga Autônoma

Psicóloga e Mestre em Teoria e Pesquisa do COmportamento (Psicologia do Desenvolvimento) - UFPA. Gestalt-terapeuta (CCGT/Belém). Psicóloga Clínica e pesqusiadora

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Publicado

2019-12-27

Como Citar

Arrelias Costa, L. C. (2019). Reflexões gestálticas sobre autorreconhecimento como mulher negra na Amazônia<br>Gestalt reflections on self-recognition as black women in the Amazon. IGT Na Rede ISSN 1807-2526, 16(31). Recuperado de http://igt.psc.br/ojs3/index.php/IGTnaRede/article/view/594