ARTIGO

Psicoterapia infantil: perdas, luto e ajustamentos criativos elaborados no brincar

Child psychotherapy: losses, mourning and creative adjustments elaborated in the play

 

Renata da Silveira Borstmann*; Yohanna Breunig**; Maria Luisa Wunderlich dos Santos de Macedo***

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - RS; Universidade de Santa Cruz do Sul - RS.

Endereço para correspondência

 


RESUMO

Este artigo se propõe a discutir a psicoterapia infantil na perspectiva da Gestalt-terapia, trazendo como elementos questões referentes às perdas, ao luto e aos ajustamentos criativos elaborados no brincar. Para tanto, utilizamos como metodologia a pesquisa bibliográfica, bem como trouxemos ilustrações de nossa prática clínica para corroborar com o que foi explicitado na teoria. Os principais autores utilizados foram Perls (1977), Oaklander (1980), Aguiar (2005), Fukumitsu (2012) e Martins e Lima (2014). Percebemos que as perdas não dizem respeito apenas à morte física, mas também à morte simbólica, a qual pode ser vivenciada de diferentes formas. Por meio dos casos exemplificados, evidenciamos que através do brincar os pacientes conseguiram elaborar ajustamentos criativos, sejam eles funcionais ou disfuncionais, como modo de lidar com a situação vivenciada.

Palavras-chave: Gestalt-terapia; Psicoterapia infantil; Perdas; Luto; Ajustamentos criativos.


ABSTRACT

This article proposes to discuss the child psychotherapy from the perspective of Gestalt therapy, bringing as elements issues related to losses, mourning and the creative adjustments elaborated in the play. Therefore, as methodology we used the bibliographic research, as well as illustrations of our clinical practice to corroborate with what was explained in theory. We realize that the losses are not only about physical death, but also about symbolic death, which can be experienced in different ways. Through the exemplified cases, we have shown that the patients have been able to elaborate creative adjustments, be they functional or dysfunctional, through play, as a way of dealing with the situation experienced.

Keywords: Gestalt therapy; Child psychotherapy; Losses; Mourning; Creative adjustments.

 

Introdução

As fases da vida do ser humano são marcadas por constantes mudanças, perdas e separações. Os sentimentos ocasionados a partir das perdas podem variar em grau e intensidade. Neste estudo não iremos nos deter apenas às perdas especificamente sofridas pela morte de um ente querido, mas também às perdas simbólicas, a exemplo do abandono. Deste modo, discutiremos o quão importante é permitir-se vivenciar o luto em todas as suas fases. Por mais difícil que seja esse período, quando experienciado de forma plena há uma possibilidade de crescimento e aprendizado através dessa adversidade (MARTINS; LIMA, 2005).

As crianças nem sempre vivem as diferentes fases do luto de maneira satisfatória. Entretanto, a capacidade que a criança tem de descobrir formas criativas de enfrentamento de situações ou ambientes desfavoráveis é muito potente, pois a dimensão sensorial/intuitiva predomina em sua existência. Os ajustamentos criativos representam este importante processo ativo e dinâmico que o indivíduo estabelece com o mundo para solucionar situações e propiciar sua autorregulação (ANTONY, 2009). Nesse sentido, a psicoterapia infantil aparece como um modo de auxiliar a pessoa a passar por esse momento delicado, devolvendo-lhe a possibilidade de autonomia e a capacidade de enfrentamento às situações adversas.

Vale lembrar que o trabalho realizado em terapia com crianças não ocorre da mesma maneira que a psicoterapia com adultos, não sendo possível apenas adaptar uma à outra. A principal diferença que iremos encontrar é o fato de que nossos maiores aliados nos atendimentos infantis serão os brinquedos, os jogos e demais atividades que as crianças se proponham a realizar. Isso significa que trabalharemos essencialmente com o material lúdico, de modo que, muitas vezes, a criança irá falar de si por meio de uma brincadeira e, assim, iremos nos comunicando (OAKLANDER, 1980).

Diante destas considerações, o presente artigo se propõe a discutir a psicoterapia infantil na perspectiva da Gestalt-terapia, trazendo como elementos questões referentes às perdas, ao luto e aos ajustamentos criativos elaborados no brincar. Para tanto, descreveremos a metodologia utilizada, seguida dos tópicos teóricos e de discussão concomitantemente. Estes foram divididos em quatro eixos, sendo eles: introdução à Gestalt-terapia com crianças; perdas: a vivência do luto; o brincar como modo de ressignificar situações e desenvolver ajustamentos criativos; e vivências de perdas e ajustamentos criativos na prática clínica (a partir da ilustração de dois casos).

 

Metodologia

Tendo em vista a escassez de estudos referentes às temáticas de perdas e luto na psicoterapia infantil dentro da abordagem da Gestalt-terapia e a partir da necessidade que percebemos em aprofundar estes conteúdos, de modo a colaborar com a nossa prática clínica, realizamos uma revisão narrativa de literatura. Esta ocorreu a partir de obras clássicas da Gestalt-terapia, bem como por meio de obras atuais, publicadas a respeito das temáticas acima abordadas. Os principais autores utilizados foram Perls (1977), que contribui para a compreensão da Gestalt-terapia, Oaklander (1980) e Aguiar (2005), que auxiliam a pensar a psicoterapia infantil à luz da abordagem gestáltica, e Fukumitsu (2012) e Martins e Lima (2014), que abordam a temática de perdas e luto.

A seleção destas obras justifica-se devido ao fato de serem consideradas importantes tanto para a compreensão da abordagem gestáltica, de modo geral, quanto para a temática específica, visto que tais estudiosos são referências na área de estudo. Portanto, a partir da revisão destas obras, obtivemos um entendimento aprofundado e crítico em relação aos conteúdos em questão, sendo possível ilustrar aquilo que percebemos na teoria a partir de elementos da nossa prática clínica. Diante disso, apresentaremos algumas passagens de dois casos clínicos, em que um apresenta a perda física de um ente querido, enquanto o outro se refere à perda simbólica por meio do abandono.

 

Introdução à Gestalt-terapia com crianças

Para obtermos um breve entendimento acerca da Gestalt-terapia com crianças devemos, primeiramente, compreender o conceito de infância que tem sido construído ao longo dos anos. Este se configura como uma construção social, visto que nos primórdios da humanidade não havia essa concepção frente às crianças, as quais foram consideradas, por muito tempo, como "mini-adultas" (ARIÈS, 1978). 

Foi a partir das mudanças produzidas pelo capitalismo que as crianças começaram a ser vistas como sujeitos que precisavam de cuidados e educação, principalmente pelo fato de que seriam as trabalhadoras do futuro. Então teve início o processo de escolarização, que resultou na separação da criança do mundo adulto, para que, assim, pudesse haver uma preparação para o futuro (AGUIAR, 2005). Por meio desta construção da infância e o consequente sentimento de família que emergiu, a criança começou a ser compreendida como aquela que necessita de cuidados, devido sua fragilidade e inocência, o que levou ao estabelecimento de relações mais afetivas (Ibidem, 2005).

Esta abordagem caracteriza-se por ser mais do que apenas uma teoria, mas uma perspectiva em que o ser humano é compreendido em sua totalidade, cujas atitudes, comportamentos, pensamentos, sentimentos e o próprio sintoma fazem parte de um contexto maior. Este vai além de sua individualidade, mas abrange seu meio familiar, social, cultural e histórico. Ou seja, o sujeito assim como influencia o meio, também é influenciado pelo mesmo e não podemos enxergá-lo fora desta relação (KIYAN, 2001).

Da mesma forma, Perls (1977) abordava a questão do corpo e da mente, afirmando que não há dissociação entre os dois, visto que representam o "eu". Isso significa que não é possível dividir o ser humano em partes, pois o todo é maior que a soma das partes e, portanto, precisamos compreender o sujeito como um ser integrado, um todo organizado. Logo, considerava que somos corpo-mente no aqui-agora (RODRIGUES, 2000).

Na psicoterapia infantil, dentro da Gestalt-terapia, iremos adotar a mesma visão de sujeito para compreender a criança que a nós se apresenta, buscando perceber os motivos pelos quais está ali, qual o seu sintoma, a favor de quê ele está servindo e como ela lida com isso. Desta forma, tentaremos encontrar, juntamente com o paciente, uma maneira de liberar estas energias "tóxicas", de modo que ele possa lidar de forma saudável e criativa com as situações adversas (PINTO, 2009).

Aguiar (2005) refere que a psicoterapia infantil engloba conhecimentos específicos para trabalhar com crianças, sendo essencial enxergá-la não apenas pelo seu sintoma, mas pelos seus diferentes contextos. Desta forma, faz-se possível compreendê-la como um todo, um ser que se relaciona a partir das polaridades meio-organismo. Ou seja, precisamos ter uma visão holística para que nosso trabalho possa ser eficaz, auxiliando no processo de autorregulação organísmica e "awareness".

Melanie Klein, citada por Aguiar (2005), dizia que a criança utiliza uma linguagem lúdica, principal ferramenta utilizada na psicoterapia infantil, sendo esta muito mais não-verbal do que verbal. Winnicott também trouxe contribuições aos estudos da psicoterapia infantil, revelando que o terapeuta não deve apenas observar a criança, mas deve se posicionar de forma mais ativa no "setting", participando e tentando encontrar a criança através do seu brincar (AGUIAR, 2005). Deste modo, poderá ser estabelecida uma relação entre ambos, sendo o contato um fator importante.

Este é um ponto que vem acrescentar à Gestalt-terapia, visto que para Aguiar (2005, p. 25) a base para a condução do processo terapêutico infantil é realizar "o movimento de ir ao encontro da criança, encontrá-la em seu mundo e envolver-se em sua brincadeira durante as sessões". Ademais, devemos sempre considerar que cada criança é única e manifestará um modo de expressão diferente, conforme suas vivências e o contexto no qual está inserida. Sendo assim, iremos trabalhar a partir de uma relação dialógica, embasados na perspectiva fenomenológica, em que auxiliaremos a criança a buscar novos significados às suas questões, permitindo que algumas "Gestalten" sejam fechadas.

Para que o nosso trabalho possa ser efetivo para a criança, visamos ampliá-lo para além do espaço terapêutico, envolvendo seus responsáveis, na medida do possível, para que estes possam perceber a importância de sua participação nas questões do paciente. Da mesma forma, buscamo-los como aliados nesse processo psicoterapêutico, no sentido de auxiliá-los a lidar com as mudanças que podem ocorrer. Devemos pensar muito mais em um foco nas relações que a criança estabelece e como lida com o meio, do que enfocar apenas a criança com seu sintoma (AGUIAR, 2005).

 

Perdas: a vivência do luto

As perdas estão presentes em diversos momentos de nossa existência. Apesar de algumas perdas serem inevitáveis, muitas vezes são necessárias para o crescimento e o desenvolvimento do sujeito, sendo positivas quando experienciadas de forma plena (MARTINS; LIMA, 2014). Há diferentes tipos de perdas pelas quais o ser humano poderá passar que não somente a morte física, mas também a morte simbólica, tais como: término de relacionamentos, perda de objetos com valor sentimental ou material, mudança de papéis e identidade dentro de um grupo, rompimento de vínculos significativos, modificação de planos e expectativas quanto ao futuro (TAVERNA; SOUZA, 2014).

Se formos considerar os primórdios da humanidade, vamos nos deparar com uma concepção diferente da que temos hoje acerca da morte, em que havia, sim, o sofrimento, mas esta vivência era aceita de um modo mais natural e menos oculta. Ou seja, a compreensão e representação da morte foram sendo alteradas, conforme o momento histórico (MARTINS; LIMA, 2005). Quando pensamos na sociedade contemporânea, percebemos que impera a produtividade, a agilidade para dar conta das mais diversas situações, assim como se preza pelo acúmulo de bens. Desse modo, temos a ilusão de ter o controle sobre tudo, incluindo a morte. Só que quando esta aparece, ela nos mostra que não temos o poder absoluto de que gostaríamos, fazendo emergir nossas fragilidades e tristezas, esbarrando no limite da vida (TAVARES, 2001).

Martins e Lima (2014) afirmam o quanto as perdas e a morte são inerentes à vida humana, sem que seja possível pensar a ideia de vida sem conceber a possibilidade da morte. Essas perdas geram sofrimentos e sensação de perigo, não só nas crianças, mas também nos adultos, visto que ambos se deparam com situações que podem gerar medo, seja do desconhecido, do desemparo, da solidão e, especialmente, do abandono (MARTINS; LIMA, 2014). À vista disso, instaura-se o luto, o qual será vivenciado de forma particular e única por cada sujeito, conforme o vínculo e apego que este possuía com a pessoa ausente, sendo importante permitir a manifestação dos sentimentos para passar por esse processo.

O luto é então compreendido "como um processo e não um estado", visto que à medida que nos permitimos sentir esta dor e passar pelas fases que podem ocorrer durante o luto, estaremos nos fortalecendo, evitando um luto patológico (MARTINS; LIMA, 2014, p. 15). Tavares (2001) refere-se ao luto como uma possibilidade de reestruturação emocional, enquanto Fukumitsu (2012) complementa que esse é um processo de ajustamento às perdas, cujo resultado é o encontro de novas alternativas frente a estas e demais adversidades, favorecendo um crescimento.

A psiquiatra Elizabeth Klüber-Ross (2005) define no processo de luto as seguintes etapas: negação, raiva e culpa, negociação (pedidos muitas vezes impossíveis), depressão e aceitação (fase de recuperação). Martins e Lima (2014) lembram que em relação ao processo de aceitação este não significa esquecimento ou abandono, mas um modo gradativo que irá auxiliar na modificação de sentimentos negativos advindos da separação em reparação. Cada pessoa terá o seu tempo para passar por cada fase, de modo que para algumas o luto será mais breve e para outras pode levar anos. Sendo assim, Fukumitsu (2012, p. 89) acrescenta que se trata não especificamente "de uma elaboração e, sim, de um processo que busca um fechamento".

O luto, quando não vivenciado de forma plena, corre o risco de se tornar patológico: o indivíduo atrela-se à falta e ao apego da pessoa que partiu e fica inerte ao processo do luto. Sendo assim, não assume uma postura de enfrentamento saudável frente a essa situação, o que dificulta a atribuição do sentido dessa experiência, restando apenas o peso dessa vivência (MARTINS; LIMA, 2014). De acordo com Taverna e Souza (2014), além do sofrimento, esta vivência poderá desencadear patologias, tais como: violência, colapso físico, entorpecimento, entre outros.

Segundo Kovács (1992), as crianças também vivenciam as fases do luto, acima descritas, assim como os adultos o fazem, caso elas estejam a par da situação e tenham recebido esclarecimentos acerca do fato, sem deixar de considerar seus níveis cognitivos e suas possibilidades de compreensão. O que poderá ocorrer de forma diferente ao adulto é o modo como a criança irá lidar com essa perda e como esse luto será vivido, lembrando que assim como esse processo varia da criança para o adulto, ele também varia de uma criança para outra, visto que cada sujeito possui sua individualidade e contexto próprio.

Fukumitsu (2012) refere que muitas das perdas que presenciamos em nossas vidas não ocorrem por escolhas nossas, principalmente quando nos remetemos a uma morte inesperada ou ao abandono. Desse modo, o sofrimento é inevitável e, inclusive, faz parte da vida. No entanto, ela relata que cabe a nós escolhermos como vamos sentir o nosso sofrimento. Nesse sentido, a autora aborda um dos conceitos que baseiam a Gestalt-terapia, que é a responsabilidade. Ou seja, somos considerados seres autônomos e responsáveis pelas nossas escolhas e, em vista disso, "é nosso dever recuperar nossas vidas", sendo capazes de "aprender com nossas perdas" (FUKUMITSU, 2012, p. 92).

A partir dessa compreensão acerca das perdas e do consequente luto, podemos pensar na psicoterapia como um modo de auxiliar o sujeito a passar por esse momento delicado, devolvendo-lhe a possibilidade de construir autonomia e capacidade de enfrentamento às situações adversas. Martins e Lima (2014, p. 28-29) concluem que o objetivo terapêutico não é buscar um "enquadramento social do indivíduo, entretanto, é proporcionar ao cliente a autonomia necessária para a satisfação de suas necessidades físicas, psicológicas, interpessoais e sociais".

Tendo em vista que o luto é entendido pela Gestalt-terapia como um processo que busca o fechamento de uma Gestalt, ou seja, de uma situação que está inacabada, é importante que o paciente consiga tomar consciência (ficar "aware") de seus sentimentos, para ser capaz de encontrar um meio de minimizar o seu sofrimento. Isto posto, concluímos que o luto trata-se essencialmente de uma etapa em que o sujeito demanda uma reorganização (MARTINS; LIMA, 2014).

 

O brincar como modo de ressignificar situações e desenvolver ajustamentos criativos

Frente às diferentes razões pelas quais as crianças chegam à terapia, a necessidade de lidar com perdas e enfrentar o luto é uma delas. Sendo assim, iremos trabalhar conforme o conteúdo que a criança apresenta, mostrando-nos disponíveis para estar com ela, de modo a acompanhá-la de forma ativa no ambiente terapêutico, fazendo intervenções quando necessário, mas deixando que ela guie a sessão (AGUIAR, 2005).

Destarte, iremos utilizar o material lúdico como grande ferramenta para estabelecer uma relação terapêutica, possibilitando entrar no mundo interno da criança. Além disso, muitas vezes o simples fato de a criança se sentir à vontade para brincar no espaço terapêutico, percebendo este lugar como seguro e que lhe acolha sem julgamentos, permitindo a sua expressão mais espontânea, já basta para que haja modificações ao seu bem-estar e atualizações que contribuem para o resgate de seu funcionamento saudável (AGUIAR, 2005; RODRIGUES; NUNES, 2010).

De todo modo, o brincar irá se configurar como uma forma de linguagem entre terapeuta e paciente, facilitando a expressão e a comunicação. Em muitos casos é possível perceber a projeção que a criança faz de si, do seu meio ou de cenas que vivenciou nas brincadeiras e demais atividades que ocorrem no espaço terapêutico. Rodrigues e Nunes (2010) complementam que a Gestalt-terapia pode ser uma importante aliada para atingir tal objetivo, tendo em vista que a mesma compreende a criança como um ser único e singular, que se desenvolve nas relações e precisa ser compreendida de acordo com seu meio.

Oaklander (1980) refere que seu objetivo na terapia com criança é fazer com que tenha uma tomada de consciência sobre si mesma e sobre sua existência no mundo, independente do que escolham fazer em cada sessão. A autora complementa que "cada terapeuta encontrará o seu próprio estilo para conseguir esse delicado equilíbrio entre dirigir e orientar a sessão, de um lado, e acompanhar e seguir a direção da criança, de outro" (OAKLANDER, 1980, p. 69).

Tendo em vista que as crianças captam com certa facilidade o que se passa ao seu redor, elas logo percebem "que a vida não é perfeita, que vivemos num mundo caótico, um mundo de dicotomia e contradição" (OAKLANDER, 1980, p. 73). Então elas buscam maneiras de seguir adiante e sobreviver, de modo que nessa incessante busca pelo crescimento podem acabar adotando um comportamento que sirva, naquele momento, como uma forma de avançar. Muitas vezes, quando seu funcionamento natural está interrompido, esses comportamentos adotados podem aparecer como o sintoma a que a criança chega à terapia (OAKLANDER, 1980).

Por isso é de extrema importância que estejamos dispostos a acolher esta criança sem julgamentos ou estereótipos, aceitando e respeitando seus medos, para que ela possa enfrentá-los e sentir-se forte "para lidar com um mundo que às vezes lhe é ameaçador" (OAKLANDER, 1980, p. 265). É justamente através do espaço lúdico que vamos possibilitar a expressão desses sentimentos e anseios que a criança guarda para si, sendo relevante realizar algumas intervenções, na medida em que apareçam oportunidades para fazê-las (AGUIAR, 2005).

Essas intervenções serão feitas, em grande parte, dentro das próprias brincadeiras, fazendo-se presente através da linguagem lúdica. E para que isso possa ocorrer é demasiadamente importante que o terapeuta esteja disponível para o brincar que o paciente sugere, que ele possa se envolver naquilo que foi proposto, fazendo com que a brincadeira se torne o diálogo entre ambos. Aguiar (2005, p. 198) complementa que brincar "é poder compartilhar da importância e da magia daquela linguagem sem perder de vista a tarefa terapêutica".

Precisamos estar atentos ao fato de que os Gestalt-terapeutas não enfocam apenas o sintoma apresentado, o qual deu origem à queixa inicial, mas englobam todo o contexto, numa perspectiva holística, onde o sintoma é apenas mais um fator que o permeia. Certamente não iremos ignorá-lo, mas iremos trabalhar com as demais questões que possam emergir e que se mostrem como uma necessidade da criança, almejando seu funcionamento saudável e não a mera extinção do sintoma. Portanto, nosso objetivo será criar oportunidades para que o paciente "se experimente" e possa expandir seus modos de lidar com o mundo (AGUIAR, 2005).

Oaklander (1980) lembra ainda que precisamos ajudá-las no seu processo de fortalecimento, crescimento e visão de mundo, mostrando-lhes que são seres autônomos e que, portanto, possuem escolhas. Estas possibilitam que elas escolham o modo como verão e se relacionarão com o meio, assim como a forma com que irão lidar com dificuldades. Entretanto, a autora refere que também devemos auxiliá-las a compreender que não podem sentir-se responsabilizadas por decisões que não cabem a elas tomar, visto que há situações adversas em suas vidas, das quais elas não tiveram a opção de escolher como seriam.

Frente a todas essas questões a criança irá tentar buscar uma forma de lidar com as dificuldades que a ela se apresentam, elaborando ajustamentos criativos na tentativa de se autorregular. Entretanto, alguns desses ajustamentos podem ser não-saudáveis (ou disfuncionais), vindo a se tornarem o sintoma e, nesse sentido, enunciam que algo não está bem e precisa ser reajustado (AGUIAR, 2005).

Frazão (1995), ao falar sobre o sintoma apresentado pelo paciente, refere-se a ele como um ajustamento criativo disfuncional, visto que este foi o modo que o sujeito encontrou para lidar com as adversidades a que está exposto. Ou seja, o paciente demonstra que tentou fechar uma situação que estava em aberto, "criando uma nova forma, que na realidade é uma deformação" (FRAZÃO, 1995, p. 21). Esta pode ser definida por uma tentativa de minimizar o sofrimento, mas acaba se manifestando de forma disfuncional, o que faz reaparecer o sofrimento.

Sendo assim, a terapia visará justamente oportunizar o desenvolvimento de novos ajustamentos criativos, de modo que estes se manifestem de forma saudável, sendo benéficos ao paciente. Assim, ele conseguirá se fortalecer e crescer, amparado por recursos positivos ao seu desenvolvimento e que sirvam como ferramentas para lidar com suas dificuldades. Ou seja, o sujeito tenta encontrar um ponto de equilíbrio em sua relação com o meio, tentando alcançar a cada situação a melhor forma de estar no mundo (AGUIAR, 2005).

Estes ajustamentos criativos podem ocorrer diversas vezes e em diferentes momentos durante a vida, em que o sujeito sempre busca uma adaptação, criando seus próprios recursos para se atualizar diante do meio (PERLS, 1977; PINTO, 2009). Esse processo já vem ocorrendo desde a infância e irá permanecer durante o resto da vida, visto que estamos o tempo todo em busca de um equilíbrio frente aos nossos desejos e necessidades, os quais podem variar em momentos diferentes da vida.

Para que consigamos satisfazer estas necessidades de forma saudável é muito importante que alcancemos o processo de "awareness". Isso significa dar-se conta do que acontece conosco, tanto no nosso interior, quanto no exterior. Trata-se da possibilidade de nos percebermos, identificando nossas ações, pensamentos, sentimentos e o que necessitamos nessa interação organismo-meio (AGUIAR, 2005).

Quando a criança encontra um espaço acolhedor para lidar com seus sentimentos e dificuldades, como costuma ser o caso da terapia, ela pode atualizar o seu modo de enfrentar as adversidades, elaborando novos ajustamentos criativos. Esses ajustamentos podem ser percebidos por meio das brincadeiras e, inclusive por meio delas, podem aparecer novas atualizações, onde a criança se dá conta de algumas questões e expressa aquilo de que necessita no momento. Portanto, o brincar é também uma forma de ajustar-se criativamente.

Na medida em que os ajustamentos criativos vão sendo trabalhados, estes poderão produzir mudanças no meio, podendo propiciar o equilíbrio e a "cura" do indivíduo (PERUZZO, 2011). Ademais, é importante ressaltar que quando a criança se sente aceita, validada e respeitada pelo terapeuta, de acordo com seus limites e potencialidades, torna-se capaz de percorrer seus caminhos em busca de autonomia, autorregulação organísmica e a valorização de si (Ibidem, 2011).

 

Vivências de perdas e ajustamentos criativos na prática clínica

A partir da contextualização teórica realizada até o momento, abordaremos elementos vivenciados em nossa prática clínica por meio da exemplificação de dois casos, em que os responsáveis pelos pacientes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em que são respeitadas as normas nacionais vigentes para publicação de dados em saúde. O primeiro deles refere-se a uma menina (a qual será denominada Laura) de 7 anos que presenciou a morte de sua mãe quando tinha 5 anos, executada a tiros por seu pai. O segundo caso diz respeito a um menino (denominado João) de 6 anos que foi abandonado pelos pais quando tinha 2 anos.

Importante ressaltar que cada caso foi atendido por uma profissional, mas ambos foram discutidos conjuntamente em supervisão, a fim de obter uma visão mais ampla dos atendimentos. Para melhor organização, as ilustrações estão divididas em caso 1 (Laura) e caso 2 (João), a partir de dados coletados das anotações das terapeutas e do material supervisionado.

 

Caso 1

Laura chegou ao serviço com uma demanda relacionada à perda materna, luto e medo do pai e, portanto, seu sintoma não pode ser considerado fora do contexto social e familiar. Essa fatalidade além de afetar a criança, a qual terá que achar meios para lidar com seu sofrimento e compreender a mistura de sentimentos que deve estar vivenciando, abalou também outros de seus familiares.  

Apesar de Laura nunca se referir diretamente à mãe ou ao pai, percebemos que ela vem trazendo questões referentes ao processo de luto, principalmente quando fez um desenho, referindo que o mundo iria acabar, pois as gotas de chuva que desenhou denunciavam isso, e todos iriam morrer e virar "fumaça". Mas depois admitiu que era só no desenho e que o mundo não iria acabar de verdade. Esta foi a primeira vez que ela trouxe a temática da morte, durante as sessões, de forma mais clara. Isso ilustra o quanto os seus sentimentos e tentativa de compreensão vão aparecendo nas brincadeiras, servindo de ajustamento criativo para satisfazer suas necessidades naquele momento.

Ainda em relação ao luto, podemos perceber que, mesmo quando este processo já está se fechando, o enlutado continuará tendo momentos de lembrança e até de tristeza frente à perda e à pessoa que faleceu, a exemplo da chamada "reação de aniversário", em que a pessoa é lembrada em datas comemorativas, gerando saudade, tristeza e solidão (MARTINS; LIMA, 2014). Isso condiz com a fala da familiar responsável por Laura sobre ela ter começado a ficar mais triste a partir de determinado mês e ter sentido mais medos desde um dia específico naquele mês, que era justamente o dia do aniversário da mãe.

Outra ocasião em que Laura apresentou elementos referentes à sua perda foi em uma sessão em que estávamos jogando um jogo estruturado que apresenta situações da vida (Jogo da Vida) e, em dado momento, ela interrompeu a atividade para questionar acerca do saco de boxe. Levantou, aproximou-se dele e, acompanhada por nosso olhar atento, começou a bater, até que parou e o comparou a um bebê, abraçando-lhe carinhosamente e dando uma risadinha. Só então voltou ao seu lugar à mesa e continuamos o jogo. Conforme Oaklander (1980), é importante que o terapeuta se mova junto com a criança, sabendo quando deve falar e quando deve manter-se em silêncio. A autora acrescenta que na maioria das vezes a criança vai nos mostrar aquilo que precisa por meio das brincadeiras que escolhe.

Parece-nos que o fato de Laura dar umas batidas no saco de boxe, pode ter sido uma forma de liberar a sua energia, descarregando um pouco de sua dor ou mesmo "estranhamento" a tudo que vem acontecendo em sua vida. Mas ao mesmo tempo, quando ela para de bater no saco, compara-lhe a um bebê e o abraça, ela parece demonstrar que assim como ela sente raiva e/ou tristeza, ela precisa de carinho, de alguém que a acolha e proteja nesse momento. Talvez ela esteja sentindo falta de uma figura que lhe conforte e lhe passe segurança, já que sua responsável também passou pela mesma situação e ainda sofre com o ocorrido, sentindo-se insegura, talvez sem saber como lidar com a situação e confortá-la. Mas o mais importante é que Laura demonstra o quanto buscou dar a si mesma o suporte de que precisava, de forma espontânea e sincera, tendo a oportunidade de expressar o que sentia.

Assim, voltando à questão das interrupções nas atividades, estas nos levam a pensar em duas opções que podem estar ocorrendo com Laura, visto que em alguns momentos ela precisa fazer essas pausas, para depois retomar a atividade anterior. Seria esta uma forma de fugir de algo que lhe incomoda na brincadeira, por não conseguir lidar com aquilo? Ou, por outro lado, seria esta interrupção feita por uma necessidade de realizar um ajustamento criativo naquele instante para, então, voltar à brincadeira? Essas questões só podem ser respondidas e efetivadas (ou não) na medida em que Laura as enuncie. Entretanto, podemos perceber que este tem sido o seu modo de estabelecer contato com o meio.

Ao mesmo tempo em que ela tenta estabelecer esse contato, parece que, de alguma forma, ela também realiza certa evitação de contato, identificada nessas interrupções do brincar ou mesmo da fala. A esta última referimo-nos ao dia em que jogávamos o Jogo da Vida e ao questioná-la sobre quem estava dirigindo o carro, ela respondeu: "o pai... mas o pai não tá mais aqui... eu.". No entanto, houve a impressão de que ela falou em um tom mais baixo, como se não fosse para a terapeuta ouvir ou mesmo como se tivesse se dado conta do que disse quanto ao pai, mudando de ideia e referindo ser ela quem estava dirigindo. De qualquer forma, pareceu-nos que ela não queria entrar em contato com aquilo e então seguimos a brincadeira, sem que houvesse a tentativa de forçá-la a falar sobre algo de que ainda não se sentisse preparada. 

Outra situação parecida ocorreu quando brincávamos de massa de modelar e a terapeuta modelou uma pessoa. De repente, Laura colocou um pedaço de massinha "cor da pele" na barriga da "boneca" e ao questioná-la o que era, ela falou mais baixo: "um bebê" e riu. A terapeuta repetiu, perguntando: "O que? Um bebê?", ao que ela disse: "Nada". Novamente, pareceu-nos que ou ela se deu conta do que enunciou ou então não quis falar sobre isso, dando a impressão de deixar algo no ar. Oaklander (1980) escreve que as crianças sempre tentam se proteger de algum modo, sendo que algumas se retraem na tentativa de não se ferirem, enquanto outras criam fantasias para se divertirem, tentando deixar suas vidas mais fáceis de serem vividas.

A autora também afirma que "a maioria das crianças consideradas necessitadas de ajuda possuem uma coisa em comum: alguma deficiência em suas funções de contato" (OAKLANDER, 1980, p. 73). Martins e Lima (2014) complementam que para a Gestalt-terapia os mecanismos neuróticos emergem quando há uma tentativa de interrupção do contato, em que tal evitação relaciona-se a situações inacabadas que foram vividas no passado e se cristalizaram, tornando-se disfuncionais no presente.

No caso de Laura podemos pensar que a situação inacabada com que vem tentando lidar é referente à morte da mãe e ao fato de seu pai não ser um modelo esperado de paternidade, o que pode fazê-la se sentir, de certo modo, órfã. Apesar de ter fortes vínculos familiares com as pessoas com quem mora atualmente, perdeu o vínculo materno e paterno muito cedo e todas essas questões podem estar propiciando essas interrupções de contato em dados momentos.

Em sequência, Ginger (1995) refere que, para Perls, quando o sujeito se depara com "Gestalten" inacabadas e necessidades interrompidas, ele acaba se repetindo, na tentativa de dar conta daquilo que está inacabado, buscando fechar uma Gestalt. Laura repete muitas atividades, a exemplo do desenho ou modelagem de uma árvore com raiz grossa e uma flor ao lado, assim como gosta de desenhar números e pede ajuda em alguns momentos. Provavelmente isso demonstra uma Gestalt ainda em aberto, cujas necessidades ela vai tentando, aos poucos, satisfazer, até que possa fechá-la.

O modo trabalhado com Laura foi concordante ao que Aguiar (2005) sugere, deixando que a paciente se sentisse livre no espaço terapêutico e pudesse expressar seus desejos, buscando autonomia. Percebemos que era isso mesmo que ela fazia, visto que conseguia expressar sua autonomia na sessão, sabendo que aquele era seu espaço, sugerindo as brincadeiras e, inclusive, o piquenique que fizemos. Também percebemos sua autonomia e iniciativa na hora de decidir o que cada uma levaria para o piquenique.

A partir de toda a interlocução realizada até aqui, podemos perceber que Laura vai encontrando meios de se ajustar criativamente e satisfazer suas necessidades. Fica claro que a figura e o fundo podem ser diferentes dentro e fora da sessão e provavelmente o são. Por mais que haja uma interlocução e um contexto maior que embase o que é figura e o que é fundo em dado período, na sessão teremos uma variedade muito grande de figuras a cada momento.

 

Caso 2

João foi abandonado por seus pais quando ainda era muito pequeno. Este abandono precoce pode ter desenvolvido uma série de questões e prejuízos no desenvolvimento saudável do paciente. Antony (2009) aponta que crianças que foram abandonadas precocemente, ao experimentarem o distanciamento dos pais, passam a desenvolver o medo do afastamento, do desaparecimento e de perdas de figuras significativas. O abandono pode gerar uma angústia de separação que pode se alastrar para outros contextos em que a criança está inserida.

O medo e a angústia da separação mostraram-se evidentes em dois atendimentos com o paciente. Nos atendimentos que antecederam às férias foi trabalhada, aos poucos, a questão de que ficaríamos um tempo sem nos vermos. No entanto, no último atendimento antes das férias, o paciente recusou-se a sair da sala e desejou levar consigo um dos brinquedos. Ele demonstrou agressividade em seu comportamento no momento de ir embora, comportamento este que se repetiu no primeiro dia de atendimento após as férias. A repetição de tal conduta pode ter acontecido pelo medo de não retornar para o atendimento, assim como o desejo de levar um brinquedo pode ter emergido como uma garantia de que iria voltar.

Diante dessas situações, podemos pensar que o comportamento de João frente ao momento de ter que ir embora e ter a ruptura dos atendimentos por alguns meses fez com que ele revivesse o medo da perda e a angústia do abandono. Brito e Antony (2010) referem que crianças abandonadas podem fixar-se em um estado de carência afetiva, que as levam a buscar relações interpessoais futuras para a satisfação de suas necessidades de cuidado, de amor e de proteção. Muitas vezes, essa condição pode tornar confusa a fronteira entre elas e o outro, podendo provocar uma incapacidade de se diferenciarem do outro, levando a acreditarem que sem ele, elas simplesmente não existem (Ibidem, 2010).

O comportamento agressivo de João evidenciado nesta situação, bem como em outros contextos no qual está inserido, pode se caracterizar como o sintoma, ou seja, a forma que encontrou para lidar com questões que ainda não estão elaboradas e que lhe causam sofrimento. Este comportamento pode ser considerado um ajustamento criativo disfuncional, visto que não é socialmente aceito e também por ser danoso à sua saúde. No entanto, pode ter sido funcional naquele momento, já que esses ajustamentos são utilizados para que o indivíduo não entre em contato com conteúdos que no momento não tem condições psíquicas para lidar, o que não impede que volte a ter contato com os mesmos e que possa trabalhá-los em outro momento da vida (PERUZZO, 2011).

As crianças possuem uma capacidade muito potente de se autorregular e buscar formas mais saudáveis para enfrentar situações. Isso se mostrou evidente nos atendimentos que antecederam e sucederam às férias. O fato de João resistir em sair da sala obrigou-nos a chamar sua responsável legal para que o buscasse. No momento em que João a viu, ele prontamente fez o movimento de sair da sala. Essa situação foi importante para demarcar a posição que sua responsável possui, visto que a mesma, em alguns momentos, não se autorizava a dar limites para João, denominando-se apenas como aquela que "dá as coisas e dá carinho". Em atendimentos subsequentes, a responsável por João conseguiu manter-se firme em sua posição frente às atitudes do menino.

A partir dessa situação, podemos pensar nas modificações que aconteceram no "entre" desta relação. De acordo com Brito e Antony (2010), ajustamo-nos criativamente ao meio diante da interação ativa com o outro, seja explorando o mundo ao nosso redor, seja descobrindo novas possibilidades de respostas à situação. Ou seja, na medida em que houve uma modificação no modo de ser de uma figura significativa na vida de João, alguns sentimentos que antes lhe causavam sofrimento e desorganização, puderam ser contidos e acomodados. Isso também se manifestou no final do segundo atendimento após as férias, em que João compreendeu que a sessão estava acabando e saiu de mãos dadas com a terapeuta pelo corredor ao encontro de sua responsável.

Outra questão que se mostrou preponderante nos atendimentos de João foi o uso da fantasia como recurso para facilitar a expressão de seus sentimentos e se ajustar criativamente ao meio. Isto se evidenciou a partir do grande interesse de João pela história do Mágico de Oz, que se fez presente em praticamente todos os atendimentos. Na história, a personagem principal, Dorothy, é uma órfã criada por seus tios, na paisagem desolada do Kansas. Junto com seu cão de estimação, Totó, Dorothy é levada por um tornado para a terra de Oz, entrando em um mundo alternativo, cheio de criaturas falantes. Mesmo que este lugar seja tão fascinante e maravilhoso quanto perigoso, Dorothy só pensa em voltar para casa. Em busca deste retorno, faz uma grande jornada por este território encantado, acompanhada por um bizarro grupo (CORSO; CORSO, 2006).

De acordo com Branco (2001), as histórias infantis foram criadas com o propósito de ajudar crianças a se desenvolverem e se prepararem para questões presentes da vida humana. É relevante perceber que ao final das histórias infantis costumamos verificar lições de vida. Muitas vezes, as questões trazidas como problemáticas na história podem ser demandas do paciente também. Desta forma, dependendo do paciente, pode suscitar identificação da criança com os personagens da história e a posterior formulação de estratégias para lidar com situações de conflito.

Ao correlacionarmos o fato de que João, assim como Dorothy, foi abandonado por seus pais, há uma possível identificação daquele com a personagem. Conforme afirma Branco (2012), a identificação não acontece de maneira consciente, mas, de alguma forma, a criança percebe que seu conflito é vivido também pelo personagem principal. Sendo assim, torna-se compreensível que João peça para ouvir ou ver esta história repetidas vezes, pois algo no enredo o tocou e ocasionou uma identificação, fazendo com que queira ouvi-la novamente, na tentativa de observar qual a solução encontrada na história para os conflitos existentes. Deste modo, poderá auxiliar na elaboração de seus sentimentos e encontrar soluções para alguns dilemas reais.

Durante os atendimentos João gostava de assistir a vídeos no "youtube",sempre referentes a esta história. Algo que se torna relevante é que o paciente volta incessantes vezes na cena em que o tornado se aproxima e leva Dorothy e Totó para o Mundo de OZ. Na maioria dos atendimentos, após assistirmos a esta cena, João convida para que encenemos (vivenciemos) juntos este momento, fazendo movimentos para impedir que o tornado nos leve. De acordo com Peseschkian (1992 apud BRANCO, 2012), através das histórias abre-se caminho para a fantasia e para o pensamento metafórico. Nesse sentido, as histórias constroem uma ponte para os desejos pessoais, abrindo caminhos alternativos para a realidade.

No decorrer dos atendimentos, João também tem conseguido dar voz e vida à personagem Dorothy. Em dado atendimento, ao questionar para onde Dorothy estava sendo levada pelo tornado, João remete que ela estava indo encontrar seus pais no Mundo Mágico de Oz. Porém, quando questionado sobre como Dorothy está se sentindo frente a esta situação, João não responde e logo verbaliza que está sentindo dores na barriga.  Entretanto, em outro atendimento, em que estava assistindo a Tom e Jerry e ao Mágico de Oz, João verbaliza que Tom e Jerry não poderiam ser levados pelo tornado, pois se sentiriam tristes. Diante dessas situações, podemos pensar na possibilidade de que, por meio da fantasia, João está conseguindo formular seus sentimentos e dar voz a eles. De acordo com Protasio (1997), através da fantasia é possível relaxar a criança e deixá-la livre para encontrar espaços que ainda não foram explorados.

João tem manifestado também este movimento de expressão de sua vida através de desenhos. Em um dos atendimentos, João desenhou Dorothy dentro de sua casa, na tentativa de se proteger do tornado (que desenhou ao lado da casa). Em várias sessões João desenha tornados e enquanto desenha, verbaliza que o tornado "rola" tudo (no sentido de levar tudo). Quando questionado sobre o que ele gostaria de dizer para aquele tornado, imediatamente João diz a palavra "para". Após, solicitou que a terapeuta desenhasse mais alguns elementos que aparecem na história do Mágico de Oz, porém não verbalizou nenhuma palavra a mais. Conforme afirma Oaklander (1980), o ato de desenhar, além de proporcionar a expressão de sentimentos, é também uma poderosa expressão de si mesmo. A criança ao compartilhar seu processo de desenhar ou descrever seu desenho do seu jeito, está também compartilhando seus sentimentos e sua forma de ser.

João também manifesta seus sentimentos através de brinquedos e brincadeiras. Ele se interessou desde o primeiro atendimento por uma bola (que se expande e diminui conforme o movimento). Solicitou, em vários momentos, que utilizássemos este brinquedo para podermos pegar o tornado e colocá-lo ali dentro, sempre na tentativa de nos proteger. Além disso, em um atendimento, dentre uma caixa que continha diversos brinquedos, João escolhe um sofá, o qual ele simbolizou como se fosse uma casa, pegando algumas "cerquinhas" e colocando-as em volta da casa. Fez movimentos como se o tornado estivesse chegando, na tentativa de levar a casa. De acordo com Lima e Lima (2015), através do brincar a criança está diretamente conectada com seu mundo, comunicando-se e expressando suas emoções. Desta forma, pode-se propiciar que a criança faça as reconfigurações necessárias para seu bem-estar e o resgate de um funcionamento saudável.

Conforme já mencionado, praticamente todos os atendimentos envolveram a história do Mágico de Oz, seja nas falas, brincadeiras ou desenhos de João. De acordo com Pardeck (1990 apud BRANCO, 2012), o uso da história infantil na terapia permite que as crianças possam ler ou ouvir sobre como superar problemas que são similares aos seus, oferecendo-lhes a oportunidade de explicar o que aprenderem nas histórias para suas situações na vida real. Sendo assim, ao ouvirem histórias similares às suas, as crianças tendem a não se sentirem tão sós ou diferentes dos demais. Portanto, a história infantil pode ser usada como recurso facilitador do processo terapêutico, permitindo que a criança possa se "distanciar" de temas dolorosos de sua vida, bem como lidar com eles através das histórias do personagem do livro (CARLSON; ARTHUR, 1999 apud BRANCO, 2012).

 

Considerações Finais

Os fechamentos de "Gestalten" relativos a perdas significativas fazem parte de um importante processo para que seja reestabelecido o ajustamento criativo saudável da pessoa em sofrimento. Através das bibliografias utilizadas e da vivência do processo terapêutico com os pacientes, percebemos que há formas muito potentes de transformação, tanto internas quanto externas. Assim, o papel do psicoterapeuta é o de facilitar este encontro, promovendo a tomada de consciência de suas ações, sentimentos e processos de ajustamentos criativos.

Em relação à psicoterapia infantil, esta se mostra como um importante processo para alcançar a criança em seu mundo lúdico, em que o foco não está na verbalização de suas vivências, mas em encontrá-las através de suas brincadeiras. Os recursos lúdicos são importantes ferramentas para que a criança consiga achar caminhos para criar e modificar sua realidade. Desse modo, para a abordagem gestáltica torna-se imprescindível a aceitação e o respeito pela fantasia da criança, visto que poderá ser um ponto de partida para o potencial criativo, tendo em vista que através dela poderão utilizar estratégias para lidar com situações difíceis e inacabadas. Sendo assim, o papel do psicoterapeuta é o de facilitar este processo, acolhendo e respeitando os limites de cada paciente e, principalmente, concebendo-o como um ser único e singular no mundo, o qual se desenvolve a partir das relações e deve ser compreendido de acordo com os mais variados contextos no qual está inserido.

A partir da compreensão dos pacientes aqui exemplificados, ficou evidente que os sintomas apresentados são uma importante manifestação interna de questões que ainda não estão elaboradas e que causam dor e sofrimento. Assim, o foco não deve ser a eliminação do sintoma, mas acolher e compreender em que momentos isso acontece, facilitando a apreensão dos sentimentos dos pacientes frente a essas situações. Desse modo, o intuito do tratamento gestáltico é restaurar o contato saudável consigo e com o meio, diante da conscientização das questões, necessidades, medos e desejos dos pacientes.

Os ajustamentos criativos, sejam eles funcionais ou disfuncionais, apresentaram-se como um importante processo na autorregulação organísmica dos pacientes em relação a algumas situações. Sendo assim, o trabalho com crianças deve ser conduzido para a vivência de experiências, respeitando seus limites, de modo que elas possam, no seu tempo, entrar em contato com seu mundo subjetivo e atribuir significado a partir do que sentem, pensam e fazem.

 

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NOTAS

* Renata da Silveira Borstmann: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Graduada em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul - (2017). Mobilidade Acadêmica no Instituto Superior de Psicologia Aplicada - ISPA em Portugal. Integrante do grupo N-PISTA(s) - Núcleo de Pesquisas Instituições, Subjetivação e Trabalho em Análise(s) - PPGPSI/UFRGS.
** Yohanna Breunig: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul.  Graduada em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul - (2017). Mobilidade Acadêmica no Instituto Superior de Psicologia Aplicada - ISPA em Portugal. Integrante do Grupo de Pesquisa Educação, Trabalho e Emancipação - PPGEdu/UNISC.
*** Maria Luisa Wunderlich dos Santos de Macedo: Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul, RS (2004). Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1983), Graduação em Complementação Pedagógica Para Psicólogos pela PUC-RS(1983), tendo obtido em 2002 o Título Profissional de Especialista em Psicologia Clínica e Psicologia Escolar/Educacional pelo Conselho Regional de Psicologia do RS. Especialista em Saúde Pública pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1999). Atualmente atua como docente na Universidade de Santa Cruz do Sul.

 

Endereço para correspondência
Renata da Silveira Borstmann:
Endereço eletrônico:rborstmann@hotmail.com
Yohanna Breunig:
Endereço eletrônico:yo_breunig_@hotmail.com
Maria Luisa Wunderlich dos Santos de Macedo:
Endereço eletrônico:marialuisa-macedo@hotmail.com

 

Recebido em: 18/06/2018
Aprovado em: 20/11/2018