ARTIGO

O lugar do corpo em Gestalt-Terapia: dialogando com Merleau-Ponty

The body´s place in Gestalt-Therapy: a dialogue with Merleau-Ponty

 

Mônica Botelho Alvim

Endereço para correspondência


RESUMO

Este trabalho discute o tema do corpo, numa perspectiva que põe em diálogo Merleau-Ponty e a Gestalt-Terapia. O recorte trazido busca discutir a noção de corpo e corporeidade numa perspectiva fenomenológica, tal como propõe Merleau-Ponty na obra Fenomenologia da Percepção, tendo como meta discutir a proposta da Gestalt-Terapia de trabalhar com a estrutura concreta da situação para restabelecer o fluxo de awareness e a possibilidade criadora de sentidos para a existência no mundo com o outro. Conclui perguntando pela atualidade dessa proposta, pelas possibilidades e perspectivas de um trabalho psicoterápico assim delineado diante dos dilemas contemporâneos que atingem fortemente o corpo e a criação.


Palavras-chave: Corpo; Psicoterapia; Gestalt-Terapia; Merleau-Ponty.


ABSTRACT

The article discusses the body in a perspective that puts into dialogue Merleau-Ponty and Gestalt-Therapy. We present the notion of body and embodiment in a phenomenological perspective, as proposed by Merleau-Ponty, aiming to discuss Gestalt-Therapy´s proposal to work with the concrete structure of the situation to restore the flow of awareness and creative possibilities of meaning make. It concludes by asking about this proposal nowadays, about the possibilities of this kind of psychotherapeutic work in the context of contemporary dilemmas that strongly affect body and creation.


Key-Words: Body; Psycotherapy; Gestalt-therapy; Merleau-Ponty.


 

Actually the point is to be a body (…) when you are a body, when you experience yourself totally as a body, then you are somebody. Language knows what it is talking about. And when you don’t have that, you very easily experience yourself as nobody.
Laura Perls


A noção de corpo ocupa um importante lugar na obra de Merleau-Ponty. No desenvolvimento de suas reflexões acerca dos problemas do conhecimento, o filósofo destaca o problema do dualismo e da oposição entre intelectualismo e empirismo, consciência e corpo. Colocando o corpo no lugar de um existencial, categoria transcendental, ele propõe um retorno ao mundo da experiência.

A perspectiva ali adotada é fenomenológica: o corpo não é mais compreendido como máquina, não é compreendido como receptáculo do eu, partes que se juntam submetidas à consciência; ou a um agente exterior que desencadeia nele mecanismos pré-estabelecidos. O corpo a que ele se refere não é Körper – corpo físico, mas Leib – corpo vivo.

Assim, é fundamental sublinhar que Merleau-Ponty não está interessado na realidade corpórea em si, mas no corpo como experiência, modo de ser-no-mundo. O corpo está colocado em sua obra como um existencial, compreendido como matriz, lugar de onde os dois elementos opostos (sujeito e objeto) emergem. O corpo é sede do encontro sujeito-mundo.

A Gestalt-Terapia também pretendeu introduzir, no âmbito da psicologia, um pensamento que “re-significasse” as relações pessoa-mundo. Define a psicologia, no livro Gestalt-Terapia, como o estudo da operação da fronteira de contato no campo organismo-ambiente e o funcionamento neurótico como situação de emergência crônica de baixa intensidade – onde há fixação e cisão mente corpo, eu e mundo, inibição da propriocepção e da ação espontânea, domínio da deliberação. No lugar do livre fluxo de awareness e da ação espontânea, há uma fixação em formas corporais automatizadas e em representações, um distanciamento da experiência e da realidade que se apresenta.

A Gestalt-Terapia não busca a realidade corpórea em si, não é uma terapia corporal, mas propõe que a terapia seja voltada para a ampliação da awareness, um trabalho que visa, pela reintegração mente-corpo, o resgate da possibilidade expressiva de gesticulação espontânea na relação com o mundo e o outro.


Corpo e sentido em Merleau-Ponty

Merleau-Ponty discute um corpo objetivo e um corpo fenomenal entrelaçados como dimensões de uma totalidade. O corpo objetivo, coisa entre as coisas, habita o mundo numa co-presença com elas e, assim como os objetos, é visível, tangível e pode ser sentido. O corpo fenomenal é sentiente, vidente e movente.

Tal como adverte Dupond (2010), é fundamental não opor corpo fenomenal a corpo objetivo, sob a pena de perder o sentido próprio do corpo fenomenal, rebaixando-o ao subjetivo e mantendo a dicotomia. Corpo objetivo e fenomenal compõem uma totalidade, permitindo ao mesmo tempo a experiência do “eu” e “meu”, “eu corpo” e “meu corpo”, interioridade de uma exterioridade e exterioridade de uma interioridade.

O corpo dirige-se intencionalmente ao mundo e é parte fundamental para a “aparição” do mundo. A experiência da corporeidade é ação no mundo, ou seja, o corpo é um campo perceptivo-prático que dota a existência de um sentido de possibilidade, um eu engajado que se estende para o mundo. “Ser corpo é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço” (Merleau-Ponty, 1994, p.205).

Nessa perspectiva o corpo é um “corpo-sujeito, poder de expressão, espírito, produtividade criadora de sentido e de história” (Dupond, 2010, p.12). O sentido é dado na situação, quando o corpo, situado no meio das coisas, articula, a partir de sua motricidade, hábito e situação.

O corpo habitual traz a marca da singularidade e das experiências anteriores. Está envolvido com a noção de comportamento preferido proposta por Goldstein (2000), indicando que cada organismo tem um estilo próprio, um esquema corporal que articula, ao seu modo, a totalidade.

A articulação entre hábito e situação constitui a síntese geral do corpo próprio, uma corporeidade que nos dá o mundo e uma significação para ele, significação que se constrói no campo da experiência.

Merleau-Ponty compreende assim a experiência como expressão, uma síntese temporal, um trabalho do corpo movente com o mundo que produz sentido, o que denominou praktognosia.

Trabalho, práxis que produz gnose, expressão e fala, gesticul-ação corporal em situação com o mundo. É no meio das coisas que esse conhecimento se faz, são as coisas que não conheço, que me são diferentes, novas, estranhas, o que me convoca para um movimento curioso que é práxis, corpo vibrante.

A compreensão dada pelo corpo é pré-reflexiva, gerando um conhecimento tácito. A síntese do corpo próprio, tal como podemos afirmar também a respeito da noção de awareness na Gestalt-Terapia, implica espaço, tempo, movimento, sensações e expressão. Unidade, porém, implícita e ambígua. Não posso apreendê-la, mas só vivê-la.

Meu corpo tem seu mundo ou compreende seu mundo sem precisar passar por representações, sem subordinar-se a uma função simbólica ou objetivante (...) Não estou no espaço e no tempo, não penso o espaço e o tempo; eu sou no espaço e no tempo, meu corpo aplica-se a eles e os abarca. A amplitude dessa apreensão mede a amplitude de minha existência (Merleau-Ponty, 1994, p.195).

Assim, para Merleau-Ponty, o corpo próprio habita o mundo em vizinhança com as coisas e é de acordo com uma situação que os significados se fazem, quanto mais amplamente eu apreendo o mundo, mais alargo meu horizonte existencial. O corpo é um centro de perspectiva que não pode ter o mundo objetivamente, mas acede a ele e as coisas apenas por perfis. O mundo não está ao redor como “um puro objeto de pensamento sem fissura e sem lacuna”(Merleau-Ponty, 1946/1990, p. 48) . O que tenho na percepção não são verdades, mas presenças, e o que me dá o objeto em sua totalidade significativa é uma síntese corporal - síntese prática ou de transição que me leva de uma perspectiva a outra e que me permite vislumbrar, em um futuro próximo, que se avizinha, o outro lado ainda não dado, mas presente e alcançável com um gesto. È o corpo, tal como já propôs Husserl e retoma Merleau-Ponty, que me dá o sentido de possibilidade: um “eu posso”. A corporeidade me dá um sentido provisório, tácito e escorregadio. Tudo que percebo comporta uma dimensão além do que me é dado objetivamente. Nada me é dado inteiramente.

Assim, é situado no mundo, entre as coisas do mundo, sensível e passivo, mas também movente, ativo e senciente, como experiência vivida, o modo como Merleau-Ponty concebe o corpo e descreve na Fenomenologia da percepção a experiência do espaço, da motricidade, do hábito, da sexualidade, da linguagem como expressão, sempre partindo da estrutura corpo-mundo-outro.

Durante o processo de “neurotização” social que representou o pensamento racionalista, cientificista e dualista, o corpo é reafirmado no lugar de dimensão invisível, ambígua e impura que deve ser alijada, retirada de cena. Merleau-Ponty desenvolve longamente em sua obra a tese de que há, no pensamento clássico, uma inversão da experiência da consciência, quando se estabelece um primado da consciência reflexiva, em outras palavras, um primado da racionalidade.

Na contra-mão da reflexão intelectualista dada pelo “eu penso”, Merleau-Ponty e a Gestalt-Terapia são políticas da experiência. Propostas de resgate da dimensão pré-reflexiva e corporal que gera o sentido do “eu posso”.

Na insegurança diante do mundo e do outro, na fuga da vertigem da angústia, da solidão, das dimensões impuras e algo obscuras da existência, um “eu penso” se sobre-põe de modo dualista, ao “Eu Posso”.

Na neurose, tal como compreende a Gestalt-Terapia, há um rompimento da unidade corpo, mente, organismo e ambiente. O ego deliberado (ativo) é sentido como isolado do mundo; ele intervém ao invés de aceitar a interação espontânea, a energia para o contato parece vir “de dentro”, exclusivamente dele, movimentada não por sua sensação organísmica, mas por sua vontade racional, controlada pela “mente” (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997, p.197).


Corpo, awareness e criação em Gestalt-Terapia

Na perspectiva da Gestalt-Terapia, o processo de contato é um processo de ajustamento criativo que se dá a partir de uma interação na fronteira. De acordo com Perls, Hefferline e Goodman (op.cit.), todo ato de contato é uma totalidade que envolve awareness, atividade motora e sentimento, a partir da interação pessoa-mundo. Em situações ótimas, a awareness é um continuum, “um livre fluir em direção à formação de gestalt que só pode prosseguir enquanto o excitamento e o interesse puderem ser mantidos” (L. Perls, 2002, p.153). Quando a interação na fronteira é fácil, o fluxo em direção ao fechamento da gestalt é direto e não há demanda por esforço de qualquer natureza, a awareness é diminuída, assim como a atividade motora e a deliberação. Ao contrário, quando há dificuldades, empecilhos, há um impedimento do fluxo, um retardamento da interação na fronteira e a consciência é intensificada. O self é ativado a funcionar de modo mais deliberado, há a sensação de atividade e separação da situação e as representações são ativadas como recursos que, tendo sido eficazes no passado, oferecem uma possibilidade agora.

Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) descrevem duas outras possibilidades além do contato fácil ou difícil: situações emergenciais na interação onde há perigo ou frustração. Quando situações de perigo são extremas, repetidas e/ou dolorosas, há um “reajustamento da fisiologia, uma tentativa de estabelecer um novo conservadorismo inconsciente sob as novas condições [...] uma fisiologia secundária” (op.cit., p.207). Tais ajustamentos se tornam crônicos e fixam o funcionamento do self, impedindo o fluxo de awareness e o processo de ajustamento criativo. Nesse sentido a Gestalt-Terapia descreve o funcionamento neurótico como uma situação de emergência crônica de baixa intensidade, ou seja, uma situação de desequilíbrio crônico de baixa tensão, que envolve uma sensação contínua de perigo e frustração.

Na situação de emergência crônica duas funções de emergência (que a princípio seriam temporárias) entram em ação ao mesmo tempo: um ocultamento deliberado e uma hiperatividade não deliberada, havendo um excesso duplo sobre os receptores e proprioceptores. Há uma atenção intensa do organismo para um suposto “perigo” do ambiente - os receptores ficam aguçados e a musculatura enrijecida, pronta para fugir ou lutar. Como as exigências proprioceptivas são menos ameaçadoras, já que a hiperatividade exaure a energia e a tensão aí envolvida, a atenção é desviada delas e investida na sensação de perigo. Os proprioceptores são retraídos e há auto-constrição, gerando um tipo de dessensibilização, a percepção do corpo como parte do self é diminuída e há perda de contato com o próprio corpo, sensações e sentimentos. A redução da função id – o fundo de onde parte o apetite e a direção da ação – reflete em inibição motora e em uma falta de confiança em si próprio, medo do futuro, falta de crença nas possibilidades, no “eu posso”.

Ter a energia sensorial adormecida pelos hábitos sociais é uma das características da neurose descritas na literatura da Gestalt-Terapia, abordagem que transgride no mesmo sentido propondo um trabalho psicoterápico que objetiva a ampliação da awareness – em especial a do tipo sensorial e motora – para liberar o sujeito da anestesia da fixação. Partimos aqui de uma concepção que propõe ser a transgressão o “ultrapassar” daquilo que está instituído pelo hábito, regra social, ou qualquer forma de fixação neurótica. Consideramos que, para tal, é indispensável que haja um engajamento do corpo enquanto corpo-presença, admitindo que a consciência “é sustentada, subentendida pela unidade pré-reflexiva e pré-objetiva do corpo” (Merleau-Ponty, 1945/1994, p.138).

A transgressão tal como propomos aqui pode ser considerada trabalho no sentido merleau-pontyano, uma vez que transforma o mundo, produz uma fala falante e institui cultura.

A terapia trata de tornar presentes as fixações e tensões e é para isso que se faz o trabalho de ampliação da awareness sensorial. Se focarmos atenção nas tensões e fixações que se apresentam, na forma que se configura, e as fizermos experienciais para o cliente, chegamos ao conflito central. “Na realidade, o que tentamos fazer na Gestalt-Terapia é trazer para a figura novamente as fixações que se tornaram de certo modo petrificadas e apenas estados de existência onde então elas possam ser experienciadas como atividade atual, que ainda é realizada agora, porque todos os músculos envolvidos são voluntários”(L. Perls, 2002, p.10).

Esse é um importante ponto. A musculatura voluntária tornou-se, de certo modo, involuntária, uma vez que está enrijecida de modo inconsciente. O trabalho da awareness sensorial visa possibilitar a fluidez do processo da consciência por meio da corporeidade, da retomada da sensação de ser um corpo que devolva à pessoa a sensação de possibilidades, o sentido de eu posso, de criação, de transformação.

A terapia de concentração proposta pela Gestalt-Terapia visa restabelecer o continuum de awareness, ou seja, o fluxo temporal da consciência. A necessidade mais vital está expressa na forma que se apresenta aqui-agora que precisa apenas ser percebida pelo organismo como um todo. “O continuum de awareness se desenvolve quando você remove ou dissolve as barricadas, as tensões musculares, as interferências, as gestalten fixadas. Você se concentra nas gestalten fixadas e em como você as fixa” (L. Perls, 2002, p.13).

Essa é uma das importantes bases para o caráter de experiment-ação que tem a terapia. Atentar para a forma da fixação permite acessar o conflito presente na estrutura que se apresenta - e que inclui o terapeuta. Nossa atenção é “incorporada”. Uma consciência que é um corpo dirigido para a situação presente, o que significa dizer de um corpo que se transforma de objeto no espaço em espacialização.

A noção de id da situação envolve a sensação daquilo que é dado no campo organismo-ambiente, na situação, as sensações que emergem, os excitamentos que são sentidos e que indicam a direção da ação futura. A função id envolve o corpo como um fundo de onde emerge a figura, o excitamento, apetite, como uma percepção de início vaga, envolvendo sentimentos ainda incipientes entre organismo e ambiente. Envolve também as situações passadas inacabadas que começam a emergir também de modo incipiente e podem constituir-se em um tipo de excitamento da fronteira. O fato é que ela é uma função eminentemente corporal e sensória, está presente na consciência de modo vago e é responsável por dar a direção da ação motora no campo.

A terapia toma como ponto de partida o trabalho de awareness da função id, o que significa dizer que, a partir de uma experiência estética, conectando-se com a corporeidade e as sensações, a ação escolhida dentre as possibilidades que se apresentam estará orientada pela necessidade que ativa e mobiliza o fundo. Isso vale tanto para o cliente quanto para o terapeuta. Ao conectar-se ele próprio com as sensações presentes, concentrando-se na forma da situação, o terapeuta orienta sua intervenção para a necessidade que se apresenta e revela no id da situação, o que ativa e mobiliza o fundo orientado pela necessidade dominante. Quando sua intervenção é dirigida para a sensação, mobiliza o cliente na mesma direção. A atenção à forma qualifica esteticamente o vivido e abre espaço para a geração de significados a partir da experiência da origem, abstraída das representações.

Em suma, o trabalho da Gestalt-Terapia acentua a corporeidade dirigindo a psicoterapia para a ampliação da awareness sensorial a partir da forma (corporal) que se apresenta. Lembramos, aqui, que, tal como propõe Merleau-Ponty, a fala também é um gesto corporal. Nesse sentido, consideramos que pode ser objeto central em uma sessão inteira, ou em várias sessões durante o processo psicoterápico. Trabalhar o corpo não significa trabalhar com exercícios, movimentos, respiração ou qualquer tipo de técnica ou trabalho voltado para a realidade corpórea, para o corpo objetivo.

O gestalt-terapeuta busca a totalidade da forma, que inclui a fala e o gesto do corpo que acompanha a fala: os movimentos de braços, pernas, cabeça, o tom de voz, o olhar e seus movimentos. Enfim, tudo o que se apresenta enquanto uma ação emana do campo e toma uma forma, a partir da percepção de cliente e terapeuta. A estrutura da situação é a coerência interna de sua forma e conteúdo (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997, p.93).


Considerações Finais

Podemos dizer que a Gestalt-Terapia, quando propõe concentrar-se na estrutura da situação concreta para restabelecer o fluxo de awareness, propõe reaprender a ver o mundo. Corroborando as propostas de Laura Perls, entendemos que os conceitos da Gestalt-Terapia são filosóficos e estéticos e passamos agora a apresentar um sumário das idéias aqui discutidas com base em tal aproximação.

As considerações de Merleau-Ponty apontam, do lugar da filosofia, a concepção do corpo como origem, experiência expressiva dada pela situação. A Gestalt-Terapia é uma clínica da experiência: 1- o campo organismo/ambiente é um campo de presença – aqui-agora, espácio-temporal no mundo com o outro; 2- a experiência da fronteira é a experiência da diferença ou novidade, que é sentida no corpo como excitamento e inicia o processo de formação de gestalt ou contato; 3- o corpo é o fundo de onde brota a excitação, unidade pré-reflexiva e pré-objetiva. Um corpo situado, porém. Se compreendermos o contato como o surgimento “no interior” de um corpo subjetivo e fenomenal, em oposição ao corpo objetivo, corremos o risco de manter a dicotomia. Falamos então de um corpo que é do campo, da situação, ser-no-mundo; 4- O ego é função temporal exercida quando em contato com o diferente, ação motora, corporal, que indica um sentido, direção ao futuro imediato que vislumbro em minha vizinhança. Ato corporal que me leva de um lugar ao outro. De um invisível ao visível. De uma ausência a uma presença; 5- é apenas com awareness que a função ego exerce uma ação espontânea e criadora; 6- a terapia, nessa perspectiva, visa em última instância, ampliar a capacidade de awareness, cuja dimensão inaugural é o corpo sensível, excitável e vibrante diante da diferença e da novidade do mundo e do outro.

Em um mundo dominado por uma lógica racionalista, objetivista, pragmaticista e utilitarista, onde o individualismo e a competitividade forjam um tipo de solidão - diferente daquela dimensão existencial necessária para o Ser do ente, tal como propôs Heidegger – que é fechamento em si, fixação e medo do outro e da diferença, penso que a Gestalt-Terapia pode ser uma proposta ainda revolucionária. Para permanecer coerentes com tal proposta, urge manter em vista a originalidade dessa concepção do corpo como corporeidade e da ação criativa como agressão para a trans-forma-ação, o ultrapassamento da forma fixada.

Paul Goodman já vinha desenvolvendo, antes do seu contato com as propostas de Perls, “uma sociologia existencial da sociedade americana” (Roszak, 1969/1972, p.186). Na novela The Empire City, publicada em 1947, ele já anunciava – de modo até visionário - os problemas advindos da tecnocracia e do capitalismo que convulsionariam a sociedade nos anos 60, como o consumo, levantando questões acerca do bem estar psicológico, das relações entre indivíduo e sociedade, questões essas que atravessariam o livro Gestalt-Terapia, alguns anos depois. Em um trecho destacado por Roszak (op.cit.), Goodman dá voz ao fantasma do personagem Elifaz, o último dos self-made men:

Sociolatria é o período em que a grande sociedade que eu leguei a si própria organizar-se-á para o bem comum e coordenará, inalteradas, suas magníficas capacidades produtivas para elevar constantemente o Padrão de Vida. Comprareis muitas coisas dispendiosas de que absolutamente não necessitais (...) a grande sociedade dedicar-se-á a garantir o bem-estar psicológico da maioria de seus membros (...) é o ajustamento do indivíduo a um papel social sem que se libere quaisquer novas forças da natureza(p.186).

O quadro que convulsionou a sociedade nos anos 60 e que impulsionou os movimentos da contra-cultura é bastante atual. O consumismo, a massificação, a falta de espaço para a diferença permanecem atravessando de modo contundente nossa sociedade.

Boa parte da psicologia ainda trabalha com a idéia de normalidade, considerando normal aquilo que é in-diferente a todos aqueles eventos que não nos impressionam por serem fora do comum, ou seja, o normal é aquele que não foge à regra, ao padrão, que não nos impressiona.

Merleau-Ponty (1948/2004) refere-se ao primitivo, ao selvagem e à criança como aqueles para os quais não podemos olhar enquanto não rompermos com nosso medo de sentir, enquanto não rompermos com o racionalismo que nos garante a previsibilidade das coisas. Ele nos desafia a olhar para eles com toda nossa impressão, ou seja, com as marcas do que vem de nós.

Nessa perspectiva, entendendo que é a experiência da diferença a mola mestra da criação, consideramos a terapia um campo de experiência que se dá a partir do encontro de corpos sujeitos, possibilidades múltiplas em presença e em ação (coletiva) de instituição.

REFERÊNCIAS


Dupond, P. Vocabulário de Merleau-Ponty. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2010.
Goldstein, K. (2000). The Organism: a holistic approach to biology derived from pathological data in man. New York: Zone Books

 

Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1945/1994.

 

_________________ (1946/1990). O primado da percepção e suas conseqüências filosóficas. Campinas: Papirus.

 

_________________ (1948/2004). Conversas 1948. São Paulo: Martins Fontes.

 

Perls, F. Hefferline, R. & Goodman, P. (1951/1997). Gestalt-Terapia. São Paulo: Summus.

 

Perls, L. (1992). Living at the boundary. New York: The Gestalt Journal Press.

 

Roszak, T. (1969/1972). A contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. Petrópolis: Ed. Vozes.

 

Endereço para correspondência

 

Monica Botelho Alvim
E-mail: mbalvim@gmail.com

Recebido em: 30/10/11
Aprovado em: 24/11/11