ARTIGO

Psicologia clínica entre ênfases e especialismos: A responsabilidade da clínica na formação de psicólogos


Clinical psychology between enphases and specialisms : Liability of clinical psychologists in formation


Agnes Cristina Da Silva Pala

Endereço para correspondência:



Resumo

O presente texto aborda o título de especialista através de uma contextualização histórica do surgimento da Psicologia enquanto profissão em 1962; da elaboração das Resoluções sobre o Título de Especialista do Conselho Federal de Psicologia e, de uma reflexão sobre a intencionalidade de se buscar uma especialização.

Palavras-Chave: Psicologia Clínica; Especialismo; Ética Profissional; Legislação.


Abstract :This paper addresses the specialist title through a historical overview of the emergence of psychology as a profession in 1962, drafting of resolutions on the Title of Specialist of the Conselho Federal de Psicologia, and a reflection on the intention of pursuing a specialization.


Keywords: Clinical Psychology; Specialism; Professional Ethics; Legislation.



Introdução

O Conselho Regional de Psicologia sente-se honrado em participar desta Mesa e, em trazer algumas questões para a reflexão com a Categoria.

O título suscita, no mínimo, dois modos de abordagem: aspecto do especialismo na formação do psicólogo / psicólogo clínico e; responsabilidade e importância da clínica na formação – o que também faz pensar os especialismos.

Pensar sobre o especialismo na formação do psicólogo remete à importância de conhecer a trajetória histórica da profissão de psicólogo. A Lei Federal nº 4119, de 27 de Agosto de 1962, dispõe sobre os cursos de formação em Psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo, destacando o

“Capítulo III ‘Dos direitos conferidos aos diplomados’:
Art.13 - Ao portador do diploma de psicólogo é conferido o direito de ensinar Psicologia nos vários cursos de que trata esta lei, observadas as exigências legais específicas, e a exercer a profissão de Psicólogo.
§ 1º- Constitui função privativa do Psicólogo a utilização de métodos e técnicas psicológicas com os seguintes objetivos:
a) diagnóstico psicológico;
b) orientação e seleção profissional;
c) orientação psicopedagógica;
d) solução de problemas de ajustamento.
§ 2º- É da competência do Psicólogo a colaboração em assuntos psicológicos ligados a outras ciências.”


E, no Capítulo VI “Disposições Gerais e Transitórias”,

“Art.19 - Os atuais portadores de diploma ou certificado de especialista em Psicologia Educacional, Psicologia Clínica ou Psicologia Aplicada ao Trabalho expedidos por estabelecimento de ensino superior oficial ou reconhecido, após estudos em cursos regulares de formação de Psicólogos, com duração mínima de quatro anos ou estudos regulares em cursos de pós-graduação com duração mínima de dois anos, terão direito ao registro daqueles títulos, como Psicólogos, e ao exercício profissional.”

Os dois artigos apontam uma prática psicológica com ‘especialismos’ e ‘especificidades’ e, o §2º do Artigo 13 desvela a possibilidade de interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade da Psicologia. Esta possibilidade é a abertura para novas práticas da Psicologia enquanto ciência. Sutilmente, a profissão nasce plural em termos de campos de atuação.

Em 20 de Dezembro de 1971, é sancionada a Lei Federal nº 5766, criando o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e os Conselhos Regionais de Psicologia (CRP). Nesta Lei, o que é importante frisar é o Capítulo IV “Do exercício da Profissão e das Inscrições”, especialmente os Artigos 10 e 11 que versam, respectivamente, sobre a obrigatoriedade do profissional de psicologia se inscrever em um Conselho Regional e, das categorias dos registros:

“Art. 10 - Todo profissional de Psicologia, para o exercício da profissão, deverá inscrever-se no Conselho Regional de sua área de ação.
Parágrafo único - Para a inscrição é necessário que o candidato:
a) satisfaça às exigências da Lei n.º 4.119, de 27 de agosto de 1962;
b) não seja ou esteja impedido de exercer a profissão;
c) goze de boa reputação por sua conduta pública.
Art. 11 - Os registros serão feitos nas categorias de Psicólogo e Psicólogo Especialista.”

Destaca-se a “boa reputação” que o candidato deveria comprovar ao inscrever-se no CRP – o panorama político está declaradamente exposto no registro de profissionais em seus Conselhos Profissionais. E, nas categorias para registro, observa-se ‘psicólogo e psicólogo especialista’, apontando para o Especialismo.

Ressalta-se que, nesta Lei, há o esboço de um código de ética profissional no Capítulo VII “Da Fiscalização Profissional e das Infrações Disciplinares” – sendo que o Artigo 26 aborda as infrações disciplinares e, dos Artigos 27 ao 32 sobre as penalidades e aplicação destas aos ‘infratores’.

“Art. 26 - Constituem infrações disciplinares além de outras:
I - transgredir preceito do Código de Ética Profissional;
II - exercer a profissão quando impedido de fazê-lo, ou facilitar, por qualquer meio, o seu exercício aos não inscritos ou impedidos;
III - solicitar ou receber de cliente qualquer favor em troca de concessões ilícitas;
IV - praticar, no exercício da atividade profissional, ato que a lei defina como crime ou contravenção;
V - não cumprir, no prazo estabelecido, determinação emanada do órgão ou autoridade dos Conselhos em matéria da competência destes, depois de regularmente notificado;
VI - deixar de pagar aos Conselhos, pontualmente, as contribuições a que esteja obrigado.
Art. 27 - As penas aplicáveis por infrações disciplinares são as seguintes:
I - advertência;
II - multa;
III - censura;
IV - suspensão do exercício profissional, até 30 (trinta) dias;
V - cassação do exercício profissional, "ad referendum" do Conselho Federal.
Art. 28 - Salvo os casos de gravidade manifesta, que exijam aplicação imediata da
penalidade mais séria, a imposição das penas obedecerá à graduação do artigo anterior.
Parágrafo único - para efeito da cominação de pena, serão consideradas especialmente graves as faltas diretamente relacionadas com o exercício profissional.
Art. 29 - A pena da multa sujeita o infrator ao pagamento de quantia fixada pela decisão que a aplicar, de acordo com o critério da individualização da pena.
Parágrafo único - A falta do pagamento da multa, no prazo de 30 (trinta) dias da notificação da penalidade imposta, acarretará a cobrança da mesma por via executiva, sem prejuízo de outras penalidades cabíveis.
Art. 30 - Aos não inscritos nos Conselhos que, mediante qualquer forma de publicidade, se propuserem o exercício da Profissão de Psicólogo serão aplicadas as penalidades cabíveis pelo exercício ilegal da Profissão.
Art. 31 - Compete aos Conselhos Regionais a aplicação das penalidades cabendo recurso, com efeito suspensivo, para o Conselho Federal, no prazo de 30 (trinta) dias da ciência da punição.
Art. 32 - Os Presidentes do Conselho Federal e dos Conselhos Regionais têm qualidade para agir, mesmo criminalmente, contra qualquer pessoa que infringir as disposições da lei e, em geral, em todos os casos que digam respeito às prerrogativas, à dignidade e ao prestígio da Profissão de Psicólogo.” (Lei Federal nº 5766/1971)

E, ao observar o recorte histórico-político do país à época do primeiro Código de Ética do Profissional Psicólogo – datado de 02 de Fevereiro de 1975 – provoca-se, inevitavelmente, uma reflexão sobre a responsabilidade da prática profissional. Esta reflexão traz o pensar sobre os cursos de graduação e sua extrema importância enquanto “provocadores” e “instigadores” dos futuros profissionais e, ao remeter à época histórica do país em que a profissão é regulamentada, o CFP e CRPs são criados, percebe-se a tendência controladora e normatizadora que a Psicologia estava sendo “enquadrada”.
Porém, vivenciados 50 anos da regulamentação da profissão e 37 anos do primeiro Código de Ética, o que mudou quando se pensa em formação do psicólogo, ainda na graduação e, na busca do profissional por uma especialização ? Cabe planejar e praticar um investimento na formação acadêmica em que se possa questionar e refletir as necessidades dos especialismos na prática profissional. Até que ponto fechar-se em um generalismo e, até que ponto, fechar-se em um especialismo ?

Neste momento, cabe fazer uma reflexão sobre a necessidade da técnica no mundo e, a contribuição do filósofo Martin Heidegger (1889 - 1976), no texto “Serenidade”, ao desvelar uma possibilidade de sentido reflexiva e meditativa em ‘dizer sim e não à técnica’: “Gostaria de designar esta atitude do sim e não simultâneos em relação ao mundo técnico com uma palavra antiga: serenidade frente às coisas (die Gelassenheit zu den Dingen)”. (Heidegger, 2000, p. 24). Há momentos que a técnica e o especialismo são necessários e, há momentos em que podem ser dispensados, compreendendo que este ‘dispensar’ não é sinônimo de exercício de práticas não reconhecidas cientificamente pela Psicologia Brasileira. Neste sentido, também remete-se à citação de Heidegger para desvelar o compromisso com a profissão, no que tange o Artigo 1º, alínea ‘a’ e do Princípio Fundamental IV do Código de Ética do Profissional Psicólogo (Resolução CFP nº 010/2005):

Art. 1º – São deveres fundamentais dos psicólogos:
a) Conhecer, divulgar, cumprir e fazer cumprir este Código;
Princípio Fundamental IV. O psicólogo atuará com responsabilidade, por meio do contínuo aprimoramento profissional, contribuindo para o desenvolvimento da Psicologia como campo científico de conhecimento e de prática.


Portanto, faz-se alusão ao profissional cumprir as Resoluções que norteiam o exercício profissional e que complementam o Código de Ética – é o “dizer sim” – ; já o “dizer não” compete ao questionamento reflexivo e embasado em estudos e pesquisas sobre o porquê de determinadas práticas não serem psicológicas e, de outras práticas terem contribuições para a Psicologia enquanto ciência mas, que ainda, não possuem conhecimento cientificamente psicológico elaborado.

Em 20 de Dezembro de 2000, o Conselho Federal de Psicologia Institui o título profissional de Especialista em Psicologia e dispõe sobre normas e procedimentos para seu registro através da Resolução CFP nº 014/2000. Nesta Resolução são listadas nove Especialidades:

“Art. 3o – As especialidades a serem concedidas são as seguintes:
- Psicologia Escolar / Educacional;
- Psicologia Organizacional e do Trabalho;
- Psicologia de Trânsito;
- Psicologia Jurídica;
- Psicologia do Esporte;
- Psicologia Hospitalar;
- Psicologia Clínica;
- Psicopedagogia;
- Psicomotricidade.”

Em 14 de Junho de 2003, o Conselho Federal de Psicologia, em sua Resolução CFP nº 005/2003, reconhece a Psicologia Social como especialidade em Psicologia para finalidade de concessão e registro do título de Especialista. Em 03 de Março de 2004, é reconhecido a Neuropsicologia como especialidade em Psicologia, através da Resolução CFP nº 002/2004. Em 14 de Setembro de 2007, a Resolução CFP nº 013/2007 é uma Consolidação das Resoluções relativas ao Título Profissional de Especialista em Psicologia e dispõe sobre normas e procedimentos para seu registro.

A importância da formação continuada, da atualização e do aprimoramento da prática profissional é um compromisso ético. Neste sentido, pensar a especialização como um espaço de continuidade e aperfeiçoamento da formação profissional é, inclusive, cumprir o Código de Ética, remetendo ao Princípio Fundamental IV supracitado e ao:

“Art. 1º – São deveres fundamentais dos psicólogos:
b) Assumir responsabilidades profissionais somente por atividades para as quais esteja capacitado pessoal, teórica e tecnicamente;
c) Prestar serviços psicológicos de qualidade, em condições de trabalho dignas e apropriadas à natureza desses serviços, utilizando princípios, conhecimentos e técnicas reconhecidamente fundamentados na ciência psicológica, na ética e na legislação profissional”. (Resolução CFP nº 010/2005)

A intenção maior desta apresentação é o desvelamento de questionamentos e reflexões: “por que ter um título de especialista ?”; “qual a finalidade de ter descriminado, no campo ‘Observação’ da Carteira de Identidade Profissional, ‘Especialista em Psicologia Clínica’?”; “o título de especialista está a serviço do quê e/ou de quem?”.

A responsabilidade e a importância da clínica na formação de psicólogos podem trazer a reflexão de dois pontos: a experiência do graduando ser cliente/paciente e, assim, ter uma prática diferenciada da clínica em função de sua vivência e; a importância do estágio na formação do futuro profissional, o que remete à importância do supervisor e à escolha de uma abordagem teórica. Cabe lembrar o artigo 17 do Código de Ética que auxilia na reflexão sobre a importância da dedicação à formação dos futuros profissionais: “Art. 17 – Caberá aos psicólogos docentes ou supervisores esclarecer, informar, orientar e exigir dos estudantes a observância dos princípios e normas contidas neste Código.”

Ao refletir sobre esta necessidade e sobre a abrangência da Psicologia Clínica enquanto prática e enquanto especialidade da Psicologia, faz-se mister trazer ao conhecimento dos presentes o movimento de criação do título de especialista em Avaliação Psicológica, apontando um verdadeiro contra-senso da prática psicológica, pois todas as especialidades existentes e regulamentadas no CFP possuem seus instrumentos de avaliação psicológica. Por considerar este evento – I Congresso do IGT (Instituto de Gestalt-Terapia e Atentimento Familiar) – um espaço de formação, informação, reflexão e desvelamento de novos sentidos para a prática psicológica, o Conselho Regional de Psicologia 5ª Região traz ao conhecimento dos participantes o “Manifesto contra a criação do título de especialista em avaliação psicológica”, datado de 20 de maio de 2012 – resultado das reuniões realizadas em 2011 no Ano Temático da Avaliação Psicológica, que apresenta e representa a posição do Grupo de Trabalho, Diretoria e Plenário do CRP-05 e da Categoria.

“(...) Como no caso da criação do Título de Especialista em Psicologia Social, a criação do Título em Avaliação Psicológica é um contra-senso, uma vez que toda Psicologia é Psicologia Social; nossa subjetividade é atravessada pelas forças sociais – históricas, econômicas, políticas, culturais – que nos constituem. Do mesmo modo, todo psicólogo realiza, em sua área de trabalho, uma avaliação psicológica da(s) pessoa(s) e grupos nos quais vai intervir, e o faz com metidos, ferramentas e abordagens diferenciadas, próprias de sua área. Consideramos que apenas uma visão tecnicista da Psicologia, como uma disciplina objetiva, neutra, asséptica, ancorada em uma pretensa cientificidade a-histórica, e não-ideológica, é capaz de criar regras universais e absolutas para a avaliação psicológica. É também esta orientação teórica-sistemática da Psicologia que, na discussão sobre os critérios éticos e de respeito aos Direitos Humanos para a construção e uso dos instrumentos e ferramentas da avaliação psicológica, apresenta teses que subordinam estes critérios à abordagem e aos requisitos unicamente psicométricos. O argumentado é o de que, uma vez estes requisitos atendidos, a Ética e os Direitos Humanos seguem a reboque, como na tese da “validade conseqüencial” – que seria nada mais que um delírio psicométrico e positivista. Não são apenas os argumentos lógicos e teóricos, alguns elencados acima, que nos levam a manifestar a presente moção. A prática profissional nos mostra, ao longo do tempo, como os diversos títulos de especialista promovem distorções e usos perversos no exercício profissional, ensejando, por exemplo, reserva de mercado. É o caso de empresa de seguro-saúde que ao oferecerem serviços de Psicologia só aceitam psicólogos(as) que tenham Título de Especialista na área clínica. (...) A partir desses analisadores ficam evidenciados alguns dos perigos da existência dos títulos de especialista, aos quais se tornam necessários novos debates e reflexões em torno dos efeitos éticos, políticos, econômicos que títulos impõem a sociedade. Além disso, acreditamos que há a necessidade de um debate profundo sobre a quem se destina e quais as repercussões da criação do título de especialista em Avaliação Psicológica. (...).” (Grupo de Trabalho do Ano Temático da Avaliação Psicológica do Conselho Regional de Psicologia do estado do Rio de Janeiro – XIII Plenário)

O investimento em espaços de troca de experiências em práticas psicológicas, como este Congresso e a Mostra Regional de Práticas em Psicologia do CRP-RJ, é fundamental para aproximação, orientação e esclarecimento com a categoria, além da divulgação de Resoluções norteiam o exercício profissional.

Referências Bibliográficas

Lei Federal nº 4119/1962. Brasília: 27 de Agosto de 1962.
Lei Federal nº 5766/1971. Brasília: 20 de Dezembro de 1971.

HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Trad. Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.

Conselho Federal de Psicologia. Resolução CFP nº 014/2000. Brasília: 20 de Dezembro de 2000.
_____. Resolução CFP nº 005/2003. Brasília: 14 de Junho de 2003.
_____. Resolução CFP nº 002/2004. Brasília: 03 de Março de 2004.
_____. Resolução CFP nº 010/2005. Brasília: 27 de Agosto de 2005.
_____. Resolução CFP nº 013/2007. Brasília: 14 de Setembro de 2007.

Conselho Regional de Psicologia – 5ª Região. Anexo “Manifesto do CRP-05 contra a criação do título de especialista em avaliação psicológica” http://www.crprj.org.br/documentos/2012-relatorio_avaliacao_psicologica.pdf Rio de Janeiro: 20 de Maio de 2012.

Endereço para correspondência:

AGNES CRISTINA DA SILVA PALA

agnespala@ig.com.br

 


Recebido em: 27/09/2012

Aprovado em: 13/12/2012