ARTIGO

O papel do psicólogo no tratamento de adolescente com Diabetes Mellitus Tipo 1: contribuições da Gestalt-terapia

The role of the psychologist in the treatment of adolescents with Diabetes Mellitus Type 1: Gestalt-therapy contributions

 

Guilherme de Freitas Silva*; Andrea dos Santos Nascimento**

Universidade Federal do Espírito Santo – ES.

Endereço para correspondência

 


RESUMO

O objetivo principal deste artigo é compreender o papel do psicólogo atuando em equipe multiprofissional no tratamento de adolescente com diabetes mellitus tipo 1 (DM1) a partir da Gestalt-terapia. O DM1 é uma doença crônica que afeta basicamente crianças e adolescentes, resultante da destruição parcial ou total das células beta pancreáticas com consequente deficiência de insulina, sendo necessária uma série de cuidados para um bom controle da doença. Para esta pesquisa, adotou-se como estratégia metodológica o estudo de caso único. Para coleta de dados foram utilizados dois instrumentos: Ficha de Avaliação Inicial Multiprofissional e Diário de campo do psicólogo. A partir da síntese do caso clínico e articulação teórica com a abordagem gestáltica, concluiu-se se que o principal papel do psicólogo é estar aberto ao diálogo a partir de uma atitude fenomenológica.

Palavras-chave: Gestalt-terapia; Adolescente; Diabetes Mellitus Tipo 1; Residência Multiprofissional em Saúde.


ABSTRACT

The main aim of this article is to understand the role of the psychologist acting in a multidisciplinary team in the treatment of adolescents with type 1 diabetes mellitus (DM1) from the Gestalt therapy. DM1 is a chronic disease that primarily affects children and adolescents, and it is the result of partial or total destruction of pancreatic beta cells with consequent insulin deficiency, requiring a lot of care for good control of the disease. For this research, the methodological strategy adopted was single case study. For data collection, two instruments were used: Multidisciplinary Initial Assessment Sheet and Psychologist's Field Diary. From the synthesis of the clinical case and theoretical articulation with the Gestalt approach, it was concluded that the main role of the psychologist is to be open to dialogue from a phenomenological attitude.

Keywords: Gestalt-therapy; Adolescent; Diabetes Mellitus Type 1; Multidisciplinary Residence in Healthcare.

 

 

INTRODUÇÃO

O diabetes mellitus (DM) se refere a um grupo de distúrbios metabólicos relacionados à secreção e/ou ação da insulina, tendo em comum a hiperglicemia – níveis elevados de glicose no sangue – e classificados em DM tipo 1 (DM1), DM tipo 2 (DM2), DM gestacional e outros tipos específicos de DM. (SBD, 2015).

O DM1 é uma doença crônica que afeta basicamente crianças e adolescentes, e é o resultado da destruição parcial ou total das células beta das ilhotas de Langerhans no pâncreas, com consequente deficiência de insulina, sendo necessária a reposição deste hormônio continuamente. As causas da destruição das células beta ainda não são esclarecidas, porém sabe-se que pode resultar da atuação de um fator ambiental desconhecido em um indivíduo geneticamente suscetível (PEREIRA; NEVES; MEDINA, 2006).

Os sintomas que levam ao diagnóstico de DM1 são: sede e fome excessivas, fadiga, cansaço, micção frequente e perda de peso (SANTOS; ENUMO, 2003). Para se alcançar o controle metabólico, definido pelo equilíbrio entre a demanda e o suprimento de insulina, além da insulinoterapia, o tratamento inclui adequação alimentar e prática de atividade física a fim de promover saúde e evitar complicações agudas e crônicas (MARQUES; FORNÉS, & STRINGHINI, 2011). O bom controle da doença previne complicações como retinopatia (problemas de visão), nefropatia (problemas nos rins) e neuropatia (problemas neurológicos) (MARCELINO; CARVALHO, 2005).

Nesse cenário, um desafio que se coloca para psicologia é de que modo é possível proporcionar a jovens adolescentes uma adesão ao tratamento de forma autossuficiente, sem que se configure em um quadro grande de perdas e de possibilidade de experimentações diversas, notadamente no campo alimentar?

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), disciplina o cuidado do paciente com diabetes no Sistema Único de Saúde (SUS):

"Art. 11. É assegurado acesso integral às linhas de cuidado voltadas à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, observado o princípio da equidade no acesso a ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde [...] § 2º Incumbe ao poder público fornecer gratuitamente, àqueles que necessitarem, medicamentos, órteses, próteses e outras tecnologias assistivas relativas ao tratamento, habilitação ou reabilitação para crianças e adolescentes, de acordo com as linhas de cuidado voltadas às suas necessidades específicas" (BRASIL, 1990).

O controle da DM1 exige autocuidado e adesão ao tratamento. Clement (apud GRECO-SOARES; DELL'AGLIO, 2017), diz que adesão adequada ao tratamento inclui dieta alimentar, aferição da glicemia continuamente, aplicação de insulina e uso de medicamentos. Quando se trata de adolescentes é necessária parceria entre equipe de saúde e familiares para capacita-los às práticas de autocuidado, considerando as particularidades desta fase do desenvolvimento na elaboração do plano de tratamento (GRECO-SOARES; DELL'AGLIO, 2017).

De acordo com Marcelino e Carvalho (2005), estudos apontam a relação entre o emocional e a etiologia, consequência e controle da diabetes.

"O controle é uma questão ainda mais complicada para crianças e adolescentes, pois é preciso racionalização da doença e consequentemente do que se pode ou não fazer. Todavia a criança e o adolescente são bastante impulsivos, isto faz parte da característica de personalidade do ser humano nestas fases do desenvolvimento [...] Assim torna-se extremamente difícil e estressante para as crianças e os adolescentes controlarem o diabetes, porque vivem de forma intensa uma ambivalência de sentimentos entre fazer aquilo que deseja e o que deve fazer" (p. 76).

Decerto, a adolescência é um período marcado por muitas mudanças corporais e psicológicas. O psiquiatra Maurício Knobel (1981) propõe a tese da Síndrome Normal da Adolescência, como forma de facilitar a compreensão das mudanças psicológicas que ocorrem nesta fase do desenvolvimento. Para o autor, as características psicológicas desta fase são: busca de identidade, tendência grupal, necessidade de intelectualizar e fantasiar, crises religiosas, deslocamento temporal, evolução sexual, atitude social reivindicatória, contradições de conduta, separação progressiva dos pais e flutuações de humor constantes.

Para o psicólogo alemão Kurt Lewin, embora a adolescência possa ser compreendida como um fenômeno sempre diferenciado em cada pessoa é possível perceber também algumas regularidades nas transformações que ocorrem no espaço de vida do jovem (BARONCELLI, 2012).

O significado de ser adolescente encontra definições e teorias diversas, e de acordo com Azevedo e Dutra (2012), "[...] tal multiplicidade de conceitos representa e reflete a maneira como lidamos com os jovens: ora tentamos entender cada processo do adolescer como algo único, ora tentamos estabelecer comparações e enquadrá-los em uma categoria geral" (p. 21). Estas autoras, todavia, reforçam a importância de compreendemos a adolescência como um fenômeno psicossocial, compreendido a partir da história individual e contexto sociocultural de cada sujeito.

Devido às particularidades deste fenômeno que é a adolescência, é desejável que o cuidado seja realizado por uma equipe multiprofissional (MINANNI, 2010; LIMA, 2015), principalmente no acompanhamento de adolescentes que têm dificuldades na adesão do tratamento de DM1. Para tanto, abordaremos de qual forma esse acompanhamento pode ser feito com uma equipe multiprofissional, no modelo de residência de um hospital universitário.

A residência multiprofissional foi instituída através da Lei 11.129, de 30 de junho de 2005 e consiste na modalidade de ensino de pós-graduação "lato sensu", destinado às profissões da saúde, exceto medicina, caracterizado pelo ensino em serviço (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2012) e possui a finalidade de "[...] articular o trabalho em equipe, ampliar o conjunto de ações e serviços da atenção em saúde, humanizar a assistência e promover a integralidade" (LUZ et al, 2015, p. 273).

O presente estudo foi feito a partir de atendimentos realizados em um ambulatório de pediatria que é um dos campos de prática de um programa de residência multiprofissional no estado do Espírito Santo. Além dos atendimentos realizados pela equipe de residência multiprofissional, neste ambulatório são realizados atendimentos médicos de diversas especialidades, atendimento de enfermagem, atendimento psicopedagógico e fonoaudiológico.

Os atendimentos realizados pela equipe de residência multiprofissional no ambulatório de pediatria, geralmente são com pacientes crônicos encaminhados por um profissional médico do ambulatório. A equipe de residência multiprofissional deste estudo era composta por profissionais formados em farmácia, nutrição, odontologia, psicologia, serviço social e terapia ocupacional, que atuaram durante um semestre neste campo de prática. Entre os recursos utilizados pela equipe, destacamos os atendimentos compartilhados (atendimentos realizados por dois ou mais profissionais de profissões diferentes), os grupos de educação em saúde, as discussões multiprofissionais de casos clínicos com os preceptores, os atendimentos específicos (atendimento realizado por apenas um profissional) e a reunião de preceptoria específica.

Primeiramente, quando um paciente chega à equipe é feito o acolhimento e o preenchimento da Ficha de Avaliação Inicial Multiprofissional. A partir de então a equipe decide quais profissionais conduzirão o caso. Grande parte dos atendimentos são compartilhados, pois esta modalidade de atendimento objetiva a troca de saberes específicos com vistas à abordagem integral do caso. Porém, em alguns casos se opta por fazer atendimentos específicos, principalmente da psicologia.

Por se considerar que "o diabetes pode provocar sentimentos de menos-valia, inferioridade, baixa autoestima, medo, revolta, raiva, ansiedade, regressão, negação da doença, desesperança, incapacidade de amar e se relacionar bem com as pessoas, ideias de suicídio e depressão" (MARCELINO; CARVALHO, 2005, p. 76), e que por trás da não adesão ao tratamento de DM1 por parte do adolescente estão questões relacionadas à sua subjetividade, quando as orientações da equipe não estão alcançando a adesão esperada, o psicólogo é convocado a realizar atendimentos específicos com o paciente, em uma espécie de "ultima cartada" da equipe para a adesão do paciente ao tratamento. Esta situação fez-me deparar com a seguinte questão: qual o papel do psicólogo atuando em equipe multiprofissional no tratamento de adolescente com DM1?

Esta investigação é importante, pois para a equipe de saúde a atuação do psicólogo é envolta de muito mistério, existindo ainda a ideia de que esse profissional pode convencer o paciente a aceitar o bem-estar que a equipe de saúde pode oferecer, caso ocorra a adesão. Nesse caso específico, o atendimento psicológico foi orientado pela abordagem gestáltica, e não encontramos trabalhos sobre o atendimento com adolescentes com DM1 a partir desta abordagem psicológica.

Faz-se necessário então pesquisar o papel do psicólogo, com o objetivo de apontar suas possibilidades de contribuição no tratamento e também os limites que tangem esta profissão.

 

COMPREENDENDO A ABORDAGEM GESTÁLTICA

Neste estudo, a atuação do psicólogo será feita à luz da Gestalt-terapia, que é uma terapia existencial-fenomenológica fundada por Frederick e Laura Perls, Paul Goodman e outros teóricos que compunham o chamado grupo dos sete. A Gestalt-terapia surge após a Segunda Guerra Mundial e participa da corrente precursora do movimento que viria a ser conhecido como psicologia humanista. Este movimento, também chamado de terceira força em psicologia foi uma reação ao cientificismo behaviorista e ao determinismo psicanalítico, e teve como objetivo conferir ao homem o "[...] estatuto de ‘sujeito', responsável por suas escolhas e crenças" (GINGER; GINGER, 1995, p. 93). Esse movimento sofreu grande influência da "[...] corrente existencialista europeia – sobretudo alemã e francesa (Heidegger, Buber, Binswanger, Sartre, Merleau-Ponty, Gabriel Marcel etc.)" (GINGER; GINGER, 1995, p. 93).

Podemos dizer que os pontos de encontro entre as diversas perspectivas existencialistas estão na compreensão do homem como ser concreto, em intrínseca relação com o mundo, na existência como sendo individual e particular e na possibilidade humana de liberdade e responsabilidade, sintetizada por Sartre na famosa frase "a existência precede a essência". Ou seja, a existência não tem um valor ou sentido predefinido, sendo o homem responsável por construí-la. (CARDOSO, 2012; FONSECA, 2007).

Frederick Perls (1977), principal fundador da Gestalt-terapia colocou a abordagem no bojo das psicoterapias existenciais, juntamente com a Logoterapia de Victor Frankl e a Daseinanálise de Ludwig Binswanger. A psicoterapia existencial leva a pessoa a tomar conhecimento do seu projeto existencial e assumir a responsabilidade pelo sentido da sua existência. Parte da concepção de que a pessoa é um ser em relação, compreendendo-a com base em seu modo de existir no aqui e agora, tendo a filosofia existencial de Martin Buber e sua ênfase na importância do encontro, do diálogo e da relação na constituição do ser humano, exercido grande influência no pensamento gestalt-terapêutico. (CARDOSO, 2012).

Quando afirmamos que a Gestalt-terapia é também uma abordagem fenomenológica, significa que ela não busca o entendimento através da interpretação do observador, mas sim naquilo que é obvio e revelado pela situação: aquilo que é dado (YONTEF, 1998). A redução fenomenológica pode ser considerada o contrário da atitude natural, sendo esta a atitude que ignora a existência da consciência como doadora de sentido e acredita que o mundo existe por si mesmo. Na redução fenomenológica precisamos colocar em suspensão nossos preconceitos, teorias das ciências do homem, da natureza e discursos preestabelecidos, para irmos ao encontro do fenômeno (FORGHIERI, 2002). De acordo com Yontef (1998), "uma observação fenomenológica integra tanto o comportamento observado quanto relatos pessoais, experienciais. A exploração fenomenológica objetiva uma descrição cada vez mais clara e detalhada do que É; e desenfatizar o que seria, poderia ser, pode ser e foi" (p. 218).

Outro conceito da fenomenologia importante para a Gestalt-terapia é a intencionalidade, que compreende a consciência como sendo consciência de alguma coisa, e isto nos permite perceber como uma pessoa produz sentido a uma determinada situação (PINTO, 2016). A relação terapêutica possibilita que o sujeito se coloque como um fenômeno a ser observado e também se observar.

Em seguida, abordaremos alguns conceitos e fundamentos da Gestalt-terapia, para posteriormente fazermos a articulação teórica com o caso clínico.

 

Figura e Fundo

Gestalt é uma palavra alemã de difícil tradução. De acordo com Perls (1988, p. 19), "uma Gestalt é uma forma, uma configuração, o modo particular de organização das partes individuais que entram em uma composição". A psicologia da Gestalt surgiu no começo do século XX e dizia que a configuração total é diferente da mera soma das partes que a compõem. Seus teóricos estudavam a percepção, a aprendizagem e a solução de problemas. Um dos conceitos importantes para a Gestalt-terapia e herdado da psicologia da Gestalt é o conceito de figura/fundo: "[...] percebemos totalidades e, dependendo das circunstâncias, algo se destaca, torna-se mais proeminente, fica em primeiro plano – a figura, enquanto o restante permanece em segundo plano – o fundo" (FRAZÃO, 2013, p.101).

Um exemplo clássico da dinâmica figura/fundo é o Vaso de Rubim (figura 1). A figura e o fundo são reversíveis, se pode ver uma taça ou dois rostos, dependendo da organização perceptual do observador.

 

Figura 1 – Vaso de Rubin
Fonte: Ginger e Ginger (1995).

De acordo com Araújo (2012),

"Na relação figura/fundo, a figura tem pregnância, brilho, clareza, vivacidade, e se destaca de um fundo difuso e amorfo. O fundo diz respeito ao campo perceptual, isto é, a tudo que é relativo ao organismo e ao meio ambiente. O significado da figura é sempre dado pela relação contextual com o fundo". (p. 113)

Os princípios da Psicologia da Gestalt se referiam inicialmente apenas à percepção visual. A Gestalt-terapia ao herdar seus conceitos, amplia-os para termos comportamentais e existenciais. O que move a dinâmica figura e fundo é o senso de necessidades: a necessidade mais importante do organismo se torna figura e quando satisfeita recua para o fundo possibilitando o surgimento de outra figura e assim sucessivamente.

 

A relação terapêutica

A Gestalt-terapia é uma terapia relacional e dialógica, ou seja, se fundamenta na possibilidade de encontro entre terapeuta e paciente. Por ser alicerçada na psicologia humanista e existencial, compreende a existência como espaço em que as pessoas se relacionam, e a partir dessa relação confirmam e desenvolvem suas características humanas (PINTO, 2016; MENDONÇA; COSTA, 2012). Este pensamento, chamado dialógico, foi desenvolvido pelo filósofo Martin Buber e teve grande influência no desenvolvimento da abordagem gestáltica, principalmente através de Laura Perls que estudou com Buber (JULIANO, 2004).

De acordo com Yontef (1998), o relacionamento surge do contato, e por meio deste que se dá o crescimento e a formação de identidades. O contato por sua vez é a experiência que acontece na fronteira entre o "eu" e o "não-eu". Este conceito de fronteira encontra sustentação na teoria buberiana, quando esta enfatiza que "a realidade da relação não ocorre no homem, mas entre este e o que lhe está defronte. [...] o significado do inter-humano não é, pois, encontrado em um dos parceiros nem nos dois juntos, mas no diálogo que entre eles é estabelecido, no entre vivenciado por ambos" (MENDONÇA; COSTA, 2012, p. 90).

Para Buber (1923/2001), o diálogo só pode acontecer entre as duas polaridades possíveis, também chamadas palavras-princípio "Eu-Tu" e "Eu-Isso". A relação Eu-Tu, é caracterizada por um interesse autêntico na pessoa com quem nos relacionamos. Neste tipo de relação eu me coloco verdadeiramente enquanto pessoa e a pessoa é um fim em si mesma e não um meio para atingir um fim – relação Eu-Isso. Para que essa relação seja possível, precisamos reconhecer a alteridade do outro.

 

Autossuporte e heterossuporte

Para a abordagem gestáltica (PERLS, 1977), o amadurecimento está profundamente relacionado à passagem do apoio ambiental (autossuporte) para o autoapoio (heterossuporte). Andrade (2014, p. 147) nos fala que "suporte refere-se ao conjunto de recursos desenvolvidos pela pessoa ao longo de sua existência que estão disponíveis a serviço de si mesmo e do outro". Ambos os tipos de suporte (autossuporte e heterossuporte) se intercomunicam durante toda a vida, todavia espera-se que à medida que amadurecemos utilizemos menos o heterossuporte. Perls, citado por Andrade (2014), equipara o funcionamento não saudável à falta de autossuporte.

Quando o indivíduo não dispõe deste fundo de habilidades que em Gestalt-terapia chamamos autossuporte, ele fica a mercê das opiniões externas e dos padrões socioculturais, evitando se responsabilizar e tornar-se o protagonista da sua existência.

Para a Gestalt-terapia, o desenvolvimento de autossuporte constitui um importante fator de cura, pois possibilita a mobilização dos recursos necessários para o contato ou afastamento das diversas situações, conforme as necessidades atuais. Dada a apresentação dos principais conceitos da abordagem gestáltica para esse estudo, faz-se mister a articulação desta com o caso clínico atendido.

 

ASPECTOS METODOLÓGICOS

Adotou-se como estratégia metodológica o estudo de caso único (YIN, 2005), por este possibilitar uma análise aprofundada do objeto e por ser um recurso importante na pesquisa qualitativa em psicologia (PERES; SANTOS, 2005). De acordo com Holanda (2006), o estudo de caso "refere-se à exploração de um sistema delimitado, partindo de uma coleta de dados detalhada, em profundidade, envolvendo fontes múltiplas de informação" (p. 367). O presente estudo é de natureza qualitativa, pois esta abordagem em pesquisa é permeável ao mundo dos significados das ações e das relações humanas (MINAYO, 2009).

Quanto à finalidade, se trata de um estudo exploratório, pois pretende "[...] proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a constituir hipóteses. Pode-se dizer que estas pesquisas têm como objetivo principal o aprimoramento de ideias ou a descoberta de intuições" (GIL, 2002, p. 41).

Para coleta de dados foram utilizados dois instrumentos: 1) Ficha de Avaliação Inicial Multiprofissional que possui os dados da paciente e histórico da doença, e 2) Diário de campo do profissional de psicologia que possui anotações dos atendimentos psicológicos realizados com a adolescente e anotações das discussões multiprofissionais de casos clínicos com os preceptores.

A análise do diário de campo foi baseada na fenomenologia enquanto método para pesquisas em saúde. A fenomenologia foi um dos movimentos filosóficos mais importantes do século XX, que desde seu início teve ligações com a psicologia, portanto cabe diferenciar o método fenomenológico do movimento da fenomenologia relacionada à Filosofia. No nosso caso, a fenomenologia vai servir para captar a essência do fenômeno, dando destaque para a experiência de vida das pessoas, tal como elas percebem e vivenciam (FORGHIERI, 2002).

Em relação aos procedimentos éticos foram utilizadas estratégias de preservação da identidade dos envolvidos, como a utilização de nomes fictícios para equipe e participante, omissão do nome do hospital e do período que foram realizados os atendimentos.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Sthefane é uma adolescente de 14 anos de idade, estudante do ensino fundamental. Reside no estado do Espírito Santo, em casa própria com a mãe e relatou ter muito contato com a avó que mora no mesmo prédio. Foi diagnosticada com DM1 aos 07 anos de idade após episódio de cetoacidose diabética. Paciente disse que não aceitava a doença e orava todos os dias pedindo que Deus a curasse. É acompanhada no ambulatório de pediatra pela endocrinologia, nefrologia e equipe de residência multiprofissional.

Este caso chegou à equipe atual de residentes multiprofissionais por meio de encaminhamento da equipe anterior de residentes que atuavam no ambulatório de pediatria do hospital, devido à dificuldade da paciente na adesão ao tratamento. Foi marcado um primeiro atendimento multiprofissional com Sthefane para que a equipe nova pudesse conhecê-la. Participaram do primeiro atendimento, farmacêutica, nutricionista e psicólogo. Paciente relatou estar sempre com os níveis de glicemia elevados, ter dificuldade em seguir dieta e sentir uma "dor de fome" que demorava a passar. No atendimento ela recebeu orientações sobre a relação existente entre os níveis elevados de glicemia e a fome, e a importância de fazer aplicação de insulina em diferentes pontos.

Após o primeiro atendimento, a equipe entendeu que Sthefane estava bem orientada em relação à doença e aos cuidados – apesar de continuar sem aderir o tratamento – e optou por manter a paciente apenas no atendimento específico da psicologia e no grupo de crianças e adolescentes com DM1.

No semestre em que a equipe de residência multiprofissional atuou no ambulatório de pediatria do hospital foram realizados nove atendimentos psicológicos individuais com Sthefane. Nos encontros com Sthefane, após leitura sistemática do diário de campo e categorização do conteúdo discursivo das sessões, foi possível levantar, a partir da análise fenomenológica, cinco grandes categorias, que para fins didáticos estão separadas, mas que se entrelaçam e interferem mutuamente no tratamento de Sthefane, tal como relataremos a seguir: 1) timidez e habilidade social; 2) vivência religiosa e relação com a doença; 3) relação com a mãe e alimentação; 4) corporeidade e sexualidade; 5) escola.

 

Timidez e habilidade social

Logo nos primeiros atendimentos psicológicos, Sthefane queixou ser tímida, ter poucos amigos e não ter com quem falar sobre as coisas que gostava. Relatou gostar de "fanfics"1 e "k-pop"2, mas não conhecer ninguém que compartilhe desses gostos. Em outro momento disse nunca saber qual assunto puxar com as pessoas que ela sente atração e ficar triste por não ter um relacionamento.

A intervenção do psicólogo foi conscientizar a paciente que ela propôs e deu continuidade ao assunto discutido na sessão, e questioná-la sobre a diferença entre agir desse modo com o psicólogo e com as outras pessoas.

Este tema da habilidade social compareceu durante várias sessões, com a paciente dizendo ter poucas amigas sendo a maioria virtual:

"Tenho uma amiga do Rio de Janeiro, uma do Paraná, uma do Rio Grande do Sul e duas na escola. Uma vai reprovar e parou de ir à escola e a outra eu não confio muito [...]. Com as amigas da internet, eu que sempre puxo assunto e às vezes elas custam a responder. Fico frustrada por não ter com quem conversar e minha mãe não me deixa sair" (Sessão 05).

 

Vivência religiosa e relação com a doença

Sthefane foi criada na religião evangélica pentecostal, mas disse não acreditar mais no Deus cristão, pois desde que descobriu ter DM1 orava todos os dias pedindo que Deus a curasse, mas ele não a curou. Disse que atualmente "é da religião da Grécia" e acredita nos deuses do Olimpo, pois eles são mais humanos: "O Deus cristão é um juiz que verifica se a pessoa merece o céu ou o inferno [...] não faz sentido existir um céu, o mundo já é muito bom e tem muitas coisas boas" (Sessão 03).

De acordo com a paciente, a sua posição frente à religião fez surgir muitos atritos entre ela, sua mãe e sua avó, pois a mãe e a avó não aceitavam que ela não acreditava em Deus e não cediam aos seus argumentos sobre a não existência de Deus e os erros da Bíblia.

O psicólogo confirmou a legitimidade de Sthefane escolher sua religião e questionar as crenças que foram introjetadas, mas fez uma reflexão sobre a necessidade de tentar convencê-las que a religião delas era ruim, uma vez que essa vivência religiosa embora não fizesse mais sentido pra ela, fazia para a mãe e para avó.

Desde que foi diagnosticada com DM1, Sthefane disse que sempre foi rotulada como diabética pela mãe, que quando a apresentava em algum lugar dizia que ela era diabética. Relata um episódio marcante da sua infância: "Assim que eu descobri a doença, minha mãe foi na minha escola avisou todo mundo que eu era diabética e iria levar minha comida e que não era pra ninguém me oferecer nada [...] Descobri que não podia ter uma vida normal e até hoje é assim" (Sessão 06).

A adolescente demonstrava bom entendimento acerca da doença e suas possíveis consequências, mas afirmava que não aceitava morrer de diabetes, cogitando a ideia de por fim a própria vida caso ela ficasse cega, ou perdesse o funcionamento dos rins. Por outro lado, relatava sentir muita fome e não conseguir seguir uma dieta, disse também ser "torturada" pela mãe que comia doces, biscoitos, refrigerante e "milk-shake" perto dela.

 

Relação com a mãe e alimentação

O auxilio da mãe na adesão ao tratamento de Sthefane se mostrava ambíguo, pois ao mesmo tempo em que ela boicotava a dieta da filha, ela a levava semanalmente aos atendimentos. Até a paciente iniciar acompanhamento com a equipe anterior de residentes no ambulatório, a mãe era quem fazia aplicação de insulina na adolescente, o que passou a ser feito pela própria adolescente após intervenção da equipe anterior.

Passados os primeiros atendimentos, o psicólogo convidou a terapeuta ocupacional para um atendimento compartilhado com a mãe da adolescente, com intuito de compreender a dinâmica familiar e a rotina da paciente, incluindo seus hábitos alimentares. A mãe da paciente é uma senhora que aparenta ter cinquenta anos, é obesa e se locomove com dificuldade, com auxílio de uma bengala. Ela foi receptiva durante o atendimento e relatou que a filha comia em grandes quantidades nas refeições principais e reclamava sentir muita fome. Como estratégia, a mãe servia o prato da filha nas refeições visando controlar a quantidade de alimento ingerido por ela, mas sem sucesso, pois a filha repetia. Disse também esconder os alimentos que Sthefane não pode comer e afirmou não conseguir vislumbrar outras formas de intervir a fim de ajudar no tratamento da filha. Queixou que a filha demanda muita atenção, gosta de abraçar e beijar em excesso, o que a incomoda.

Sthefane faltou o atendimento seguinte, pois estava no pronto-atendimento devido diabetes descompensada. Este episódio sugeriu à equipe de residentes que o projeto terapêutico da paciente deveria ser revisto, com necessidade de atendimento específico da nutrição.

Na discussão de casos com os preceptores, a equipe de residentes decidiu discutir o caso da Sthefane. As nutricionistas, residente e preceptora (p1), relataram com muita preocupação o atendimento com a paciente, pois ela relatou compulsão alimentar, ansiedade e sintomas como vontade de vomitar após ingestão de alimentos. Informaram que perguntaram a paciente se ela falava sobre estas questões no atendimento com o psicólogo e ela disse que não, pois falava de outras questões, e cogitaram com a paciente que outra psicóloga participasse dos atendimentos com elas. Uma preceptora (p2) interviu dizendo que a paciente já havia criado vinculo com o psicólogo, não sendo necessário iniciar outro vínculo, mas reforçar nos atendimentos da nutrição a importância da paciente relatar os sentimentos de angústia, tristeza e ansiedade nos atendimentos específicos da psicologia. Outro preceptor (p3) disse que o problema da paciente era médico e que ela precisava de atendimento médico. O psicólogo interviu dizendo da complexidade do caso: profundamente relacionado à dinâmica familiar da paciente e às diversas questões da adolescência, necessitando o prosseguimento dos atendimentos psicológicos.

Ao final desta discussão de caso ficou decidido que a paciente continuaria sendo atendida pelo psicólogo e pela nutricionista; a equipe ofereceria um espaço de escuta para a mãe da paciente e iria articular com a endocrinologista que acompanha o caso a necessidade de introdução de medicação antidepressiva.

 

Corporeidade e sexualidade

Outras questões que também perpassaram os atendimentos de Sthefane foram a não aceitação do seu corpo e dúvidas acerca da sua orientação sexual e identidade de gênero:

"Eu gosto de meninos, mas eu não gosto do meu corpo. Acho corpo de homem mais bonito e gostaria que meu corpo fosse de homem. Se eu tivesse um namorado gostaria que ele me tratasse como se eu fosse homem, mas acho que ele não iria aceitar" (Sessão 01).

Em outros momentos a adolescente dizia também gostar de meninas e chegou a se definir como bissexual. A não aceitação do corpo se evidenciou em uma sessão que a adolescente relatou ter ido a uma loja de fotos no "shopping" e uma moça perguntou se ela gostaria de ser modelo com intenção de vender um ensaio fotográfico e um curso de modelo para ela. Sua mãe topou pagar e ela fez as fotos. Sthefane disse não conseguir olhar para as fotos, pois se sentia muito gorda e muito feia.

 

Escola

Nos atendimentos psicológicos que seguiram, a paciente falou sobre seu desempenho escolar e que faria prova final em pelo menos quatro disciplinas. Relatou desejo de reprovar na escola para estudar com mais empenho no ano seguinte, mas não ter coragem de falar com a mãe sobre essas questões. Queixou-se do fato da sua mãe não ser disponível para as suas questões: "Tudo que eu queria é que ela [a mãe] entendesse que este ano eu não estive bem emocionalmente, não tive forças pra estudar e focar nos estudos, mas ano que vem vai ser diferente, eu vou me dedicar" (Sessão 08).

Sthefane disse que era inviável ser aprovada, pois nem anotações das aulas ela tinha para estudar para a prova final. Relatou que durante o ano letivo não mostrou as notas para sua mãe e tinha muito medo da reação dela quando soubesse: "Minha vida vai ficar um inferno se ela [a mãe] souber [da reprovação]. Ela já disse que se eu reprovar não vai me levar pra viagem de ‘reveillon' e vai tomar meu celular [...].  Estou pensando em falar com ela só depois da viagem" (Sessão 08).

Em um dos atendimentos psicológicos a paciente relacionou sua vida a um fone de ouvidos embolado que não dava para desembolar. O psicólogo pediu a paciente que listasse as coisas que ela desejava desembolar e ela listou na seguinte ordem: "escola, relação com a mãe, amizades, namoro e alimentação" (Sessão 05). No último atendimento (Sessão 09) Sthefane convidou a mãe para participar do atendimento, pois havia contado a ela sobre sua reprovação no colégio.

 

A abordagem gestáltica no caso Sthefane

No caso da Sthefane, observa-se que a figura é diferente para a equipe e para a paciente. Para a equipe, a Diabetes e a não adesão da paciente ao tratamento é o que se destaca, tem brilho, clareza e vivacidade. Para a adolescente, no entanto, a pregnância estava em outras questões, como a relação com sua mãe e sua dificuldade na escola.

Isto se evidencia no atendimento em que a paciente relaciona sua vida a um fone de ouvidos embolado que não dava para desembolar e listou as coisas que desejava desembolar na seguinte ordem: escola, relação com a mãe, amizades, namoro e alimentação. A paciente embora entenda que a diabetes e a sua alimentação são questões que atravessam sua vida, aponta outras questões que pra ela são prioritárias. Para a Gestalt-terapia, o que importa é o que emerge do cliente, a figura que ele coloca em terapia. Esta particularidade ética do trabalho psicológico aponta para a importância do trabalho multiprofissional, pois o psicólogo tem a tranquilidade de trabalhar com a paciente as questões que ela traz, sabendo que as questões diretamente relacionadas à diabetes – que também são importantes e aparecem como figura para a equipe – estão sendo trabalhadas pelos os outros profissionais.

Cabe ao psicólogo sustentar o seu trabalho frente à equipe, e sem desmerecer a figura que emerge para a equipe – a diabetes e a não adesão ao tratamento –, relacioná-la ao fundo. Para uma melhor compreensão da relação figura/fundo, Araújo (2012) propõe a metáfora da onda/mar, em que a figura (onda) está imersa num fundo (mar), que é um enorme caldo cultural, formado de crenças, histórias individuais, valores, etc. O psicólogo, então, tem o desafio de apontar para o fundo, neste caso, as vivências da adolescência, a história de vida da paciente e suas relações interpessoais, deixando claro para a equipe que a figura só emerge de um fundo e que trabalhar as questões de fundo da diabetes, provavelmente causará um rearranjo no campo vivencial da paciente, mesmo que os resultados não sejam imediatamente verificáveis.

A adolescência é uma fase da vida em que se torna evidente a intercomunicação entre autossuporte e heterossuporte. O indivíduo começa a buscar sua individualidade, desenvolve novos gostos e hábitos, mas ainda não se separou completamente dos pares parentais, necessitando em muitos momentos do heterossuporte destes.

Quando o adolescente convive com DM1, esta dinâmica pode se tornar ainda mais intensa, pois a ambivalência entre fazer o que deseja ou seguir corretamente o tratamento fará com que ele, ora tenha autossuporte, quando aplica a insulina e manifesta hábitos saudáveis, ora necessite de heterossuporte, geralmente da família e da equipe de saúde, quando, por exemplo, o controle da dieta precisa ser mais rigoroso e o adolescente não consegue por si.

A não adesão ao tratamento por Sthefane, aponta para falhas em ambos os tipos de suporte. As vivências traumáticas relacionadas a diabetes desde à infância, a não aceitação da doença por parte da adolescente e grande dependência emocional dela com a mãe dificultaram o desenvolvimento do autossuporte e o consequente protagonismo no cuidado de si. A mãe da paciente, embora seja frequente aos atendimentos e tenha algumas estratégias de controle da alimentação da filha, como servir o prato da filha nas refeições, também não provia o heterossuporte necessário para o tratamento da filha, tendo práticas ambíguas que sabotavam uma dieta equilibrada.
A equipe de residência multiprofissional adotou estratégias para promover autossuporte e heterossuporte, como inclusão da paciente em um grupo de iguais, pois de acordo com Marcelino e Carvalho (2005, p. 76) "[...] falar sobre a doença possibilita trabalhar as fantasias dela, trocar entre iguais, compartilhar sentimentos, dúvidas e assim aprender a conviver melhor com ela"; o oferecimento de espaço de escuta à mãe da paciente como forma de integrá-la e corresponsabilizá-la no tratamento da filha; atendimento nutricional e psicológico à paciente.

O atendimento psicológico funciona como um heterossuporte, pois,

"Cabe ao terapeuta ajudar o cliente a descobrir quem ele é, o que deseja e como quer buscar tal objetivo; enfim, precisa ajudá-lo a integrar suas várias dimensões. No entanto, é importante que, ao auxiliá-lo em sua caminhada, o terapeuta não seja mais uma pessoa que exige, impõe, não o leva em direção ao que ele deseja. O terapeuta deve dispor, como heterossuporte, do tempo necessário e cautelosamente, ter a sabedoria de auxiliar o cliente a encontrar seu autossuporte, sua autorrealização, seu amadurecimento e sua integração" (ANDRADE, 2014, p. 160).

Yontef (1998, p. 18) diz que "o Gestalt-terapeuta trabalha engajando-se num diálogo, em vez de manipular o paciente em direção a um objetivo terapêutico". O psicólogo ao estabelecer uma relação terapêutica com a paciente visa um diálogo autêntico que reconhece o outro como ser singular, capaz de se autorregular e fazer suas escolhas. No caso da Sthefane, o psicólogo esteve aberto ao diálogo em uma atitude fenomenológica, sem "a priori", ou seja, sem o objetivo de conformar a paciente a um modo de vida considerado saudável, mas a partir de abertura, presença e confirmação, visando o aumento de "awareness"3. Ampliar "awareness", em Gestalt-terapia, significa desenvolver uma consciência de si mesmo e do ambiente, percebendo quais são as reais necessidades e como supri-las através do meio (interno ou externo), mobilizando energia para tal.

De todo modo, é na relação dialógica entre paciente-terapeuta que as possibilidades de intervenção criativa e inventiva comparecem, de modo a modificar ou transformar a compreensão da doença e de mundo do paciente.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo do papel do psicólogo, atuando em equipe multiprofissional, no tratamento de adolescente com DM1 a partir da ótica da Gestalt-terapia, propôs a reflexão acerca da contribuição do psicólogo na equipe e demarcou alguns limites para o profissional e equipe.

A definição do conceito de figura e fundo foi fundamental em nosso estudo, pois possibilitou a compreensão da complexidade do caso clínico. A diferença entre a figura que emerge para a equipe e a figura que emerge para a paciente, aponta para o desafio de trabalhar com adolescentes que apresentam dificuldades em aderir ao tratamento e confirma a importância do cuidado multiprofissional. Um importante papel do psicólogo, evidenciado nesta pesquisa é sustentar o seu trabalho frente à equipe, relacionando a figura que emerge para a equipe – a diabetes e a não adesão ao tratamento – ao fundo – escola, relações familiares, autoestima, etc.

Um dos objetivos da Residência multiprofissional é extrapolar o trabalho multiprofissional, para uma perspectiva interprofissional com incorporação de diversas experiências de profissionais com saberes distintos, visando à integralidade do cuidado através da comunicação e tomada de decisão conjunta (ARAÚJO et al, 2017). Todavia, a partir do caso clínico observamos que não houve diálogo entre as profissões para a tomada de decisões quando se cogitou com a paciente a entrada de outra psicóloga no atendimento, interferindo no trabalho específico do psicólogo, que é pautado pela ética da relação dialógica não manipulativa. Este é um importante limite a ser observado no trabalho em equipe.

A relação dialógica por si só possibilita o crescimento e o desenvolvimento de autossuporte, importante fator de cura para a Gestalt-terapia. O papel do psicólogo é estar aberto ao diálogo em uma atitude fenomenológica, sem "a priori", atuando a partir de uma postura de abertura ao outro, estando presente e confirmando sua alteridade, visando o aumento de "awareness".

Por fim, esta pesquisa por ser inédita na abordagem gestáltica não pretendeu esgotar o assunto, mas iniciar a discussão sobre o papel do psicólogo no tratamento de adolescente com DM1 à luz de alguns conceitos da Gestalt-terapia.

 

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NOTAS

*Guilherme de Freitas Silva: Psicólogo formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Residente do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo entre 2017-2019.
**Andrea dos Santos Nascimento: Psicóloga, Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo, Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo.
1 Narrativa ficcional que utiliza enredos e personagens de filmes, séries, quadrinhos, etc., escrita e divulgada por fãs em blogs, sites e outras plataformas digitais.
2 Abreviação de "korean pop", se refere a gênero musical da Coréia do Sul.
3 "Awareness" é um conceito em Gestalt-terapia que não foi traduzido por não ter correspondência exata em português.

 

Endereço para correspondência
Guilherme de Freitas Silva
Endereço eletrônico:guilhermefsilva@live.com
Andrea dos Santos Nascimento
Endereço eletrônico:andreanas@gmail.com

 

Recebido em: 19/08/2019
Aprovado em: 02/10/2019