ARTIGO

Gestalt-Terapia: Estética Teatral da Compreensão e da ação.

Gestalt-Therapy: Theatrical aesthetics of understanding and action.

 

Clarissa Ribeiro Barreto*

UESC - Universidade Estadual do Ceará - CE.

Endereço para correspondência

 


RESUMO

A vivência fenomenológica enquanto força, enquanto possibilidade em desdobramento, é vivência artística. Em Gestalt-terapia, a vivência do criar é legitimada como o aspecto mais importante do modo de ser do homem, visto que o sofrimento é tomado na clínica gestáltica como um ajustamento criativo do homem enquanto organismo a partir de uma interação com o meio que não proporciona vivência de realização e atualização de potencialidades. A vivência artística é eminentemente o modo de ser da ação, o modo de ser da vivência da possibilidade em desdobramento que é pré-reflexiva, poiética e, sobretudo, doadora de forma. O teatro enquanto instrumento terapêutico expressivo torna-se um lugar de performance. O fazer teatral enquanto coisa é atualizado a partir da sua virtude de afirmação da possibilidade, de ação e de sua criação de forma. Portanto, torna-se necessário explorar e percorrer fluxos de pensamentos acerca do teatro enquanto lugar de expressividade criativa, de afirmação de possiblidade. Pretende-se contribuir a partir da articulação entre a perspectiva da arte em Nietzsche, da Gestalt-terapia e do pensamento de Deleuze e o Teatro, como a expressividade criativa dos organismos na clínica gestáltica pode ser compreendido através do teatro como metáfora-estética a partir de um levantamento bibliográfico.

Palavras-chave:Gestalt-terapia; Teatro; Vivência fenomenológica.


ABSTRACT

The phenomenological feelings as a force, as a possibility unfolding is artistic feelings. In Gestalt therapy the feelings of creating is legitimized as the most important aspect of the mode of being of man, because that suffering is taken in clinical Gestalt as a creative adjustment of man as a body from an interaction with the environment that does not provide feelings realization and update capabilities. The artistic feelings are imminently the mode of being of the action, how to be the feelings of the possibility of development that is pre-reflective, poetics and above all donor form. The Theater as a significant therapeutic tool becomes a place of performance, theatrical do while something is updated from its virtue of affirmation of the possibility, of action and its form creation. There fore it is necessary to explore and go thoughts flow about the theater as a place of creative expression, the possibility of affirmation. It is intended to contribute to the articulation between the perspective of art in Nietzsche, of Gestalt therapy and the thought of Deleuze and the Theater, as the creative expression of organisms in Gestalt clinic can be understood through the Theater as a metaphor-aesthetic from a bibliografhical survey.

Key words:Gestalt-therapy; Theater; Phenomenological feelings.

 

INTRODUÇÃO

A partir da minha experiência com grupos na clínica infantil em Gestalt-Terapia, algo novo procurava eclodir em decorrência da vivência com crianças que horas brilhava, musicava ou destoava. O trabalho com grupos de crianças, não é somente permeado por encontros, se torna presente também a fuga, os desencontros, que também é legitimação do possível em sua eminentemente multiplicidade.

O ser humano, em uma perspectiva fenomenológica, é compreendido a partir do que se revela. O cliente é o fio condutor de todo o processo terapêutico, onde sua abertura artística, seu criar espontâneo e a sua expressividade irão nortear todo o processo de comunicar e vivenciar a relação terapêutica em decorrência de sua capacidade inata de criatividade.

A experiência do mundo não saudável de uma pessoa encontra-se no âmago da relação organismo-meio. O cliente experiencia o seu meio a partir das potencialidades e necessidades específicas do seu modo de ser particular e, a partir dessa relação com o meio, promove ajustamentos criativos. Um ajustamento gerador de forma, que constrói significado, expressa e afirma a singularidade do organismo pode ser bloqueado devido a um meio fechado às atualizações dos seus potenciais criativos.

O modo de conhecer fenomenológico nos coloca diante da possibilidade de descrever como ocorre a expressão das forças criativas que impulsionam a atualização dos múltiplos modos virtuais de estar-no-mundo, os modos que existem como possibilidades ainda não atualizadas, um fundo de possíveis em cada figura coagulada em uma identidade fixa (DELEUZE, 2009). O tipo de descrição realizado pelo conhecimento fenomenológico não é um mapeamento de territórios fixos, e sim uma cartografia das linhas percorridas pela ação atualizante dos diversos potenciais de estar-no-mundo dos organismos em psicoterapia em Gestalt-Terapia (DELEUZE & GUATTARI, 1996).

Segundo Fonseca (2016), a compreensão e a percepção são dois modos distintos de conhecer. A compreensão é ontológica, é um modo de conhecer aberto à multiplicidade de possibilidades veladas no núcleo da identidade fixada. A percepção é o modo ôntico de conhecermos, é a instalação da coisa proveniente de um saber teórico que implica uma facticidade do objeto, um entendimento do ser como ente, como coisa, um mapa de seres fixados em territórios. O modo ôntico conhece o fenômeno não a partir de como ele se revela, mas a partir de pré-conceitos que um sujeito faz sobre um objeto. Em um modo ôntico de conhecimento, a real possibilidade de conhecer é negada, pois o saber é ditado por dados pré-fixados.

O conhecimento ontológico é fenomenológico, porque é um logos do fenômeno tal como ele aparece, é uma cartografia não apenas da forma fixa que aparece como figura, mas também das potências de ser outro(s) que borbulham no fundo de cada forma. Nesse sentido, a Getalt-Terapia compreende o ser enquanto fenômeno de um modo estético, compreende fenômeno como uma obra aberta à multiplicidade de sentidos, onde cada fenômeno é compreendido como um poema ou uma pintura pronto para anular seus significados prévios e restaurar o seu frescor e integridade originais, produzindo novos sentidos.

Rhyne (2000) enfatiza a riqueza da experiência gestáltica de arte. A experiência de arte é compreendida como um evento ativo próprio, um acontecimento pessoal que é parte inerente da nossa humanidade.

A importância do teatro enquanto propiciador de um meio aberto aos fluxos de possibilidades latentes é enfatizada por Fonseca (2009). O teatro possibilita a vivência fenomenológica enquanto desdobramento dos devenires virtuais velados pelas experiências coisificantes provenientes de um modo de existir fixado, onde o fluxo do possível que atualiza e potencializa é obliterado. O teatro é compreendido por ele como apresentação de novidades e não como representação do que já foi vivido.

Nessa perspectiva, a vida é teatro quando flexibiliza as identidades fixas, quando permite a emergência dos modos de estar-no-mundo que existem como virtualidades, como potenciais não atualizados devido a um meio não receptivo à sua emergência. Na ação teatral, o passado é eminentemente plástico, pois se apresenta como acontecido aberto, como um depósito de virtualidades, como brotos de existência que não floresceram devido a um solo seco, a um meio desprovido de abertura aos possíveis.

A experiência teatral constitui-se enquanto uma ação atualizante dos inúmeros modos de estar-no-mundo que existem de maneira virtual em cada identidade fixa. Segundo Fonseca (2009), esse movimento de atualização existencialmente form-ativo constitui a vivência performática, a vivência onde a plasticidade do passado é legitimada pela força do devir, a força das múltiplas possibilidades de existir adormecidas em cada existir atual, em cada existir territorializado em identidades fixas. A atualização dos modos virtuais de estar-no-mundo possibilitada pela ação teatral não é revelação de algo pronto, não é explicitação de algo já posto, mas criação de uma nova forma (DELEUZE & GUATTARI, 1996).

O teatro é a metáfora conceitual para o modo fenomenológico de existir, o modo de existir aberto às sementes de futuro enterradas em cada acontecido passado. Nesse sentido, propomo-nos a trazer uma contribuição, a partir da articulação da Gestalt-Terapia com a leitura inspirada em Nietzsche, Deleuze e o Teatro, na tentativa de explorar, percorrer linhas de pensamentos e avançar na compreensão de como o teatro enquanto instrumento terapêutico e meio aberto aos ajustamentos criativos dos organismos implicados no processo terapêutico, pode dissolver os modos de ser petrificados resultantes de "gestalts" débeis e como pode ocorrer essa dissolução libertadora dos fluxos vitais através do teatro.

Como uma psicoterapia que pretende ativar os potenciais criativos dos seus clientes pode ela mesma ter o seu potencial criativo domesticado pela ciência explicativa? Como a Gestalt-Terapia pode buscar a plasticidade dinâmica latente nas fronteiras de contato de seus pacientes se ela mesma tem a plasticidade de sua fronteira de contato enrijecida para atender as exigências de cientificidade objetificante? Como a Gestalt-Terapia pode buscar a fala plena de seus pacientes se a linguagem da própria teoria não é viva, mas fixa, morta? Como a Gestalt-Terapia pode cultivar a fluidez na prática terapêutica com seus pacientes se a linguagem de sua teoria não for ela mesma fluida, plástica, criativa?

O método cartográfico deleuziano leva-nos a um novo patamar de investigação e se faz presente em todo percurso da pesquisa bibliográfica, sobretudo em seu primeiro momento. A tensão de forças suscitada pela interrogação que parte a pesquisa em uma dimensão pré-reflexiva reside no âmago do afeto do pesquisador em encontro e confronto com seu campo, proporcionando a inauguração de um percurso que gera tanto estranhamento como familiaridade, provenientes do desdobramento do virtual, do possível, da indeterminação. A atividade criadora a partir desse pressuposto é protagonista não da busca de verdades, mas da busca de significados relevantes, processuais e transdisciplinares (DELEUZE & GUATTARI, 1996). A eclosão do novo é um acontecimento que se baseia na implicação do pesquisador no movimento dos afetos que permeiam a vida e que, portanto, sustenta este trabalho de forma metodológica.

Este trabalho utilizará o teatro como metáfora-estética como uma lente sensível ao existir fluido, uma lente capaz de captar os fluxos vitais no fundo de cada coagulação identitária que se apresenta como figura nos ajustamentos criativos trazidos pelos clientes que geram dificuldades. A clínica em Gestalt-Terapia é compreendida aqui como um lugar de experiência artística e "poiética". Iremo-nos ater à importância de pensar o teatro enquanto instrumento terapêutico na clínica gestáltica e suas possibilidades de criação de espaços que possibilitem a expressividade criativa do cliente através do teatro enquanto meio aberto a relação Eu-Tu (BUBER, 2006).

 

2 - METODOLOGIA

O artigo fundamenta-se em uma revisão bibliográfica narrativa. Tal proposta de revisão possibilita a busca e análise crítica da literatura explorada. A escolha desta estratégia de pesquisa se deu porque o objetivo do artigo é repensar a teoria que fundamenta a prática da Gestalt-Terapia a partir do teatro como metáfora-estética. A partir das leituras das obras dos autores discutidos e articulados no artigo, o teatro emerge como metáfora-estética usada para repensar criticamente a articulação entra a teoria e a prática clínica da Gestalt-Terapia.

O material de revisão foi escolhido de forma seletiva e determinada a partir do que a pesquisa pretende explorar (GIL, 2010), levando em consideração a autoridade dos autores nos conceitos explorados. Seu objetivo foi estabelecer relações entre os autores explorados na tentativa de compreender, buscar familiaridade e criar linhas de compreensão e pensamentos sobre o teatro enquanto metáfora-estética no contexto da Gestalt-Terapia.

 

3 - REFERENCIAIS TEÓRICOS

 

3.1 - A filosofia proposta por Nietzsche

A filosofia que nasce com Nietzsche no século XIX foi um divisor de águas na história do pensamento ocidental. Diferente das críticas anteriores, que buscavam substituir uma teoria do conhecimento por outra, a crítica nietzscheana não busca novos critérios de verificação da verdade, mas critica a própria noção de verdade. Segundo Machado (1999), em Nietzsche o ser humano não é mais um ser movido primariamente pela razão, e sim um ser movido por forças ativas e criativas que, quando negadas, voltam-se contra si mesmas, tornando-se forças reativas; essas forças são expressões do corpo humano como um todo e não apenas da sua mente.

Ainda conforme Machado (1999), o homem e tudo o mais que existe são expressões dessas forças, são aparências de um fluxo que a tudo move chamado por Nietzche de vontade de potência ou, na linguagem da mitologia grega, Dioniso. Como se trata de um fluxo criativo, aquilo que no mundo humano melhor lhe serve de canal é, para Nietzsche, a arte e não a ciência. Todo ser humano que lida artisticamente com a vida existe como canal das forças afirmativas, existe como ser que afirma a vida na máxima potência possível, pois cria algo novo, cria uma nova aparência, uma nova máscara para Dioniso.

Não se trata então de uma filosofia que avalia a verdade ou a falsidade de algo, mas sim de uma filosofia que busca avaliar a potência de vida presente em uma determinada forma de estar no mundo. Não é a verdade que interessa a Nietzsche, mas a intensidade vital. A vida, entendida como expressão da vontade de potência, é, acima de tudo, criação de mais vida, e tudo o que intensifica esse processo está a serviço da vida. Avaliar se uma vida é preenchida pela vontade de potência ou se a bloqueia, é avaliar se uma vida se diferencia, se uma vida encontra saídas criativas para os obstáculos que encontra em sua jornada. Viver sendo verdadeiro consigo mesmo torna-se, nessa perspectiva, viver criativamente, viver como um canal para as forças que buscam ativamente novos modos de expressão (NIETZSCHE, 2012).

Se viver verdadeiramente não é mais viver de acordo com uma essência pré-dada, visto que o núcleo da existência não é fixo, mas fluido, então viver verdadeiramente é viver "poieticamente", é viver pulsando novos estilos de vida, é viver como se a própria vida fosse uma obra de arte em progresso. A música, a poesia, o teatro e toda e qualquer forma de arte não são mais ilusões feitas para embelezar uma realidade cinza e dura, e sim aquilo que a vida tem de mais verdadeiro, a sua capacidade de se recriar e se renovar. Criar novas narrativas de vida, ficcionalizar a própria vida deixa de ser uma fuga da vida para se tornar um modo de fazer a vida fugir dos obstáculos que a emperram, que a aprisionam em formas gastas e deterioradas.

Dentre todas as formas de arte, Nietzsche escolheu o teatro grego como paradigma para o viver criativo. Através do teatro, os gregos experienciavam a vida como expressão de Dioniso: "É tradição incontestável que a tragédia grega em sua forma mais antiga, tinha como objetivo único os sofrimentos de Dioniso e que por muito tempo o único herói presente no palco foi precisamente Dioniso" (NIETZCHE, 2011, p. 79).

Viver sua própria vida como uma máscara de Dioniso é viver como uma coagulação momentânea de um fluxo que pulsa continuamente novas formas, é viver como um canal de algo que modifica constantemente aquilo mesmo que o canaliza. Viver dionisiacamente é viver como se cada momento fosse uma luta de forças que buscam criar algo novo a partir da destruição daquilo que está dado, é viver sabendo que o sofrimento é parte de uma vida que morre e renasce a cada segundo, é viver sabendo que o grau de angústia é o grau de apego às formas de existência que bloqueiam a atividade das forças, mas que são privilegiadas por serem conhecidas e, por isso, existencialmente seguras.

Viver como se a vida fosse um teatro dionisíaco é viver sabendo trocar de máscara, é viver como se a identidade fosse um improviso necessário à cena que ocorre em um determinado momento. Viver como um personagem do teatro de Dioniso é saber modificar a identidade de acordo com a mudança no fluxo das forças que borbulham por baixo dela, é saber dramatizar a batalha entre as diversas forças das mais diversas formas possíveis. Apegar-se às formas fixas, achar que uma das máscaras é a verdadeira identidade, significa bloquear o fluxo de forças, significa tornar as forças reativas em vez de ativas, significa enrijecer o canal das forças. Como o próprio canal das forças também é uma expressão das forças, enrijecer esse canal é negar a própria natureza da força enquanto força criativa, força que cria ativamente novas formas, força que modifica ativamente as formas que a expressam. Em "A gaia ciência", no aforismo 78, ele escreve:

"Foram os artistas e particularmente os do teatro que primeiro forneceram aos homens olhos e ouvidos para ver e ouvir com algum prazer aquilo que é, aquilo que viveu, aquilo que cada um desejou; foram eles que nos ensinaram primeiramente a dimensão do herói que se esconde no homem comum, eles que que ensinaram a arte de se poder ver a si mesmo como herói, a distãncia, e simplificado e transfigurado de alguma forma - a arte de se pôr em cena frente a si mesmo. É desta forma que se consegue passar por cima de alguns pormenores mesquinhos de nossa natureza. Sem essa arte viveríamos sempre no primeiro plano e inteiramente no domínio dessa ótica que faz parecer enorme o mais próximo, e o mais vulgar, como se fosse a verdade por excelência" (NIETZSCHE, 2012, p. 99).

Um saber que se pretenda ser fiel a tal visão de mundo precisa ser um saber que se pretenda sempre provisório, um saber que canaliza as forças criativas e, por isso, se permite ser modificado pelas forças mesmas que canaliza. A linguagem de tal saber precisa, então, ser mais próxima da linguagem "poiética" da arte do que da linguagem conceitual da ciência, ou melhor, a linguagem conceitual desse saber precisa ser manejada com a leveza da poesia, precisa ser sentida como uma experiência estética e não como um entendimento racional. Só uma linguagem que poetiza conceitos é capaz de captar o modo dionisíaco de viver a vida como um teatro de forças, somente um saber que dramatize os conceitos consegue ser um veículo adequado de expressão para os modos de estar-no-mundo que existem apenas como esboços por baixo das identidades rígidas.

É essa linguagem dionisíaca, híbrida de conceito e poesia, que este artigo busca expressar, para, através dela, expressar aquilo que ainda não tem palavras, aquilo que existe como sementes dormentes na vida de todos nós. É uma linguagem fenomenológica, uma linguagem que busca captar não só aquilo que é figura nos fenômenos vitais, como busca também captar aquilo que existe como pura possibilidade no fundo dos fenômenos, a vida germinal no fundo da vida enraizada.

 

3.2 - A fenomenologia e a proposta de Deleuze

O modo de conhecer fenomenológico nos coloca diante da possibilidade de descrever como ocorre a expressão das forças criativas que impulsionam a atualização dos múltiplos de modos virtuais de estar-no-mundo, os modos que existem como possibilidades ainda não atualizadas, um fundo de possíveis em cada figura coagulada em uma identidade fixa (DELEUZE, 2009). O tipo de descrição realizado pelo conhecimento fenomenológico não é um mapeamento de territórios fixos, e sim uma cartografia das linhas percorridas pela ação atualizante dos diversos potenciais de estar-no-mundo (DELEUZE & GUATTARI, 1996).

Segundo Fonseca (2016), a compreensão e a percepção são dois modos distintos de conhecer. A compreensão é ontológica, é um modo de conhecer aberto à multiplicidade de possibilidades veladas no núcleo da identidade fixada. A percepção é o modo ôntico de conhecermos, é a instalação da coisa proveniente de um saber teórico que implica uma facticidade do objeto, um entendimento do ser como ente, como coisa, um mapa de seres fixados em territórios. O modo ôntico conhece o fenômeno não a partir de como ele se revela, mas a partir de pré-conceitos que um sujeito faz sobre um objeto. Em um modo ôntico de conhecimento, a real possibilidade de conhecer é negada, pois o saber é ditado por dados pré-fixados.

O conhecimento ontológico é fenomenológico porque é um logos do fenômeno tal como ele aparece, é uma cartografia não apenas da forma fixa que aparece como figura, mas também das potências de ser outro(s) que borbulham no fundo de cada forma. Nesse sentido, a fenomenologia compreende o fenômeno de um modo estético, compreende um fenômeno como uma obra aberta à multiplicidade de sentidos, onde cada fenômeno é compreendido como um poema ou uma pintura pronta para anular seus significados prévios e restaurar o seu frescor e integridade originais produzindo novos sentidos.

"Parece evidente que a Psicoterapia não se resolve simplesmente ao nível da ciência. Isso é muito simples de entender, uma vez que a ciência humana não se resolve simplesmente ao nível da ciência, sendo fundamental nesse sentido o concurso da dimensão criativa da arte, a filosofia, e, em particular, uma certa antropologia filosófica existencialmente criativa, que não só indague e busque descobrir quem somos, mas que efetivamente nos invente e crie, segundo as demandas de nossas necessidades e a força de nossos "quereres" e de nossos possíveis, ao nível inclusive da particularidade de cada um de nós" (FONSECA, 1988, p. 132).

Assim, podemos pensar a clínica como lugar de experimentação de possibilidades, de percursos e fluxos que não são tomados somente no nível da ciência, mas, sobretudo da arte e de todos os conhecimentos de dimensões ontológicas e poéticas. Os conceitos deleuzianos de virtual e atual serão utilizados aqui para repensar os conceitos gestálticos de figura e fundo, que por sua vez, serão utilizados para repensar o virtual e o atual deleuzianos.

Podemos ler a relação entre o atual e virtual como lemos o jogo de figura e fundo da Gestalt-terapia e ler a relação figura-fundo como um processo de atualização de um fluxo de possibilidades e dissolução de atualizações por demais fixadas. Os dois pares de conceitos serão pensados, daqui para frente, de maneira entrelaçada, o que nos permitirá ler e pensar de forma criativa a atualização do virtual como criação de figuras que afirmam as potencialidades dos clientes.

O virtual é pensado neste artigo como um campo de possibilidades que ainda não foram desdobrados, como "gestaltens" abertas, como formas que ainda não se manifestaram. Todo fenômeno psíquico é pensado aqui como uma "gestalt" composta por uma figura atual e um fundo de virtualidades, de possibilidades ainda não manifestas. O fundo de uma "gestalt" porta potenciais que não foram atualizados. Esse fundo é o não-ainda do fenômeno, é o que o fenômeno pode vir a ser e não o que ele é atualmente. Toda "gestalt" contém, no fundo do seu ser, um vir-a-ser virtual que pode se atualizar como ser caso o contexto assim o permita.

A atualização do virtual desdobra não apenas algo que já estava presente desde o início, como cria algo novo. Trata-se então de um processo que é, ao mesmo tempo, revelação e criação, pois o que se explicita são esboços de formas que completam sua formação de uma maneira criativa. O fundo de possibilidades é fluido, não possui forma definida, somente esboços de figuras. A atualização desse fluxo virtual que coagula uma forma que existia como possibilidade é criativa, porque a forma que surge não estava dada por completo e estrutura seus contornos de acordo com o contexto em que surgiu. Desse modo, atualizar é também criar.

Nessa perspectiva, o papel do Gestalt-Terapeuta é propiciar um meio fértil para o florescimento das sementes de vida não vividas por seus pacientes. O Gestalt-Terapeuta não cria algo do nada e nem revela algo que já estava lá, mas cultiva junto com o cliente um solo adequado para que os germes de vida cresçam criando, nesse crescimento, novas maneiras de lidar com os obstáculos ao seu próprio crescimento. A clínica é pensada aqui como um local de partejamento que, paradoxalmente, contribuiu para criar aquilo mesmo que foi partejado, pois a relação terapêutica só parteja o que já está lá como semente. A clínica é fecunda, porque a atualização do que existe como esboço porta, no seu aspecto criativo, os traços da própria relação terapêutica.

O "setting" gestáltico contribui para a atualização das possibilidades de vida não manifestas dos seus clientes, porque funciona à semelhança de um palco teatral onde o paciente pode reapresentar seus conflitos de outras maneiras que não àquelas já vividas por ele. O "setting" não é um palco de representação do já pronto e nem um palco de apresentação do que ainda não existe, mas um palco de reapresentaçãoo do já vivido de uma outra maneira, um palco em que o ser do paciente se abre para o vir-a-ser que pulsa em seu fundo. O "setting" gestáltico é um palco teatral em que o paciente pode improvisar novos papéis que existem de maneira apenas rudimentar em sua vida. O "setting" gestáltico pode funcionar como um lugar de atualização do possível se o terapeuta tiver a sensibilidade intuitiva e o arcabouço teórico para captar as possibilidades que existem apenas como esboços no fundo das figuras manifestas.

A arte é produção pré-reflexiva, é desdobramento de uma multiplicidade de possibilidades que não se relaciona com o criado ao nível da utilidade objetificante. A criação artística é uma força originária que afirma a vida enquanto movimento de expansão, de produção de intensidades.

A arte não pretende atingir algo específico, mas nos desloca da nossa interioridade em direção ao sentido que emerge da interação com o meio. O artista mergulha no mundo sensível para captar nele o que nos escapa enquanto seres fixados, reativos, ônticos. O artista fragmenta os significados e dissolve a realidade coagulada para deixar emergir o fundo de possibilidades que apenas se insinua. Todo ser humano, aqui pensado enquanto organismo, desta maneira, é uma obra de arte em potencial. O que determinará a qualidade artística do organismo é o modo como nos relacionamos com ele. A relação ôntica o toma como um objeto fechado, pronto e acabado. A relação ontológica o encara como um mundo de possíveis, como uma matéria fluida que borbulha uma infinidade de formas outras que não aquela superficialmente perceptível.

O mesmo vale para a relação terapeuta-cliente. Seguindo a afirmação nietzscheana de estilizar a vida como uma obra de arte, o cliente é abordado aqui como fenômeno estético, como obra aberta. O cliente pode ser tomado de maneira objetificada, como um ser pronto e acabado com uma identidade fixada ou pode ser encarado como uma pulsação de devenires que lutam para quebrar a crosta identitária que bloqueia suas manifestações.

O impulso artístico existe no ser humano pelo fato dele ser uma expressão do movimento de auto-superação da própria natureza. A natureza é o artista primevo, na medida em que busca superar as formas definidas e experimenta inquietamente as mil e uma possibilidades presentes em cada forma. A natureza é movimento, é experimentação, é devir inquieto, é busca contínua de novas relações. Nesse sentido, entrar em contato com o impulso estético é entrar em contato com uma natureza que não existe como algo pronto, mas sim como disposição para experimentar formas outras de estar-no-mundo. O ser humano é um artista militante da sua zona de indeterminação.

Pensar a prática clínica em Gestalt-terapia a partir da arte teatral é um ato de resistência importante contra a fixação das relações entre nós e o meio, e um movimento de construção de saber multidisciplinar que parte da vontade de criar um outro tipo de relação com a criação, uma relação que aproxima a arte da vida cotidiana, uma relação em que a arte se confunde com a vida, uma relação em que viver é desdobrar o mundo de possíveis que faz da vida um exercício constante de criação.

 

3.3 - Interseções com o teatro no contexto psicoterapêutico em Gestalt-terapia

A Gestalt-Terapia surgiu a partir da insatisfação de Fritz Perls com sua formação psicanalítica (FADIMAN e FRAGER, 1986). A teoria de Perls contribuiu principalmente na área prática da psicoterapia. A necessidade de se desvencilhar das amarras do modelo teorético da psicanálise por uma descrença no modelo de produção de conhecimento vigente reflete o caminho que ele tentava dirigir a psicologia: a ênfase no vivencial. A proposta psicoterapêutica de Perls rompeu com a ênfase freudiana no intrapsíquico para se focar na relação do ser humano com o mundo vivido.

Para Fadiman e Frager (1986), a dualidade entre mente e corpo proposta por estudos que abrangiam o ser humano através de uma proposta inteiramente racional, que privilegiava somente o entendimento do ser humano a partir de uma abordagem cientifico-natural-mecanicista, levou Perls a se associar a corrente existencialista. O existencialismo, a partir dessa premissa, pensa que o homem só pode ser compreendido a partir da própria descrição direta de sua experiência, da sua descoberta singular do mundo. Nessa perspectiva, o encontro entre terapeuta e paciente se dá em um contexto existencial de possibilidades que circundam os mundos singulares e o mundo compartilhado dos dois seres. Essa ideia levou à afirmação de que organismo e meio funcionam como codeterminantes e se retroalimentam.

O mundo deixa de ser uma totalidade abstrata para ser um mundo-vida, um mundo experienciado a partir da fronteira de contato com um ser humano singular. E o ser humano se torna um ser singular ao constituir uma fronteira que o delimita, que lhe dá sua forma específica. Se é a fronteira que delimita o ser, então ela também é a chave para romper com as limitações que bloqueiam as modificações na forma de estar-no-mundo. A fronteira não é fixa, não é estanque, mas sim um espaço de troca e de diálogo. Mudar um modo de existir requer, então, não só mudar o intrapsíquico, mas principalmente mudar o modo de relação de alguém com o mundo-vida, mudar o estilo de contato com o mundo vivido por alguém. A fronteira de contato pode ser dinâmica, criativa, ou pode ser fixa, coagulada, paralisante. Nessa perspectiva, a Gestalt-terapia é o estudo dos ajustamentos criativos de um sujeito, o estudo dos modos como um ser humano utiliza sua fronteira de contato para se modificar e modificar o mundo de maneira criativa ou destrutiva (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997).

A publicação em 1946 do livro "Gestalt Therapy", escrito por Perls em parceria com Ralph Hefferline e Paul Goodman, marcou o início dessa abordagem psicoterapêutica. Para Ribeiro (1985), podemos sistematizar os pressupostos filosóficos que fundamentam a noção de homem e de mundo na Gestalt-terapia a partir do Humanismo, Existencialismo, Psicologia da Gestalt, Teoria de Campo, Teoria Organísmica, Teoria Holística e Fenomenologia. Além das influências descritas pela literatura tradicional acadêmica, é preciso ressaltar as influências artísticas para compreendermos como a teoria da Gestalt-Terapia é pensada em categorias usualmente ligadas a arte, refletindo sua ação essencialmente vivencial (ALVIM, 2014).

Segundo Suassuna & Holanda (2009), são os principais formuladores da Gestalt-Terapia sempre estiveram intensamente envolvidos com a arte. Ralph Hefferline era professor de psicologia na Universidade de Columbia, foi paciente de Fritz Perls e participou de seus grupos de estudo. Paul Goodman foi sociólogo, escritor, professor pela Universidade de Chicago e possuía uma forte atitude política de orientação anarquista.

"Os amplos conhecimentos e vivências de Goodman em vários campos como politica, arte, sociologia, economia, aliados a sua participação intensa nos grupos de vanguarda, também contribuíam para a constituição desse fundo que sustenta a Gestalt-terapia e que reflete, em sua forma, um espírito moderno, identificado com a ação de vanguarda, quando enfatiza a experiência no mundo, a contingência, a diferença e o improviso criativo na criação de novos significados para existência" (ALVIM, 2007b, p. 21).

As próximas linhas irão rememorar o impacto que o teatro expressionista alemão de Max Reinhardt teve na vida de Perls para, partindo desse impacto, repensar e resgatar o potencial subversivo ainda presente nos primeiros anos da prática da Gestalt, e que se encontra em risco devido às exigências de cientificidade a qual ela teve de se submeter ao adentrar nos círculos acadêmicos.

No início da adolescência, Perls foi matriculado em uma escola de educação liberal onde se envolveu com aulas de teatro. Posteriormente, Fritz vai para o "Deutsch Theather", onde conhece Max Reinhardt, um dos grandes expoentes do expressionismo alemão no teatro (PERLS, 1979). O teatro de Max Reinhardt enfatizava a expressividade e a singularidade da interpretação. Suas peças buscavam reduzir o espaço entre ator formal e o público, afirmando, então, que o teatro não era propriamente uma arte de um palco separado do seu público, mas que todos nós somos artistas e atores.

O caráter existencial da proposta de Reinhardt estava iminentemente presente, uma vez que tanto atores como público são tomados enquanto artistas em ação performática. O estilo de Reinhardt influenciou fortemente Fritz e consequentemente a Gestalt-Terapia. Com Reinhardt, o teatro se torna um lugar de apresentação e não de representação, pois a presença espontânea e singular do ator enfatiza a comunicação dialógica, o ritmo de criação de formas decorrente do movimento da presença dos envolvidos e nos aponta para um percurso saudável da ação criativa em curso que afirma diferenças e forças. Legitimando tal influência Fritz, em sua autobiografia, descreve Reinhardt como gênio criativo (PERLS, 1979).

A psicoterapia em Gestalt-Terapia busca estar atenta à espontaneidade do gesto e da presença das pessoas envolvidas, a musicalidade da presença atual, o ritmo de criação de formas que nos constitui enquanto estrutura orgânica em relação com o mundo. O fundo estético da Gestalt-Terapia influenciada pela concepção de um homem artístico, seja a partir de seus pressupostos filosóficos ou da influência pessoal de seus fundadores, nos impõe um nexo importante entre psicoterapia e arte.

O teatro expressionista de Reinhardt, que influenciou Perls e marcou fortemente a epistemologia da Gestalt-terapia, nos coloca diante da compreensão de que a interação dos atores com o publico no teatro é uma nuance do tipo de relação terapêutica proposta pela Gestalt-terapia, onde a experiência se dá a partir do encontro e confronto do eu com o tu no campo organismo-meio a fim de buscar uma Gestalt Vigorosa, com brilho, ritmo e musicalidade.

Apesar de ter sua importância diminuída na literatura mais "científica", as influências teatrais de Perls são essenciais tanto para compreendermos o surgimento da Gestalt-Terapia, como para captarmos a prática cotidiana da psicoterapia gestáltica em toda a sua potência. A busca das influências teatrais da Gestalt-Terapia está a serviço da busca de uma matriz teórica não só científico-conceitual, mas também metafórico-estética.

A psicoterapia não pode ser abarcada somente pelo nível da ciência, porque a existência humana não pode ser captada pura e simplesmente pela linguagem conceitual da razão. Por isso, é fundamental a aliança com a linguagem "poiética" da arte. Somente uma psicoterapia que existe enquanto híbrido de ciência e arte é capaz de expressar aquilo que escapa à razão e existe como o possível no fundo das figuras já familiares e conhecidas. Essa psicoterapia híbrida flui entre o científico e o estético, pois busca não só descobrir quem somos, mas busca atualizar aquilo que ainda não somos, busca servir de estufa para os germes de vida que ainda não encontraram um solo adequado para florescerem.

Este artigo tem como objetivo contribuir para a criação dessa psicoterapia fenomenológica, esse saber aliado das forças que nos recriam e reinventam, uma psicoterapia do possível, do virtual, do "não-ainda", uma psicoterapia do infantil, uma psicoterapia daquilo que ainda não cresceu e espera apenas um continente para se efetivar no mundo. Uma psicoterapia das potências.

Podemos pensar, então, a psicoterapia como um lugar "poiético", onde a ambiência a partir dos pressupostos filosóficos da abordagem gestáltica com sua dimensão artística promove encontros e confrontos, criação de significações através de percursos onde fluxos de desconstruções e ressignificações da palavra e do silêncio, da vivência do desdobramento do possível e da atualização de formas, possibilitam experiências "poiéticas" no fazer de uma clínica estética. Nessa perspectiva, a psicoterapia enquanto espaço de elaboração sócio-cultural, se desterritorializa do seu enclausuramento institucional com suas relações de poder e sua herança positivista, em busca da afirmação das potencialidades e das diferenças que pulsam em toda forma de existência.

Essa busca do "poiético", do criativo é tanto estética quanto ética, é uma ética-estética das diferenças que forçam a casca das formas gastas, das diferenças que racham as cascas das formas enrijecidas de estar no mundo. Essa psicoterapia fenomenológica é uma ética-estética que parteja novos modos de existir, que enxerga na angústia existencial dos pacientes as dores do parto de novas formas de existência, de diferenças que virão à luz do dia se encontrarem um ambiente acolhedor e receptivo. Prover um ambiente receptivo ao criativo de cada existência é parte dessa ética-estética que esse artigo busca esboçar.

A experiência gestáltica de arte é um acontecimento que possibilita a compreensão de configurações totais, expressões de modos de existir que não foram atualizados pelo organismo. A vivência performática, a criação de formas de arte bem como sua dissipação, permitem que novas formas se configurem, criando um universo que afirma a vivência plena dos processos de constituição. É a partir dessa compreensão da arte como expressão do que existe como possibilidade de estar-no-mundo à espera de atualização, que o nexo entre o fazer arte e o fazer terapêutico se estabelece (RHYNE, 2000).

"A experiência gestáltica de arte, então, é o seu eu pessoal complexo fazendo formas de arte, envolvendo-se com as formas que você esta criando como fenômenos, observando o que você faz, e, possivelmente, espera percebendo por meio de suas produções gráficas não apenas como você é agora, mas também modos alternativos que estão disponíveis para que você possa se tornar a pessoa que gostaria de ser" (RHYNE, 2000, p. 44).

O nexo a partir dos pressupostos filosóficos e epistemológicos de Nietzsche e Deleuze articulados com a Gestalt-Terapia esmiuçados no presente artigo e a importância dos trabalhos de RHYNE (2000) em Arte e Gestalt levam-nos a observar a importância da construção de referenciais terapêuticos na prática clínica. Em Gestalt-Terapia, a noção de que o todo é maior que a soma das partes, nos leva para o foco na totalidade da experiência bruta, na Gestalt total que exprime padrões e que o entendimento intuitivo torna-se ativo na medida em que ampliamos nosso entendimento e realizamos uma integração dos nossos afetos e sensações.

A linguagem das formas que sustenta a prática clínica em Gestalt-Terapia nos coloca entre a estreita relação da restrição e ampliação. O jogo de formação de figuras e fundos a partir de possibilidades emprestadas pelo meio é condicionado por vezes de forma rígida, gerando dificuldades. Movermos ao redor da forma como uma espécie de dança que percorre todos os seus lados nos dificulta a distorção de uma imagem toda, de uma Gestalt débil. A experiência gestáltica da arte nos permite a relação com um todo, e a criação de um estilo, a diferença que brilha em cada ação atualizante e afirmativa.

O teatro, então, é tomado como metáfora conceitual nesse contexto para pensarmos a linguagem das formas, próprio da Gestalt-terapia, o jogo de formação de figura e fundo. Pensado a partir da ideia do virtual e atual em Deleuze, onde o virtual é o fundo, o lugar de indeterminação, do que ainda não é, de possibilidades de criação de "gestalts", onde são gerados os possíveis que partejam novos modos de estar no mundo. A figura se cria no âmbito da atualidade que, da coagulação e da fixação de um significado gerado a partir da relação com o campo e o desdobramento visual.

Entendemos que, dentro da perspectiva da Gestalt-Terapia, o modo de sermos "atuais" é tomado como lugar de saúde se preservar o frescor da alternância dessas dimensões, ontológico e ôntico. O modo sermos fenomenológicos que sustenta epistemologicamente nossa prática nos fornece a fonte da possibilidade de nos presentificarmos no instante vivencial, preservando a qualidade da presença que esta diretamente relacionada com a capacidade de atualizarmos nossa presença, em uma espécie de desencantamento do que se tornou facticidade, criando um fluxo de desdobramento de virtualidades.

O teatro como arte trabalha o fundo que existe enquanto esboço. O fundo, enquanto multiplicidade de possibilidades do que não está pronto, encontra lugar para realização do potencial do humano não atualizado a partir da ambiência performativa que o teatro proporciona. A prática clínica em Gestalt-Terapia é tomada nessa perspectiva como um lugar de performatividade teatral, de atualização de formas a partir da experiência de arte em Gestalt, iminentemente criativa. Quando protoformas presentes no fundo se torna figura é um acontecimento que tanto é explicitação quanto criação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos em Nietzsche que o teatro grego enquanto paradigma do viver criativo nos colocou diante da perspectiva do teatro dionisíaco como modo de dramatização das batalhas entre as forças das possibilidades de formas, negando o enrijecimento dos canais criativos, e tornando fluido nosso jogo de máscaras, afirmando sua força criativa que gera novas formas e expressam sua natureza. Apontamos a partir desses pressupostos que a prática em Gestalt-Terapia é criar ambiência onde nossas máscaras possam se alternar de forma fluida, preservando nossa intensidade vital no curso de atualização do que chamamos de virtual a partir de Deleuze.

A busca das influências teatrais para a Gestalt-Terapia está a serviço de uma matriz metafórico-estética que afirma a ética vivencial dessa psicoterapia fenomenológica. A performatividade teatral presentifica o instante, e a figura que se cria no âmbito da atualidade desencanta o "fato", o modo "coisa" de nós sermos, criando linhas e fluxos que afirmam um campo poético onde somos tomados enquanto artistas acontecendo a partir de um campo de virtualidades.

É a partir dessa leitura do cliente enquanto artista em performatividade que nos compreendemos também como um processo explicitação e criação de nós mesmos, como obra de arte aberta acontecendo com o outro. Buscar compreender a Gestalt-Terapia a partir da plasticidade dinâmica latente nas fronteiras de contato dos clientes significa preservar o frescor do jogo de formação de figura e fundo, o que corresponde a uma ética do vivencial a ser considerada e discutida em nossa prática.

A utilização do teatro como metáfora para o processo psicoterpêutico abre a Gestalt-Terapia para o fundo criativo latente no homem enquanto organismo, mas exige, em contrapartida, a abertura da linguagem ao seu fundo poético, exige que a teoria se abra ao poema das dores, angústias e descobertas que ocorrem no encontro Eu-tu. Uma teoria que utilize o teatro dionisíaco como metáfora perspéctica não pode, ela mesma, ser imune às potências estéticas, criativas, que pulsam naquilo que ela tenta captar. Por isso, a escrita deste artigo se fez também como um experimento de criação estética, um exercício de atualização das possibilidades outras de compreensão da própria teoria da Gestalt-Terapia.

 

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NOTAS

* Clarissa Ribeiro Barreto - Psicóloga Clínica, com formação em Gestalt-Terapia pela Escola Experimental de Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico Existencial, Gestalt-Terapia e Abordagem Rogeriana. Formação em Arte Terapia e especializanda em Saúde Mental pela Universidade Estadual do Ceará. Estudos Voltados para a interlocução da psicologia com a arte.

 

Endereço para correspondência
Clarissa Ribeiro Barreto
Endereço eletrônico:claarissabarreto@hotmail.com

 

Recebido em: 17/10/2016
Aprovado em: 28/05/2020