ARTIGO

Aproximações das ideias de Martin Buber e Carl Rogers presentes no processo psicoterapêutico

Approximations of the ideas of Martin Buber and Carl Rogers present in the psychotherapeutic process

 

Simone Aparecida Noronha*

Centro Universitário Newton Paiva - Belo Horizonte- MG.

Endereço para correspondência

 


RESUMO

Este estudo trata de uma apresentação teórica das aproximações existentes entre as ideias do filósofo Martin Buber e do psicólogo Carl Rogers. Dentre elas, destacou-se a experiência, a presença, a liberdade e a importância do encontro Eu-Tu na relação terapeuta-cliente. O objetivo principal foi compreender a aplicabilidade prática dessas ideias enquanto condições necessárias e suficientes para que as mudanças decorrentes do processo psicoterapêutico possam ocorrer e permitir que o cliente assuma a liberdade de ser quem se é autenticamente.  A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica. Concluiu-se que o crescimento e a mudança do cliente são facilitados se a relação terapeuta-cliente for pautada nos primórdios do encontro existencial promovido na relação Eu-Tu, tal qual propõe Buber. Encontro esse promovido pela empatia, consideração positiva incondicional e congruência.

Palavras-chave:Carl Rogers; Encontro Eu-Tu; Liberdade; Martin Buber; Processo Psicoterapêutico.


ABSTRACT

This paper deals with a theoretical presentation of the approximations existing between the ideas of the philosopher Martin Buber and the psychologist Carl Rogers. Among them, it was highlighted the experience, the presence, the freedom and the importance of the I-Thou encounter in the therapist-client relationship. The main goal was to understand the practical applicability of these ideas as necessary and sufficient conditions to ensure that the changes arising from the psychotherapeutic process may occur and allow the client to take the freedom to be who he/she is authentically. The methodology used was the bibliographical research. It was concluded that client growth and change are facilitated if the therapist-client relationship is based on the beginnings of the existential encounter promoted in the I-Thou relationship, as proposed by Buber. This encounter is promoted by empathy, unconditional positive regard and congruence.

Keywords: Carl Rogers; Encounter I-Thou; Freedom; Martin Buber; Psychotherapeutic process.

 

"Tomo aquele que me ouve pela mão e levo-o até a janela.
Abro-a e aponto para fora.
Não tenho ensinamento algum, mas conduzo um diálogo"

(ZUBEN, 1979, apud BUBER, 1979, p. LXIX).

 

Introdução

Vários teóricos da Psicologia foram influenciados pela Antropologia Filosófica de Martin Buber e introduziram, em sua prática terapêutica, algumas de suas ideias e conceitos. Por exemplo, Erich Fromm reforçou que a natureza humana é dinâmica e social. Ludwig Binswanger reafirmou que a dimensão do encontro é delimitada pela relação Eu-Tu. Jacob Moreno avigorou a ideia de que é preciso a horizontalidade da relação dos homens com Deus e com os outros para a constituição do Eu. Frederick Perls enfatizou o desenvolvimento das potencialidades do cliente, sua tendência à autorregulação e ao crescimento (HOLANDA, 1998).

Diante de tantos autores e teorias influenciados por Martin Buber, este artigo tem como objetivo ressaltar a força de seus pensamentos na obra de Carl Rogers, autor da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP).  "A obra de ambos é um canto de amor à individualidade sadia e nutritiva" (HOLANDA, 1998, p. 13). O objetivo central é elucidar as aproximações desses autores, principalmente no que diz respeito às condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica proposta por Rogers. Para tanto, a metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, a partir da qual foi feita uma revisão de literatura, utilizando-se fontes primárias e secundárias. Espera-se que este texto alerte os psicólogos para uma reflexão sobre como ocupam, em sua prática clínica, o lugar de terapeuta centrado na pessoa, contribuindo para o aprimoramento dos atendimentos clínicos, momento em que o terapeuta coloca seu próprio Eu diante do Eu do cliente, isto é, quando Eu-Tu se encontram e a relação terapêutica se constrói.

Inicialmente, de forma sucinta, será apresentado cada autor e suas ideias.

 

1 - Martin Buber (Viena, Áustria, 8/2/1878 - 13/06/1965)

Cresceu com os avós paternos, entre as tradições judaicas e o espírito liberal proporcionado por seu avô. Adolescente, já era um estudioso apaixonado da Filosofia de Kant e Nietzsche. Deste último, traduziu para o polonês o livro "Assim falou Zaratustra", com apenas 14 anos. Aos 23 anos, na Universidade de Berlim, no curso de Filosofia e História da Arte, foi aluno do expressivo filósofo William Dilthey. Recebeu o título de Doutor em Filosofia aos 26 anos e seus estudos deixaram grandes contribuições para os campos da Sociologia, Psicologia, Política, Teologia e Judaísmo (ZUBEN, 1979, apudBUBER, 1979; Holanda, 1998).

Entre suas obras, destacam-se: a tradução da Bíblia Sagrada do hebraico para o alemão, um empenho para manter vivo os ensinamentos de Deus (Tu-eterno); e o clássico "Ich und Du" (Eu e Tu), traduzido e publicado em português em 1923 em que faz profundas reflexões sobre a existência humana, sua relação com os outros homens (Tu) e com Deus (Tu-eterno), com o qual o homem pode falar e estabelecer uma relação interpessoal (ZUBEN, 1979, apud BUBER, 1979).

Sua vida e obra foram intensamente influenciadas pelo estudo da Filosofia e pelos princípios do Hassidismo, movimento religioso místico que provocou uma renovação no Judaísmo (ZUBEN, 1979, apud BUBER, 1979). Talvez, a mais significativa renovação tenha sido no tocante à relação do homem com Deus. Essa passa de uma relação vertical, Deus no alto, Criador e Pai, afastado de sua criatura, para uma relação horizontal, Deus aqui, íntimo dos homens. O Hassidismo crê que os homens possuem uma centelha divina e são imagem e semelhança de Deus. A presença divina é universal: Deus está em todas as pessoas, coisas e lugares. Diante d'Ele, todos são iguais.

"O Hassidismo é a expressão mais completa da ligação entre as coisas divinas e a comunidade terrena." (HOLANDA, 1998, p. 139).
Desperta a emoção e a alegria de louvar a Deus e valoriza a união do homem com Ele. Dessa união, pode-se ter a santificação dos homens, desde que ele não pretenda a santidade sobre-humana. A principal tarefa do homem não é santificar-se, mas "realizar o ‘divino' no mundo."
(ZUBEN, 1979, apud BUBER, 1979, p. LXIII).

Tais ensinamentos do Hassidismo estão presentes na concepção de homem proposta por Buber: o homem total e pleno, inseparável da sua própria existência. O homem não é sozinho, ele é existente no mundo, em relação com o outro. Nasce o princípio-relação (Eu-Tu): o homem existente como mundo, em relação. Não há Eu em si, pois o Eu para existir e coexistir precisa do Tu (do outro, da relação). "O Eu é [...] relacional. Não se pode falar em Eu sem mundo, sem Isso ou sem Tu" (ZUBEN, 1979, apud BUBER, 1979, p. LVII).

Assim sendo, Buber amplia o conceito de homem. Este não é "concebido como um dado abstrato, mas como uma realidade, inserida concreta e historicamente no mundo" (HOLANDA, 1998, p.153). É um ser em formação contínua, subjetivado pelas suas experiências e relações. É a única criatura que tem o sentido de liberdade, o discernimento do bem e do mal, a possibilidade de escolher e de agir sobre a realidade. Desse modo, Buber considera o ser humano em sua totalidade e apresenta uma integração entre o ser, sua contínua interação com o mundo, com os outros seres humanos e com Deus (Tu-eterno) (HOLANDA, 1998).

Para Buber, os pares de vocábulos Eu-Tu e Eu-Isso (ele ou ela) são considerados "palavras-princípio", sendo que Eu-Tu fundamenta o mundo da relação e Eu-Isso, o mundo das experiências, do relacionamento. Todas as vezes que o Tu vira um objeto, dá origem à relação Eu-Isso. Entretanto, o mais importante é que o homem é Eu-Tu e Eu-Isso, visto que, o Eu age sobre o Tu e o Tu age sobre o Eu (BUBER, 1979, grifos do autor).

Segundo Holanda (1998), o mundo do "tu" é o mundo do presente, da presença, da reciprocidade e da alteridade. O mundo do "isso" é o mundo do passado, da ausência, da dicotomia, do conhecimento, do uso e da experiência. Estes dois mundos são, em última instância, um único mundo: o mundo experiencial do sujeito, e não um objeto de pensamento conceitual. "O conteúdo vivido da experiência humana, em todas as suas manifestações, vale mais que qualquer sistematização conceitual" (ZUBEN, 1979, apud BUBER, 1979, p. XXI).

Outra importante contribuição de Buber foi seu entendimento sobre o Encontro Existencial. "Encontro é relação, é reciprocidade" (BUBER, 1979, p. 9). "Toda vida atual é encontro" (BUBER, 1979, p. 13). O encontro só acontece na relação Eu-Tu no momento em que as pessoas se abstraem dos conceitos, pré-conceitos e julgamentos perante o outro. No verdadeiro encontro, cada pessoa pode ser livre para: sentir o que realmente sente; pensar o que realmente pensa; escolher o que realmente deseja; e ser o que realmente é. Ser livre é poder expressar-se de acordo com tudo isso (BUBER, 1979).

A Filosofia ou Antropologia Filosófica de Buber foi batizada de diferentes maneiras: Filosofia do Diálogo, Filosofia da Relação e Filosofia do Encontro. É uma Filosofia comprometida com a experiência vivida e calcada na liberdade de escolha. Para Buber, "a experiência existencial de presença ao mundo ilumina suas reflexões. A fonte de seu pensamento é sua vida; sua existência é a manifestação concreta de suas convicções" (ZUBEN, 1979, apud BUBER, 1979, p. VI, grifos do autor).

Segundo Zuben (1979, apud BUBER, 1979, p. XV),

"Buber [...] surpreendia desde o primeiro encontro. Olhar profundo que parecia tocar a intimidade de seu interlocutor, e que, contudo, sabia acolher na simplicidade e na fugacidade de um diálogo. Uma presença autêntica emanava de sua pessoa, e a profundeza de seu semblante residia na presença de si mesmo. Exatamente por esta presença a si mesmo é que ele podia tornar-se presente aos outros, acolhendo-os incondicionalmente em sua alteridade".

Tal apresentação de Zuben à pessoa de Martin Buber revela também características pessoais presentes em Carl Rogers, como se verá a seguir.

 

2 - Carl Ranson Rogers (Illinois, Estados Unidos da América, 08/01/1902 - 04/02/1987)

Quando Rogers nasceu, Buber tinha 24 anos. Os dois se encontrariam 55 anos depois em uma conferência em Ann Harbor, Estados Unidos da América (EUA), para dialogarem sobre suas reflexões (HOLANDA, 1998, p. 269). Tanto Rogers quanto Buber foram educados com fortes valores religiosos tradicionais. Entretanto, o avô de Buber tinha ideias religiosas liberais e reformadoras, educando seu neto em um clima de maior liberdade. Os pais de Rogers, ao contrário, eram rígidos e tradicionais, educando seus seis filhos com uma "moral muito estrita e intransigente" (ROGERS, 1977, p. 16). Chegaram a se mudar com os filhos adolescentes para uma fazenda com o objetivo de afastá-los das tentações da vida da cidade (ROGERS, 1977).

Diante de seu contexto familiar, o primeiro curso universitário iniciado por Rogers foi Agricultura e Ciências Naturais. Porém, na mesma época, interessou-se pelo sacerdócio e Teologia, e transferiu seus estudos para o curso de História. Em 1924, frequentou o Seminário Teológico Unido, em Nova York, EUA, onde recebeu uma visão filosófica liberal da Religião (semelhante à de Buber). Enquanto estudante de Teologia, Rogers participou de conferências de Psicologia e se viu totalmente identificado com a mesma. Transferiu novamente de curso e abraçou a Psicologia como profissão, obtendo, em 1928, seu título de Mestre e, em 1931, de Doutor (ROGERS, 1977).

Durante seu trabalho ativo com clientes e alunos, Rogers desenvolveu novas formas de pensar a prática psicoterapêutica, que era muito diferente das abordagens acadêmicas convencionais da época, a Psicanálise e o Behaviorismo. Por esse motivo, foi inicialmente muito criticado. Tais críticas, aliadas ao interesse de seus alunos, serviram-lhe de motivação para escrever e explicar seus pensamentos, resultando em uma série de livros. Em 1961, escreveu um de seus livros mais famosos, "Tornar-se pessoa", traduzido para o português em 1977, fruto da propagação das ideias de Rogers no Brasil.

No exercício da Psicologia, Rogers ocupou importantes cargos: foi diretor da equipe do Rochester Center (EUA); ocupou a cátedra de Psicologia da Universidade de Ohio (EUA); deu aulas na Universidade de Wisconsin (EUA), onde trabalhou com pacientes esquizofrênicos; associou-se ao Centro de Estudos da Pessoa, em La Jolla, Califórina (EUA), onde encontrou Maslow, Buber e outros; e foi, por duas vezes, presidente da Associação Americana de Psicologia e recebeu, desta instituição, os prêmios de "Melhor Contribuição Científica" e o de "Melhor Profissional". Morreu ativo, em 1987, aos 85 anos de idade, quando tinha sido indicado para o prêmio Nobel da Paz (Holanda, 1998). A partir de suas experiências clínicas, deslanchou-se como importante psicólogo humanista e criou uma nova abordagem psicoterapêutica, conhecida como Abordagem Centrada na Pessoa (ACP).

 

3 - Carl Rogers e a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP)

Sua teoria tem, como base, a crença de que a natureza do homem é autocriativa. O homem cria significação na vida e se cria a partir desses significados. É um "vir-a-ser": não é perfeito, completo e nem tampouco uma "tabula rasa" (ROGERS, 1975). É digno de confiança e tem a tendência a se desenvolver e evoluir constantemente. Possui vastos recursos de autoconhecimento e de modificações de atitudes e comportamentos autônomos e conscientes. Os princípios de sua abordagem são: a tendência atualizante (o homem tem impulso ao crescimento e desenvolvimento de todas suas potencialidades); a ênfase na consciência e na experiência; uma maior importância aos aspectos afetivos do que intelectuais; a valorização do momento presente (aqui e agora); a relação terapeuta-cliente é reconhecida como um Encontro Existencial; e a não diretividade (o cliente é o responsável pelo seu processo terapêutico, sendo o psicoterapeuta um facilitador deste processo).

Além desses princípios, a ACP chama a atenção para três atitudes terapêuticas que o psicoterapeuta deve incorporar ao seu jeito de ser: congruência, consideração positiva incondicional e empatia. Elas são apontadas, por Rogers, como "condições necessárias e suficientes" para que o processo de mudança psicoterapêutica aconteça. Entretanto, tais atitudes não são passiveis de serem "ensinadas", mas podem ter seus sentidos evocados no psicoterapeuta para que ele consiga ter um atendimento realmente centrado no cliente (ROGERS, 1975; WOOD et al., 1997).

A congruência é a consciência que o terapeuta deve ter de suas experiências e sentimentos, bem como a liberdade para expressá-los quando necessário. Ser congruente é ter liberdade para agir pautado em seus sentimentos; é ser autêntico (ROGERS, 1975). A congruência do terapeuta é importantíssima para que o cliente alcance sua própria congruência, sendo que o principal objetivo do processo psicoterapêutico é o cliente atingir um alto nível de congruência entre seus sentimentos e ações; é ser ele mesmo.

A consideração positiva incondicional é a atitude do terapeuta de abster-se de seus juízos de valores, preconceitos e julgamentos, e aceitar o cliente em sua totalidade. Significa que o psicoterapeuta está aberto e presente, no mesmo sentido proposto por Buber, na relação com o cliente, sensível a este, aceitando-o tal qual ele é e se apresenta. Espera-se, com esta atitude do terapeuta, que o cliente aumente gradativamente a autoaceitação de si mesmo, pois, ao perceber que alguém (o terapeuta) o ouve atentamente, valorizando-o e disposto a compreendê-lo e aceitá-lo, faz com que ele mesmo (cliente) possa se valorizar e assumir uma postura de estima e interesse por si mesmo (ROGERS, 1977).

A empatia é a capacidade de captar o que é sentido pelo outro e compreender o ponto de vista deste "como se" estivesse em seu lugar. "É um processo ativo que consiste em querer conhecer a consciência plena, atual e mutante de outra pessoa, em empenhar-se para receber o que ela comunica e seu significado e traduzir suas palavras e sinais em significado vivenciado" (ROGERS; ROSENBERG, 1977, p.74). Ela é a base para a compreensão empática do terapeuta. A compreensão empática pode ser considerada um método fenomenológico, na medida em que, na relação terapêutica, a experiência do cliente deve ser vista e ouvida tal qual ela é para ele mesmo, e não pela lente do referencial teórico do psicoterapeuta. Trata-se, portanto, de ouvir o cliente de maneira interessada e não avaliativa que, por si só, tem uma força terapêutica poderosa.

Segundo Rogers (1977), quando uma pessoa é compreendida de maneira perceptiva, "entra em contato mais próximo com uma variedade maior de suas vivências. Este fato lhe propicia um referencial mais amplo ao qual recorrer para compreender a si mesma e a nortear seu comportamento" (p. 83). Sendo assim, ser ouvido de maneira compreensiva possibilita, ao cliente, ouvir os significados de suas experiências, aceitar e compreender a si mesmo.  

São "as qualidades da consideração positiva e da congruência do terapeuta que seriam, por hipótese, ao lado da empatia, promovedores do processo terapêutico" (ROGERS; ROSENBERG, 1977, p. 70). No processo psicoterapêutico, a presença dessas atitudes, por parte do terapeuta, é imprescindível para que o cliente saia de uma posição de maior vulnerabilidade, conflitiva e incongruente, para uma posição de maior crescimento, autenticidade, congruência e liberdade, compromissada com seu devir. Dessa forma, ele poderá responsabilizar-se por suas escolhas e viver sua liberdade de ser.

Tendo como referência o exposto até o momento, pode-se finalmente elucidar as aproximações entre os pensamentos de Martin Buber e Carl Rogers e suas influências no processo psicoterapêutico.

 

4 - Aproximações entre Rogers e Buber

Holanda (1998) cita algumas aproximações das ideias desses autores, das quais dez podem ser destacadas: a concepção de homem; a visão existencial-humanista; a importância de Deus na vida dos homens; a importância da experiência; a importância da presença/aceitação do outro na formação, manutenção e transformação do Eu; o valor da liberdade experiencial e da liberdade de escolhas; a permissão para sentir e ser livremente; o valor da autenticidade; o processo dinâmico e o poder de sempre recomeçar (Buber) e a tendência atualizante do homem – o devir/tornar-se (Rogers); e o encontro existencial – relação. Assim, quando se pensa no processo de mudança terapêutica vivido pelo cliente da ACP a partir das aproximações citadas, quatro podem de fato ser apreciadas como pontos de interseção entre Buber e Rogers: a importância da experiência, a presença, a liberdade e o encontro existencial.

De acordo com Buber (1979), "o experimentador não participa do mundo: a experiência se realiza ‘nele' e não entre ele e o mundo" (p. 6). Em outras palavras, o mundo se converte no mundo da experiência, segundo o qual todo o conteúdo vivido vale mais do que as explicações conceituais que podem ser dadas sobre o que foi experimentado. O mesmo é afirmado por Rogers, para quem "a experiência é a suprema realidade" (ROGERS, 1979, p. 35). Dito de outro modo, a percepção que o homem tem do mundo é pautada na sua experiência. É, pois, a experiência que serve de guia para o ser humano encontrar sua verdade e escolher seus caminhos.

A presença é compreendida, por ambos, como a disponibilidade para estar com o outro. A relação caracteriza-se pelo fato de uma pessoa estar inteiramente com a outra em um determinado momento e lugar, entregue a ela, pronta para ouvi-la e percebê-la em sua totalidade. A presença é fundamental para o estabelecimento de qualquer relação.

Em Buber, a presença recebe uma especial atenção: é pela presença que confirmamos e reconhecemos o outro e, simultaneamente, somos confirmados e reconhecidos por ele. Em Rogers, as atitudes que definem a presença são basicamente as mesmas que ele declara ser "necessárias e suficientes" para a relação terapêutica promover mudanças: autenticidade, compreensão empática e aceitação incondicional do outro.  É pela presença que o contato verdadeiro com as pessoas e o estabelecimento de relações significativas de crescimento podem ser construídos.

Outro ponto importante e de confluência entre esses autores é o conceito do homem como um ser livre, sendo este um pressuposto básico da Psicologia Humanista. É a liberdade de ser que permite ao homem realizar-se como pessoa e determinar seu próprio destino. Buber poeticamente afirma que liberdade e destino andam de mãos dadas e "juraram fidelidade mútua" (BUBER, 1979, p. 62). Em outras palavras, o homem é livre para escolher e responsável pelas suas escolhas, sendo que estas escrevem sua história e seu destino.

De acordo com Rogers e Kinget (1975), a liberdade "consiste no fato de a pessoa se sentir livre para reconhecer e elaborar suas experiências e sentimentos pessoais como ele o entende" (p. 46). Além disso, afirmam que "o individuo é psicologicamente livre quando não se sente obrigado a negar o que sente para conservar o afeto ou estima daqueles que lhe são importantes em sua economia interna, sua autoestima" (ROGERS; KINGET, 1975, p. 47). No entendimento da ACP, não poder ser livre gera incongruência que, por sua vez, provoca conflitos psicológicos e doenças. Nesse sentido, ser livre e assumir a liberdade experiencial são o mesmo que ser congruente. Dito de outro modo, é poder agir conscientemente de acordo com suas experiências, sentimentos e pensamentos, ainda que sua ação não agrade aos outros, mas que esteja em consonância com sua liberdade e responsabilidade de ser.

A relação Eu-Tu (Buber) e a relação terapeuta-cliente (Rogers) têm os mesmos significados e funções: elas são um encontro existencial, promotoras do crescimento e desenvolvimento do ser humano. No processo terapêutico, a relação terapeuta-cliente equivale a uma relação Eu-Tu, autêntica e experiencial.

Rogers valoriza os aspectos subjetivos e intersubjetivos do relacionamento entre cliente e terapeuta, colocando-os no nível de relação de pessoa para pessoa. O cliente não é um objeto de conhecimento nem um objeto da ação terapêutica, mas um sujeito com sua individualidade e características diante do qual outro sujeito, o terapeuta, também se apresenta com sua individualidade e características. O terapeuta é autêntico e "envolve-se" com o cliente. Um envolvimento no sentido de comprometer-se com o processo de busca e crescimento de seu cliente. É estar presente, atento, inteiro e interessar-se genuinamente pelo cliente, sem querer mudá-lo ou julgá-lo, aceitando-o tal qual ele é. Esse envolvimento é, em última instância, o encontro no sentido proposto por Buber, lugar de crescimento e transformação.

Segundo Rogers, a essência da Psicoterapia está na relação que "é uma experiência de algo, um sentimento, uma vivência, que envolve um estar-com-o-outro" (HOLANDA, 1998, p. 178), em que é permitido ao cliente vivenciar livremente seus sentimentos. Sendo assim, a qualidade do encontro terapeuta-cliente é essencial, pois é através dele que o cliente poderá encontrar a si mesmo.  "A vivência do encontro é uma resposta à solidão, mas vai muito além. Dá ao indivíduo uma confirmação de sua plena existência como pessoa" (ROGERS, 1977,    p. 64). No encontro, as pessoas se colocam inteiramente, são e podem ser elas mesmas. O encontro é uma ligação interpessoal e, porque não dizer, intersubjetiva que transpõe o mundo das palavras. É esse tipo de encontro que Rogers enfatiza na relação terapeuta-cliente. Nesse ponto de vista, a relação é a própria experiência das pessoas envolvidas (terapeuta e cliente) de estar inteiro no aqui e agora, de estar e ser presente. A presença autêntica do terapeuta, na relação com seu cliente, foi valorizada por Rogers como uma das condições necessárias e suficientes para o sucesso do processo psicoterapêutico (WOOD et al., 1997).

Nesse aspecto, pode-se destacar também a importância da linguagem não verbal na relação terapeuta-cliente. O filósofo Barceló (2007) afirma que a comunicação e suas manifestações não consistem simplesmente entre o fato de uma pessoa dizer alguma coisa para que possa ser escutada pelo outro. A comunicação vai muito além do dizer e ouvir. A verdadeira comunicação exige ouvir também o valor dos significados procedentes do corpo. Isso se faz possível nas relações, quando ocorre realmente o encontro entre duas pessoas. No processo terapêutico, isso é possível quando é permitido ao corpo (do terapeuta e do cliente) experienciar, sentir e vivenciar, no aqui e agora, os significados sentidos.

 

Considerações finais

Os pontos destacados que aproximam Buber e Rogers, quando atuantes no processo psicoterapêutico, permite concluir que a relação (encontro) e as experiências daí advindas (pautados na empatia, aceitação e congruência do terapeuta) são imprescindíveis para o cliente assumir sua liberdade de ser e mudar. Nos termos de Rogers, para tornar-se uma pessoa livre, o cliente precisa saber que é aceito e compreendido e, nos termos de Buber, precisa ser confirmado pelo outro. Em outras palavras, o crescimento e a mudança do cliente são facilitadas quando a relação terapeuta-cliente é pautada nos primórdios do encontro existencial promovido na relação Eu-Tu.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARCELÓ, T. (2007). Cuerpos que escuchan: el acontecer de la empatia desde el proceso del enfoque corporal. In: Foro Internacional del Enfoque Centrado en la Persona, 10, 2007, Palma de Mallorca. Disponível em: <http://www.institutohumanista.com.br/CUERPOSQUEE SCUCHAN.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2018.

BUBER, M. Eu e Tu. (1979). (2a ed., N. A. V. Zuben, Trad.). São Paulo: Moraes.

HOLANDA, A. F. (1998). Diálogo e Psicoterapia: correlações entre Carl Rogers e Martin Buber. São Paulo: 7 Letras.

ROGERS, C. R.; KINGET, G. M. (1975).Psicoterapia e relações humanas: teoria e prática da terapia não-diretiva (1a ed., M. L. Bizzotto, Trad.). Belo Horizonte: Interlivros. 2 v.

ROGERS, C. R. (1977). Tornar-se pessoa(3a ed., M.J. C. Ferreira, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.

ROGERS, C. R.; ROSENBERG. R. (1977). A pessoa como centro. São Paulo: EPU.

WOOD, J. K. et al. (Orgs.). (1997). Abordagem centrada na pessoa(3a ed., J. K. Wood et al., Trad.). Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida. p. 157-182.

ZUBEN, N. A. V. Introdução. In: BUBER, M. Eu e Tu. (1979). (2a ed., N. A. V. Zuben, Trad.). São Paulo: Moraes.

 

NOTAS

* Simone Aparecida Noronha: Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-MINAS (2008). Especialista em Psicoterapia Centrada na Pessoa (ACP, pelo Instituto Humanista de Psicologia - IHP - BH/MG), e em Gestalt-terapia (Instituto Vanguarda de Gestalt - BH/MG).  Graduada em Psicologia pela PUC-MINAS (1991). Facilitadora Didata de Biodança (International Biocentric Foundation).

 

 

Endereço para correspondência
Simone Aparecida Noronha:
Endereço eletrônico:simonenoronha.noronha@gmail.com

 

Recebido em: 23/05/2018
Aprovado em: 31/07/2018