ARTIGO

A dimensão social da prática clínica na perspectiva da abordagem gestáltica: do espaço íntimo às transformações coletivas numa experiência em comunidades


The social dimension of clinical practice in view of the Gestalt approach: from the intimate space to collective transformations in an experience in communities


Laura Cristina de Toledo Quadros

 

 

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é discutir aspectos subjacentes à abordagem gestáltica que possam sustentar uma prática clínica em comunidades, considerando não só o espaço íntimo mas também suas afetações no coletivo. Para construirmos tal prática, faz-se necessário reconhecermos a dimensão social da prática clínica situando nossas responsabilidades nesse processo.

Palavras- Chave: Gestalt- terapia;Prática clínica;comunidade.


ABSTRACT

The objective of this paper is to discuss aspects underlying the Gestalt approach that can support a clinical practice in communities, considering not only the intimate space but also in their collective affectations. To build such a practice, it is necessary to recognize the social dimension of clinical practice placing our responsibilities in this process.

Keywords: Gestalt therapy, Clinical practice, community.


Apresentação

Historicamente, o trabalho social em diversas áreas de atuação tem sido identificado com o assistencialismo gerando distorções e, principalmente limitando possibilidades na medida em que repetia-se um modelo que se aproximava mais do colonialismo do que do desenvolvimento.

Em relação à atuação da psicologia, embora haja o crescimento da ação comunitária em diversos segmentos, podemos observar que no próprio contexto da graduação de psicologia, o enfoque da formação e o interesse dos alunos ainda concentra-se na atuação clínica tradicional, o modelo de consultório.Assim, a internalização desse modelo de atuação “clínica-individual-em-consultório-particular” é bastante intensa no imaginário dos estudantes e acreditamos ser reforçado pela formação acadêmica.

Se considerarmos o ser humano como um processo de transformações e imprevisibilidades, a psicoterapia é uma prática que possibilita a ampliação da consciência de si mesmo, permitindo o reconhecimento de potencialidades através da fluência do sentir a partir do vivido. Assim, poder criar um espaço nas comunidades onde ela possa ser uma opção de tratamento é, ao nosso ver, uma postura renovadora.

No entanto, é extremamente importante não realizarmos uma simples transposição de modelo de um espaço para outro. Precisamos repensar a forma sem perder a seriedade e os fundamentos que a suportam. Estamos diante da complexidade não alcançável pela via da causalidade o que representa, de fato, um desafio para as ciências humanas neste momento de transição onde o caos e a desordem se interpõem às certezas e às estruturas constituídas até então. Mas, como nos diz Morin (2002).

Como a complexidade comporta necessariamente antagonismos e incerteza, a sua fragilidade não nos permite fixar uma excelência durável. A excelência complexa só pode ser incerta, mutante, modificável, sem otimização definitivamente determinável (p 199).


A Gestalt-terapia é uma abordagem que trabalha com uma visão de homem contextualizada numa integração corpo, mente e ambiente. É uma abordagem de vanguarda que inclui os aspectos sociais sem uma perspectiva determinista. Segundo Perls:

O homem que pode viver um contato intimo com sua sociedade, sem ser tragado por ela nem dela completamente afastado, é um homem bem integrado... O objetivo da psicoterapia é justamente criar tal homem (1981 p-40).

Vale ressaltar que esta idéia não está vinculada ao conceito de adaptação que é mais reativo, porém guarda íntima relação com a idéia de Afirmação em Nietzsche (1991) que representa o ativo, o criativo. Dessa forma, ter a Gestalt-terapia como referência no trabalho social é uma conseqüência natural de uma abordagem que permite e facilita tal ação. Quando ressaltamos este aspecto estamos nos referindo às bases conceituais e filosóficas da Gestalt- terapia e não as suas técnicas. A partir desses fundamentos buscamos construir um conjunto de referências do que chamaremos aqui de “atuação possível” na clínica através da experiência que foi vivenciada numa ONG que atua em comunidades menos favorecidas como a Cidade de Deus e a Vila do João, na cidade do Rio de Janeiro. (Quadros & Ribeiro, 2002)

A Gestalt- Terapia desenvolveu-se no rastro das novas descobertas e é, portanto, uma abordagem que se afasta do determinismo e da causalidade, enfatizando a dinâmica relacional. A teoria da relatividade, a física quântica, a termodinâmica irreversível e a concepção sistêmica demonstraram, que na natureza havia também o caos não apreensível, porém compreensível, se admitirmos uma nova concepção de mundo. Caracteriza-se, portanto, um momento de transição de paradigmas levando-nos ao desafio de enfrentarmos os fenômenos sociais dentro de uma ótica multidimensional.

Ao discorrermos sobre este tema, a primeira coisa que não pretendemos é criar um modelo de atuação de clínica social em Gestalt-terapia. Ao contrário, nossa finalidade é discutir tal conceito visando uma práxis que possa validar as especificidades de cada contexto, transitando pelas novas possibilidades epistemológicas , visto que a idéia de um modelo é incompatível com os rumos atuais. Porém, observando o crescimento destas chamadas “práticas sociais”, torna-se imprescindível não só uma revisão acadêmica, bem como uma discussão que possa abranger e fundamentar uma prática consistente

 

A Clínica na transição de paradigmas

Somos seres sociais e quando nos unimos em uma rede de interações, constituímos um movimento constante de conservação desta ordem singular. Assim, penetrar numa nova comunidade implica numa reorganização do sistema que estaremos ali representando e na conseqüente mobilização do sistema que nos recebe. Portanto, não basta elaborar um trabalho para a comunidade. É necessário recriá-lo dinamicamente no processo de interação.

A tradição da ciência clássica reforçou em todas as áreas a fragmentação dos saberes a partir da dicotomia sujeito/objeto intensificando os especialismos e o reducionismo dos fenômenos e, conseqüentemente, impedindo a integração entre as diversas perspectivas do conhecimento. As ciências humanas neste trajeto histórico foram perdendo a dimensão integrada de indivíduo/espécie/cultura/sociedade, comprometendo a compreensão dos fenômenos em todos os sentidos.

A idéia da integração que consideramos aqui nada tem a ver com uma simples unificação, mas sim com uma articulação processual onde as peculiaridades de cada cultura e as particularidades de cada indivíduo possam ser preservadas, permitido-nos uma visão mais ampla e representativa do social. Para nós isso implica em ver o homem em sua condição humana, ou seja, ativo, vivo, emergente ao invés de entendê-lo como um objeto de estudo.

Em relação à psicologia clínica, consideramos que o enfoque fenomenológico propicia uma visão mais atualizada. A partir dele podemos afirmar que estamos diante de um homem imprevisível, singular, indeterminado e subjetivo que não pode ser cindido de sua relação com o mundo, assim como não pode ser descontextualizado de seu tempo e de sua cultura. Ao abordarmos este humano em psicoterapia temos que considerar a relação que está sendo estabelecida no setting terapêutico e o trabalho clínico que sai do consultório tradicional e busca atingir outras fronteiras, necessita ser revisto e afirmado na busca da confirmação e validação do humano.

Portanto, o que chamamos de clínica social ou clínica social comunitária não deve ser reduzido a uma ação de atender aos mais carentes. É fundamental estabelecermos outro olhar sobre esta questão e certamente há um desafio na defesa de um processo psicoterápico que valorize a singularidade e não esvazie a subjetividade para que o sujeito em seu contexto ou sistema social não seja invalidado ou até mesmo subjugado pela destruição dos elementos inerentes à sua cultura ou à sua comunidade só porque não o reconhecemos no nosso próprio código conceitual. Para Castoriadis

A questão do sujeito não é a questão de uma ‘substância’, mas de um projeto. A questão do sujeito é, em primeiro lugar, a questão do ser humano, a questão da psique, para começar, mas é também a questão do sentido e, também, a questão da própria questão. O sujeito é essencialmente aquele que faz perguntas e que se questiona, seja no plano teórico ou no que chamamos prático. Chamarei subjetividade à capacidade de receber o sentido, de fazer algo com ele e de produzir sentido, dar sentido, fazer com que cada vez seja um sentido novo (1999, p.35).

Assim, a clínica não pode ser entendida como uma ação sobre o indivíduo desconectado de seu contexto. Porém, não podemos partir do pressuposto de que quando nos referimos à comunidade, estamos diante de um conceito fechado, criado por nós a partir de um olhar de cima para baixo. São questões distintas e paradoxalmente relacionadas.

O sujeito da contemporaneidade é também um sujeito da massificação e as práticas sociais precisam estar atentas a esta condição a fim de não reproduzir intervenções ou reforçar a criação de demandas como produto de mercado. O comunitário, as comunidades não representam o ser em si.

O momento contemporâneo é propício para reformularmos o nosso olhar sobre o humano através da percepção das relações estabelecidas entre o indivíduo, à cultura e a sociedade. A partir desta visão, torna-se pertinente uma reavaliação das práticas, do conceito de comunidade, especialmente no cenário atual da realidade brasileira.

 

Uma atuação possível em comunidades: compartilhando uma experiência

Durante 12 anos, de 1998 a 2010 desenvolvemos o trabalho comunitário de forma sistematizada pelo IAPP - Instituto de Atendimento e Pesquisa Psicossocial, uma instituição sem fins lucrativos constituído por Gestalt t-erapêutas. Tal trabalho surgiu a partir de nossa experiência como psicoterapeutas e de nossas incursões espontâneas às comunidades menos favorecidas do Rio de Janeiro, bem como de nossa necessidade de construir novas atuações comunitárias.

Não fomos diretamente combater a pobreza, as deficiências logísticas ou a violência em seu estado instalado. Nossa motivação foi buscar as pessoas, conhecer as pessoas e promover um espaço possível para a emoção sutil, para o contorno de cada vida, o resgate da história pessoal e para grifar a pergunta “Quem sou eu”?

Esse é o nosso questionamento tema. Consideramos que não há uma resposta absoluta ou totalmente esclarecedora a esta pergunta tão dinâmica, tão perturbadora, embora aparentemente tão simples. Porém, acreditamos que a busca do sentido da vida passa pelo reconhecimento de nossa humanidade tanto no contorno pessoal quanto nas relações que estabelecemos. Para tal, é necessário iniciar pelo olhar sensível sobre a nossa própria vida. Isso inclui dores, afetos, frustrações, medo e potencial de transformação.

Os projetos que criamos durante esses anos de experiência, foram estruturados utilizando uma metodologia que privilegia a dinâmica interativa, estimulando de forma não diretiva a participação espontânea. Portanto, nos fundamentamos no enfoque existencial-fenomenológico, raiz da Gestalt-terapia, nossa abordagem de referência.

A Gestalt-terapia entende o ser humano a partir de uma perspectiva integrada onde corpo, mente e ambiente estão constantemente relacionados sem que um sobreponha-se ao outro. Assim, esta é uma visão contemporânea, não determinista que nos permite conceber o Homem em relação dentro de um sistema aberto, sem classificação ou rótulos. É com esta perspectiva que buscamos desenvolver nosso trabalho. A atuação que fomos construindo, visava acessar o que é possível em cada pessoa, sem fantasias ou ideais de transformação, mas também sem fixar ninguém no lugar das carências, ainda que elas sejam evidentes e incontestáveis. Nossa inspiração é a fé no incessante movimento da vida.

A ênfase da nossa proposta de trabalho comunitário está na troca através da relação entre seres humanos baseada no interesse genuíno, na disponibilidade, na presença, na responsabilidade e no compromisso saudável. Estes são, a nosso ver, fatores fundamentais para que o outro perceba e reconheça: “eu existo como pessoa, pois estou sendo visto por alguém e isso também me permite vê-lo”. Este reconhecimento permite o resgate da dimensão sensível e, conseqüentemente, possibilita a humanização das relações num contexto onde a violência é banalizada e onde o aspecto mais refinado da ética e das relações humanas é suprimido. Acreditamos que a valorização da experiência relacional seja um caminho que crie condições de escolha no possível, sem adestramentos ou imposições de verdades.

Vale ressaltar que este processo não é imediato, mas sim conquistado e construído por todos os envolvidos na relação. Os projetos por nós desenvolvidos foram como sementes plantadas e cada um pode escolher como cuidar aprendendo mais sobre si mesmo.

 

Demarcando fronteiras

Ao refletirmos sobre a pergunta tema “Quem sou eu?”, nosso primeiro olhar é para a demarcação dos nossos territórios. Por isso, inicialmente nos referenciamos nos aspectos mais objetivos e concretos por serem mais acessíveis à compreensão de todos.Assim, “Quem sou eu?” passa por “Como é o meu corpo?”, “O que ele pode fazer?”, “Que coisas eu gosto de fazer?”, “O que eu não gosto?”, etc.

Ao propiciarmos este momento, estamos estabelecendo o contorno de cada um de modo vivencial, valorizando a experiência. A partir desta diferenciação iniciamos o resgate da identidade, tão fundamental para o crescimento humano. Há uma tendência em tratar a comunidade como entidade única, com necessidades generalizadas. Isso, por vezes, obscurece a singularidade.

Buscamos criar espaços que permitam a cada um contatar o seu próprio valor, configurando-se como sujeito ativo e participativo, detentor de seu próprio rumo ao invés de um ser assujeitado e conduzido passivamente. Para tal, nosso primeiro passo é o reconhecimento deste terreno visando despertar seu potencial de vida.

A fase inicial dos nossos projetos dedica-se a essa primeira demarcação de “Quem sou eu” a partir dos elementos que estão mais evidentes. Para cada um: “Meu nome”, “Meu corpo”, “Meu rosto”, “Minhas preferências”, etc. Conduzimos esse trabalho buscando possibilitar a autoconsciência através de atividades que favoreçam uma reflexão mais sensível e, em alguns momentos, lúdica.

As pessoas se observam, se exercitam nesta pausa para auto-percepção e reconhecem diferenças e semelhanças. São momentos onde o foco volta-se para a própria pessoa que vai podendo valorizar aquilo que aparece. Não temos pressa, não aceleramos, não passamos tarefas, mas encorajamos “o experimentar”, o “fazer diferente”. É um convite que vai crescendo dentro de cada um na medida em que começam a experimentar e acompanhar a dinâmica criativa. Não é raro que, ao sugerirmos uma forma de expressão a primeira reação seja “Não sei fazer”, “Não vou conseguir”, “O que eu faço é feio”, “Nunca fiz isso”, etc. O Não sei/Não consigo parece um refrão que se repete na vida dessas pessoas às vezes, tão negadas, desconfirmadas em sua existência.
Na verdade, buscamos possibilitar o Sim, o Eu posso de alguma forma sem, no entanto, forçar ou criar falsas expectativas. Neste momento, aprendemos a lidar com nossa própria ansiedade, deixando fluir a potência de cada um, considerando limitações, diferenças, temores e até alegrias.

E nesse espaço que o outro vai podendo se construir e nós vamos aprendendo a esperar.

 

As possibilidades criativas

Nas comunidades onde desenvolvemos nossos projetos consideramos importante acender ou reconectar as pessoas com sua potência, cuidando para que tal encontro tenha um sentido de apropriação daquilo que cada um pode realizar. É importante ressaltar que nos trabalhos que realizamos chegar a essa possibilidade de expressão é um processo e não uma estimulação direta com a finalidade de apenas liberar energia. Embora não seja um trabalho psicoterápico nos moldes tradicionais, a importância dos grupos serem coordenados por psicoterapeutas está no olhar mais sensível e cuidadoso para o que é manifestado através das atividades. Além de expressar, é necessário que cada Um reconheça o que produziu e se conscientize de sua ação.

Na Gestalt-terapia, a conscientização é integrada à experiência vivida e isto vai além da compreensão racional se ligando ao sentir. Esse é o nosso dar-se conta, a awareness que muitas vezes nos surpreende, porém nos leva ao encontro com o nosso possível.

Olhar o outro como pessoa implica em acreditar na imprevisibilidade e singularidade das manifestações humanas. Cada um tem sua forma, seu ritmo, suas habilidades e suas limitações. Na rotina e na repetição a tendência é abandonar ou não perceber o novo. Isso gera uma rigidez nas nossas ações encolhendo as possibilidades de escolhas.

Quando chegamos à comunidade precisamos estabelecer uma ponte para não impor nossos códigos ou valores, pois isso pode desqualificar o que já existe, enfraquecendo os participantes do grupo. Mas, também estamos levando algo diferente do cotidiano e essa aproximação vai expandindo as fronteiras de contato tocando cada pessoa envolvida no trabalho.

A criatividade é um referencial de saúde para o ser humano,pois permite que ele transcenda a repetição do que lhe é instituído. Às vezes, na coletividade tendemos a reproduzir sem questionar. Poder experimentar o novo é uma oportunidade de deixar fluir o potencial criativo. Nem sempre é fácil abrirmos esse canal, mas acreditamos que isso é possível.

Assim, estimulamos a expressão livre, sem críticas para que pouco a pouco as pessoas possam usar a sua imaginação diante dos recursos que disponibilizamos. O processo criativo nos grupos tem ritmos e formas diferentes, mas a tendência é interagir com as próprias necessidades de exteriorização do seu universo interior.

Inicialmente pode haver estranheza; depois vem o prazer de tocar, manusear um material novo e, naturalmente, o movimento criativo vai surgindo, trazendo uma possibilidade às vezes inédita de mostrar o que aparece. A pessoa pode, então, se reconhecer fora de um padrão e legitimar aquilo que ela mesma pode produzir. Essa é uma experiência que traz movimento e permite que o novo seja uma possibilidade.

Experimentando a noção de integração e totalidade

O Homem é um ser relacional onde a maturidade pode ser representada pela consciência de vivermos em interdependência podendo respeitar nossas próprias condições e conseqüentemente, respeitar o outro. Isto é um fluxo de troca inerente ao crescimento humano e a evolução social. (Ginger&Ginger, 1995)

Porém, na história da humanidade, são fatos, os exemplos de autoritarismo e submissão, subvertendo o aspecto positivo de viver em grupo. Quando a tendência é de dominação, esmaga-se o conteúdo genuíno de cada um reduzindo-o a uma plasticidade opaca, manipulável e sem vida.

Assim, para evitar a perda da identidade e do valor cultural de cada comunidade é necessário integrar o grupo pelo respeito às diferenças e aceitação das limitações. Aceitação aqui não deve ser confundida com passividade, mas sim entendida pelo ato de acolhimento sem julgamento ou classificações.

Ao estarmos diante do fenômeno humano precisamos aprender a conviver com a diversidade. Uma sociedade mais justa implica na existência livre e não podemos na atualidade nos apoiar numa idéia ingênua de igualdade. Portanto, a busca pela justiça passa antes pela tolerância as diferenças.

Nos grupos acompanhados pelos nossos projetos caminhamos para o processo de uma integração natural, através do contato onde cada um pode ver e ser visto, fora de um sistema contaminado pelos papéis assumidos freqüentemente. Experimentar sair do seu papel, ver o outro num espaço diferente, redesenhar os contornos desta relação vai, pouco a pouco, dando movimento e renovação as relações já estabelecidas.

Voltando ao questionamento base “Quem sou eu?” percebemos que ele está vinculado ao “Quem somos nós?” numa dinâmica de figura e fundo. Assim, o que fazemos reflete-se no espaço em que estamos inseridos. Esse refletir está longe da causalidade, ou seja, não é uma conseqüência de nossa ação, mas sim um sinal de que vivemos num sistema em constante interação onde um afeta o outro a todo instante.

Dessa forma, buscamos um sentimento de grupo, uma noção de “NÓS”, sem perder a idéia em construção do “EU”. Ao contrário, vivenciamos que o “NÓS” não é o somatório de indivíduos, não é um aglomerado, mas sim um espaço construído pelas várias manifestações de pessoas que estão conhecendo ou reafirmando suas próprias identidades. Dividir histórias, ouvir, falar, expressar, compartilhar, respeitar, trocar, brincar e criar são possibilidades concretas que vão configurando novas realidades entre os participantes do trabalho.

Os trabalhos que realizamos nas instituições partem de uma proposta aberta, aonde as relações vão se configurando na medida em que as pessoas vão se inserindo e interagindo, conhecendo suas possibilidades tanto internamente, quanto no contexto em que vivenciam.

As atividades são elaboradas e levadas ao grupo sempre como um dispositivo inicial podendo, a todo instante ser reorganizada em função das necessidades ou manifestação das pessoas. Nossa postura é de uma escuta ativa, participativa e despojada de certezas.

Olhamos para a totalidade sem descaracterizar em nenhum momento a singularidade que emerge em cada participante. O ar se renova, pois não criamos rótulos ou lugares fixos para serem ocupados.

É importante ressaltar que esse exercício de integração com a liberdade envolve, sobretudo, a noção de limites, pois a participação envolve respeito a si próprio, ao espaço que está sendo constituído e aos participantes do grupo. Como já dissemos anteriormente, isso não é imposto, mas sim conquistado a partir da paciência, da firmeza de propósito e da confiança no potencial humano.

 

Resgatando a sensibilidade

Tocar o sentimento pode ser simples, mas envolve sutileza para que os sentimentos sejam reconhecidos e encontrem um espaço propício e receptivo para sua expressão. O controle é um modo desfavorável de lidar com tais manifestações, pois represa a emoção desviando-a do seu curso natural. Respeitar o ritmo do movimento é uma ação inerente ao próprio trabalho que desenvolvemos. Um dos objetivos de nossos projetos é poder despertar o aspecto mais refinado da existência de cada um que vem se perdendo no embrutecimento da luta cotidiana no contexto contemporâneo.

Nas comunidades onde atuamos o exercício de acessar o “sentir” torna-se fundamental na medida em que acolhemos e valorizamos toda experiência vivida. Ao utilizarmos a arte como recursos de expressão, a música como catalizadora do movimento manifesto e a relação para construir as fronteiras de trocas, estamos propiciando o resgate de vivências abandonadas ou esquecidas, mas que fazem parte da identidade das pessoas.

Voltamos a salientar que é um trabalho cuidadosamente acompanhado para que as pessoas possam identificar o sentido do que vivenciam, aproximando-se de forma consciente de suas experiências. A emoção faz parte da condição humana e organizá-la internamente é o caminho para o amadurecimento. Organizar, aqui, não tem uma conotação de ordem ou adaptação, mas sim, de dar um sentido particular, onde cada pessoa possa reconhecer e dar a sua própria forma favorecendo a fluência de sua saúde.

O questionamento “Quem sou eu” “Quem somos nós” vai ganhando um novo significado, pois através da relação que vamos estabelecendo a confiança no processo vai se ampliando. Assim vamos chegando a um espaço mais profundo e sensível permitindo que cada pessoa encontre um caminho possível para integrar os vários aspectos do seu SER.

Elaborar a própria identidade envolve reconhecer os limites do corpo, integrar o potencial criativo, compartilhar respeitando o outro e a si próprio, e fundamentalmente, alcançar a profundidade de nossas emoções.

O espaço para que a emoção possa emergir durante o trabalho não se limita a torná-la visível ou despejá-la sobre o território ao qual ela pertence. Nosso cuidado especial está em permitir que o outro reconheça suas emoções podendo senti-las e experimentá-las, dentro de suas possibilidades. Este é um dos aspectos mais fundamentais, pois quando a emoção se manifesta e de fato se faz presente, reafirmamos o caminho da humanização das relações através da consciência do Ser em sua infinita capacidade de expressar-se além da palavra.


Uma experiência de valorização do Ser Humano através da relação

A ênfase do trabalho realizado nas comunidades foi a de atuar nas relações humanas de forma preventiva, trabalhando questões internas e subjetivas, de caráter afetivo e existencial. Afinal, estamos diante de pessoas que não possuem apenas carências materiais, mas, sobretudo, necessitam ser compreendidas em sua totalidade.

Realizar este trabalho exigiu concentração e persistência. Fomos desbravando caminhos e aceitamos os desafios como oportunidade de aprender. O conhecimento por nós adquirido é feito de uma troca respeitosa e atenta onde fomos demarcando fronteiras, definindo objetivos e tolerando as frustrações.

Fomos conhecendo o terreno numa constante interação até conquistarmos a confiança e nos sentirmos mais fortalecidos. Muitas vezes ficamos diante do inédito e do desconhecido e cuidadosamente, buscamos penetrar nesse universo para poder fazer parte dele sem perder a nossa própria identidade.

Entrar sem ser convidado, mas também não invadir implica numa delicadeza e paciência que muitas vezes tivemos que exercitar. Arar a terra, suar, sentir o sal. Plantar, acompanhar a maravilhosa gênese da natureza em seu curso tem sido para nós uma grata experiência.

Neste processo de interação com as comunidades atendidas é fundamental o respeito pelo espaço pelas histórias que encontramos e a humildade para aprender. Não devemos agir como colonizadores que, como nos mostra a história, por vezes destroem culturas desprezando a sabedoria do desconhecido. È fundamental preservar o contexto de cada comunidade e a história de cada pessoa nela inserida.

Nossa estratégia mais utilizada foi a do trabalho com grupos, pois acreditamos que o grupo fortalece vínculos e facilita a expressão. Através desse espaço de troca procuramos dar voz e escuta a partir de dinâmicas com temas pertinentes ao universo de cada grupo, considerando aspectos como faixa etária, contexto da comunidade, necessidades detectadas e interação entre os participantes. Nossa ênfase não é apenas focalizada na verbalização, na medida em que utilizamos recursos que possibilitem outras formas de expressão (material artístico, trabalhos corporais e música). Essa experimentação favorece a reflexão e a elaboração de sentimentos e afetos, permitindo que cada um tenha maior consciência de si mesmo.

Nos últimos doze anos, o IAPP atuou em comunidades menos favorecidas da cidade do Rio de Janeiro, ampliando suas fronteiras através de novas incursões e parcerias com outras instituições. Consideramos que os trabalhos desenvolvidos favoreceram o resgate da dignidade e da cidadania pelo auto-conhecimento e validação das potencialidades, ao invés de focalizar apenas a carência.

Ressaltamos também que para executar nossos projetos desenvolvemos uma formação profissional, o que propiciou um suporte teórico e prático aos profissionais que atuaram no campo social criando uma estrutura apropriada para intervenção na prática comunitária. Dessa forma, durante nossa existência atingimos as nossas metas e experimentamos um crescimento genuíno.

Considerações finais

O Brasil é um País de desigualdades sociais e a crescente violência nos centros urbanos é um dos reflexos destas distorções. Não basta abordar esta questão apenas de forma política concentrando a responsabilidade no Poder Público. Na verdade, todos os setores devem ser mobilizados na busca de uma melhor qualidade de vida. Porém, não devemos confundir e muito menos reduzir esta busca a um ideal asséptico ou moralizante, rechaçando o que estiver “fora da ordem”. Uma sociedade mais justa e mais livre não é a utopia da igualdade, mas sim a tolerância e a convivência com a diversidade, pois

Se queremos liberdades, é preciso margens de desordem, tolerância a anomias e aceitação da possibilidade do crime. Tudo que se baseia na liberdade e na criatividade está no limite da desordem e do risco de desintegração (Morin, 2002, p.199).

Se considerarmos a idéia do ser humano como um processo de transformações e imprevisibilidades, a intervenção psicossocial é uma prática fundamental para que o sujeito amplie a consciência de si mesmo e possa reconhecer potencialidades através da fluência do sentir a partir do vivido. Assim, poder criar um espaço nas comunidades onde ela possa ser uma opção de desenvolvimento pessoal é, a nosso ver, uma postura renovadora. Este foi o caminho que descobrimos ao longo desta experiência.

Ana por favor reveja com atenção essas referencias,fiquei com dúvida em algumas colocações.

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Endereço para correspondência

 

Laura Cristina de Toledo Quadros

E-mail: lauractq@gmail.com

 

 

Recebido em: 03/11/2011
Aprovado em: 10/11/2011