ARTIGO

Identidade, Sexualidade e Contemporaneidade

Irma de Assis



RESUMO

"Sem dúvida, é preciso reconhecer que o pudor, o desejo, o amor em geral têm uma significação metafísica, quer dizer, que eles são incompreensíveis se tratamos o homem como uma máquina governada por leis naturais, ou mesmo um "feixe de instintos", e que eles concernem ao homem enquanto consciência e enquanto liberdade" (Merleau-Ponty) . Vivemos numa sociedade que enquadra o homem em escaninhos, em padrões de comportamentos, submetendo-o a valores sociais, morais e religiosos para defini-lo genericamente, facilitando o surgimento de um viver neurótico.Antes de sermos homem ou mulher, somos seres humanos e, como tal, temos sede de liberdade e sede de pertencer. Existimos sob esses dois aspectos ao mesmo tempo de uma forma inextricável: somos no mundo e somos do mundo.Para ser um corpo sexuado, precisamos, antes, ser um SER. Toda atitude humana precisa e tem um sentido próprio que constrói a identidade de quem a vive e necessita de um discurso pessoal que expresse, através de seus atos e palavras, seus sentimentos e significados mais profundos, capaz de tecer e construir seu próprio discurso afetivo, seu próprio ideal de encontro amoroso entre diferentes seres que somos.


O tema-título deste fórum ecoa em mim com intensidade. Venho me deparando com inúmeras questões deste teor não só no consultório, em conversas com meus clientes, bem como no desenrolar da minha vida.

Podemos enviar naves as estrelas e pesquisar o interior da célula humana e, no entanto, não conseguimos ser vistos e aceitos na integridade de quem somos, nem acompanhados na exploração de um desejo pessoal. Travestimo-nos naquilo que nos disseram que é aceitável, e seguimos em frente com um arremedo de felicidade, de realização. Mas no mais recôndito de nós mesmos, choramos nossas perdas. Perdas do que poderíamos ter sido mas que se esfumou de tal forma que não conseguimos, hoje, reconhecer. Não sabemos quem poderíamos ser e não validamos quem somos. Somos levados pela vida mas nos perdemos dela, visto que não conseguimos mais estabelecer contato com quase nada, pois, pouco a pouco vamos nos transformando em fantoches vazios, que precisam responder e falar, mas que perderam a voz própria. Passamos a ser atropelados e a atropelar, pensando que isto é viver. O medo nos toma, o vazio nos engolfa, mas nos cobramos estar bem, equilibrados, arrojados, realizados. É um paradoxo que nos mata pouco a pouco, nos asfixia. Não temos liberdade nem para temer.

Estamos fechando um século no qual o desenvolvimento do saber, tanto científico quanto tecnológico e humanístico, atingiu velocidade ímpar na história do ser humano. A necessidade de adaptação às novas descobertas está exigindo do homem uma transformação de si, do seu mundo, da sua cultura, de seus valores e de tudo o mais.

Esta transformação vem sendo “imposta”, afastando o homem do seu movimento natural de, ao se defrontar com o novo e sofrer seu impacto, examinar, experimentar, questionar e criar uma nova maneira de ser frente a este novo. Para isso ele precisaria de tempo, mas esse tempo, cada vez é mais curto e nos é dito que não é necessário. Nós nos dizemos!

O ser humano se faz tanto no movimento e na dinamicidade do encontro, quanto no recolhimento e no silêncio de si mesmo. Sua adaptação à nova realidade precisa desses dois momentos e se dá na área da liberdade. Liberdade de criar uma nova e original maneira de ser, com novos parâmetros e valores próprios.

O mundo natural é o lugar de todos os temas e de todos os estilos possíveis.

Porém, afastamo-nos cada vez mais desse mundo natural, desse ser natural, dessa dinâmica processual de re-criação ou re-constituição do homem e do mundo.

São tantas as informações, tantas as mudanças, tantas as novidades com suas respectivas exigências de resposta que o homem vem se sentindo inseguro. Essa insegurança, entretanto, não é a insegurança saudável do ser frente ao desconhecido. Saudável, no sentido de que é importante não estarmos ancorados, mas livres para sentir, decidir, escolher. Nada deveria limitar nossa liberdade, senão aquilo que ela mesma determinou como limite para sua iniciativa no mundo e em mim mesmo. Há um acreditar, neste caso, na nossa própria capacidade, apesar de nos vermos soltos, de nos sentirmos um ser de inúmeras possibilidades, ao revelar e concretizar o mistério que temos e descobrimos em nós, no encontro com o outro no mundo. Esta insegurança é necessária e essencial à nossa atualização. Ela nos lança em direção de nossa intencionalidade.

No entanto, a insegurança que vem se instalando é limitante e impeditiva. Sentimo-nos acachapados pelos novos conceitos e idéias. Estes não são nossos e nem conseguimos tomar posse deles, nem de nós. Não conseguimos acompanhar o ritmo imprimido à vida pelo social. Afastamo-nos de nós mesmos, de nossas necessidades, de nossos sentimentos e de nossos questionamentos na tentativa de acompanhar este ritmo. Tentamos nos certificar do que deve ser, de como devemos sentir, de como devemos agir, abandonando, pelo medo de não ser aceito, de ser excluído, a possibilidade de individuação, de construção da nossa identidade. Passamos a ser “politicamente corretos”, existencialmente, como se isto fosse possível.

Morremos cada vez mais para nós mesmos e passamos a viver para o mundo e no mundo do jeito que achamos que o mundo vai nos acolher, nos aceitar. Tornamo-nos reféns deste mundo que nos cobra, oprime, amedronta. Culpamos o mundo, a sociedade, e esquecemos que nós somos e fazemos a sociedade e o mundo, e, mudando-os na medida em que assumimos o nosso existir. O homem se faz no mundo e ao mesmo tempo faz o mundo. A partir do momento em que assume a sua existência, o homem adquire poder sobre o mundo, pois influencia e modifica o que o cerca pela originalidade da sua identidade. Identidade, esta, que também se desenvolve, deixa sua marca e se vê marcada.

Temos construído uma sociedade que é cruel, desrespeitosa e preconceituosa a qual enquadra o homem em escaninhos, em padrões de comportamentos, submetendo-o a valores sociais, morais e religiosos que raramente correspondem à real necessidade do indivíduo, da pessoa. Cada vez mais, ao sermos tão desrespeitados, caminhamos pela senda da neurose. Não conseguimos saber quem somos, do que precisamos, o que queremos. Somos abandonados e nos abandonamos. Temos sede de encontrar, de pertencer, de estar com o outro. Mas o homem não é mais um EU, não tem uma identidade própria que permitiria o encontro. Só um ser encontra outro.
Não podemos nos definir sexualmente, afetivamente e amorosamente se antes não somos. É inconcebível como nos fragmentamos e nos perdemos.

Quem é o HUMANO hoje? Este ser precisa se fazer de acordo com os padrões já pré-estabelecidos.

Quantas vezes não tenho escutado: ”...tenho tudo, sou inteligente, bonito ou bonita, saudável, realizado profissionalmente, tenho um bom casamento, meus filhos tem saúde, vão bem na escola, tenho uma bela casa, tenho amigos, tenho reconhecimento, mas... me sinto vazio. Não tenho, nem sinto vontade de nada. Faço as coisas e vivo porque tenho que levar avante. Não sei o que tem de errado comigo, pois não tenho do que reclamar”.

Nessas falas não há validação nem à própria queixa, nem à própria dor, uma vez que a pessoa não consegue entender em que errou, pois seguiu todos aqueles parâmetros impostos claramente ou sutilmente, pelo social.

Muitos, por não estarem acostumados, espantam-se por me perceberem atenta, escutando, acompanhando, curiosa de tentar junto com eles, descobrir onde se perdeu o fio de sua vida. É isto que muitas vezes acontece conosco, seres humanos: perdemos o fio de nossas vidas, de nossa identidade e nos misturamos, nos amalgamamos ao geral, ao nada, ao sem sentido, ao sem significado. Transformamo-nos na concretização perfeita que valida o pré-conceito. Ao abrirmos mão da nossa identidade, do ser diferente, do ser único, do escolher o meu vir-a-ser, perco contato com a minha motivação intrínseca. Meu elam vital esvai-se.

Na atualidade, presenciamos o surgir de vários movimentos: como o da emancipação da mulher, da defesa da criança, dos idosos, dos homossexuais e das minorias de modo geral.

Venho me perguntando quando surgirá o movimento pela validação do ser humano, pela legitimação da real e verdadeira escolha do si fazer. Isso porque temos regras e paradigmas para tudo, até para ser livre.
Uma mulher emancipada precisa obedecer e preencher uma série de requisitos. Não há liberdade nem espaço para que ela construa a mulher emancipada que ela quer e pode ser.

Raramente se pergunta ao idoso o que ele precisa ou qual a sua percepção sobre o que vai melhor atender ao seu viver bem e realizar sua humanidade. Existem programas "perfeitos" para os idosos, só que planejados pelos mais jovens.

E a criança? Quem é ela? Ela não sabe nada, não tem o acúmulo de experiência que nós adultos temos, por isso nós a defendemos dos perigos ( que nós entendemos como perigo ) e planejamos suas vidas, ignorando suas aspirações e desejos.

Ao homossexual é dado o direito de existir, mas dentro de determinados limites. Ele pode deixar de se enquadrar nos padrões heterossexuais, mas não tem a liberdade de construir a sua sexualidade, pois precisa se enquadrar nos padrões de comportamentos ditos homossexuais.

Nós, a sociedade, nos damos um simulacro de liberdade, um simulacro... de direito, um simulacro... de respeito. Sem espaço para expressão pessoal dos afetos, sentimentos e significados mais profundos e pessoais. Construímos pequenos e estreitos guetos para todos. A vida precisa se particularizar em sendas autônomas, que se atraem, se encontram, mas que não se percam em generalidades.

É importante que possamos nos libertar dos papéis e paradigmas que concernem e caracterizam o homem ou a mulher, para que possamos nos abrir para a construção deste humano-homem ou desta humana-mulher e suas formas particulares de ser, incluindo sua sexualidade. Todas as manifestações do humano têm uma significação metafísica quando transcende ao comum, ao geral e se focalizam no questionar, no procurar do ser pelo próprio ser, com o propósito de se realizar, enquanto uma consciência, enquanto ser que se identifica.

Para se assumir como um corpo sexuado, o homem precisa, antes, se assumir como ser que se faz, como ser que escolhe, como ser que tem um sentido próprio, que constrói a identidade de quem vive e necessita de um discurso pessoal que expresse, através de seus atos e palavras, seus sentimentos e significados mais profundos, capaz de tecer e constituir seu próprio discurso afetivo, seu próprio ideal de encontro amoroso entre diferentes seres que somos.


BIBLIOGRAFIA


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