ARTIGO

Psicologia e Visita Médica: construção e reconhecimento de um lugar para o psicólogo hospitalar

Psychology and the round: building and recognition of a place to the hospital psychologist

 

Helena Pinheiro Jucá-Vasconcelos

Endereço para correspondência


RESUMO


O presente artigo apresenta a importância do psicólogo hospitalar nas reuniões chamadas de visita médica. Para alcançar esse objetivo, são expostos recortes de casos clínicos para discutir algumas possibilidades de atuação tanto com os pacientes, quanto com os familiares e a equipe. Por fim, é proposta uma reflexão sobre a responsabilidade do profissional em ser valorizado pela equipe, principalmente se dispondo a estar presente nessas reuniões e respondendo às demandas que a equipe multidisciplinar apresenta.

Palavras-chave: Psicologia hospitalar; Intervenção psicológica; Equipe multidisciplinar.


ABSTRACT

This article presents the importance of hospital psychologist at the multidisciplinary meetings called round. To achieve this goal clinical cases were exposed to discuss some possibilities to act with pacients, family and the interdisciplinary team. Finally, it is proposed a professional's reflection on its liability to be well valued by the team, especially when he will attend these meetings and when responding to interdisciplinary team’s demands.


Keywords: Hospital Psychology; Psychological intervention; Interdisciplinary team.



Este trabalho teve como objetivo assinalar a importância da construção do lugar do psicólogo na reunião chamada visita médica. Este espaço, também chamado de supervisão médica ou round, é aquele em que se discutem os casos atendidos na enfermaria e que orienta a equipe médica na assistência aos pacientes internados. Originalmente essas reuniões eram feitas no leito dos pacientes, porém é comum atualmente discussões de casos clínicos em salas reservadas sem a presença do internado. Nessas reuniões, é mais frequente só participem profissionais da área médica, sejam estagiários ou médicos. Porém tem aumentado a abertura para que outros profissionais entrem nesse espaço para ajudar na visão integral do doente.

Neste estudo foram apresentados relatos de situações em que a psicologia pôde ajudar na discussão clínica nas visitas médicas, além de uma discussão sobre o lugar do psicólogo na equipe interdisciplinar. No trabalho hospitalar, é esperado do psicólogo que auxilie também a equipe na definição de condutas e tratamentos (Tonetto, 2007). Deste modo, a interlocução entre a psicologia e a medicina, assim como com as outras especialidades, pode tentar assegurar a resolução, em tempo hábil, de problemas, bem como amenizar a angústia dos profissionais frente a alguns temas. Isso porque, o hospital é um ambiente que pode mobilizar afetos de amor, de tristeza ou até mesmo de ódio pelas situações críticas que ocorrem. Nas reuniões médicas podem aflorar tais sentimentos e o psicólogo pode presenciar e responder à demanda da equipe no momento em que aparecerem, caso participe das reuniões de equipe. Sua presença pode propiciar que questões subjetivas possam ser ponderadas pelos participantes, favorecendo ainda o aprendizado do psicólogo sobre aspectos da medicina, sendo, por conseguinte, um processo de interlocução entre os saberes. Outro aspecto relevante é que o arsenal teórico e prático do psicólogo ajuda na clarificação da dinâmica total do paciente, tanto as manifestações somáticas quanto as psíquicas. Levando-se em conta que constantemente o médico se depara com pessoas cujas patologias não são explicadas por seus instrumentos tecnológicos, o auxílio do psicólogo pode ser relevante no diagnóstico e na intervenção. Além disso, cada vez mais, é evidente à equipe médica que os pacientes com determinadas patologias têm seu quadro clínico agravado por fatores emocionais, necessitando de intervenção psicológica (Angerami – Camon, 2003).

A autora desse trabalho foi residente por dois anos de um hospital universitário do Rio de Janeiro. Trabalhou por seis meses em uma enfermaria para atendimento de adolescentes e pôde, em seu trabalho, verificar a atuação nesse espaço. O psicólogo dessa enfermaria atendia aos adolescentes internados, assessorando, quando necessário, a equipe multidisciplinar para a condução do tratamento. A equipe neste setor era formada por médicos, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, assistentes sociais e psicólogos. De forma clara, foi possível perceber como que cada especialidade auxiliava na construção do atendimento ao jovem e aos familiares de forma humanizada. A enfermaria possuía na época dezesseis leitos, sendo oito para adolescentes do sexo feminino e oito para adolescentes do sexo masculino.

O setor da psicologia era formado pela supervisora, pelos residentes de Psicologia, pelos estagiários e pelos contratados em treinamento. Assim, os leitos eram divididos entre a equipe, sendo que cada um ficava responsável por determinados pacientes, enquanto estes estavam internados e nas suas subsequentes internações, caso isto ocorresse. Havia a possibilidade de continuidade do atendimento no ambulatório, após a alta.

O foco da equipe da psicologia era os pacientes internados e seus familiares, assim como a equipe multidisciplinar, quando essa tinha dificuldade no manejo de algum caso em particular. Portanto, o trabalho se dava em diversos momentos: no leito, nos corredores, na sala da equipe multidisciplinar, nas supervisões médicas diárias e também nas reuniões semanais de equipe multidisciplinar.

Todos os dias, normalmente no começo da tarde, participavam da supervisão o coordenador da enfermaria, os alunos e residentes de medicina e também de outras categorias profissionais. A participação da equipe da psicologia era obrigatória. Nestas reuniões eram passadas as evoluções dos pacientes e determinados os procedimentos a serem efetuados pela equipe. Mesmo com as reuniões multidisciplinares semanais era necessária a participação dos alunos nas reuniões diárias, já que na enfermaria há urgências que não podem aguardar para serem resolvidas.

Por ser uma unidade hospitalar de ensino universitário, observou-se que os jovens profissionais se deparavam com um trabalho, que, pela especificidade de ser com adolescentes, propiciava o surgimento da compaixão, mobilizando os afetos de amor ou de ódio e reações disfuncionais. É importante ressaltar que é necessário que haja respeito pelas reações emocionais da equipe, buscando compreendê-las de forma que possam integrar as polaridades, sem preconceitos e críticas.

Quando a equipe médica demonstra algum indício de dificuldade, seja transformando em doença o doente, seja objetivando algo da ordem do humano, é importante ver essas disfunções de contato como formas criativas de lidar com a dor (Jucá-Vasconcelos, 2010).

Por isso, tornou-se evidente a importância em orientar os profissionais e alunos, os auxiliando a elaborar as suas dificuldades.

Conforme a Resolução do CFP no. 02/01, a responsabilidade do psicólogo hospitalar também abrange os membros da equipe multidisciplinar, inclusive para assegurar o bem estar físico e emocional dos mesmos (CFP, 2001). É frequente, no entanto, haver resistência por parte dos profissionais em receber as intervenções psicológicas. Nesses casos deve-se lembrar de que a resistência se dá frequentemente na relação estabelecida por ambos os envolvidos. É preciso agir com arte e sabedoria para discernir o momento em que a resistência deverá ser compreendida como parte dessa pessoa, e quando deverá ser, apesar disso, desafiada de forma amorosa, empática e compreensiva (Hycner, 1995).

Alguns recortes de casos clínicos serão expostos a seguir de forma a esboçar o funcionamento da equipe multidisciplinar neste setor. O primeiro a ser relatado foi de uma adolescente com anorexia nervosa a qual mobilizou bastante a equipe. Sua mãe, bastante intrusiva, demandava à equipe muita energia, que expressavam raiva, chegando a indagar a possibilidade da mãe não permanecer na enfermaria. Essa preocupação em relação à paciente, falava da angústia da equipe de saúde que diante das demandas da mãe, receou que a adolescente não seguisse satisfatoriamente o tratamento. Assim, foi abordado durante a supervisão médica sobre o atendimento prestado a essa mãe pela psicologia. Essa afirmação ajudou a diminuição da angústia, uma vez que a mesma já estava em “tratamento”.

Outro aspecto ponderado foi que não se poderia esquecer que aquela senhora era mãe da adolescente e que não caberia à equipe tirá-la de perto de sua filha, mesmo que houvesse comportamentos que inicialmente fossem vistos como danosos à mesma. Foi explicitado do mesmo modo algumas questões pertinentes sobre a dinâmica familiar da paciente, tornando claro que ambas eram corresponsáveis pelo processo em que viviam.

Outro atendimento foi o de Joana , uma adolescente de 17 anos, internada por intoxicação por medicamento por tentativa de suicídio. Por ser uma paciente que tentou o suicídio e com ideações suicidas ainda presentes, despertou na equipe muitos sentimentos, como angústia, raiva e medo de que a jovem pudesse se matar estando internada. Esses sentimentos puderam ser vistos em supervisões médicas onde se falou sobre a incoerência de uma paciente “dita psiquiátrica” ser internada numa enfermaria de um hospital geral e, também, sobre a apreensão em como manejar a estadia da paciente.

Com estas internações, que aconteceram em alguns meses, observou-se que a enfermaria começou a se habituar em internar e manejar pacientes “ditos psiquiátricos” como as citadas – anorexia e tentativa de suicídio. Apesar da ambivalência por parte dos profissionais, notou-se a importância de se internar tais pacientes por necessidade de cuidar do físico, pela premência que saíssem do risco iminente de morte. Sendo uma grande evolução por parte da enfermaria, já que muitos casos como estes são marginalizados na rede pública e até mesmo particular de saúde do Estado do Rio de Janeiro, não aceitando a internação de pacientes com diagnósticos semelhantes.

Mais um acolhimento interessante para se relatar foi o do Thiago, um adolescente do sexo masculino de 14 anos, que abriu quadro de diabetes tipo I. O objetivo da sua internação para a equipe médica foi melhorar seu estado geral e treiná-lo quanto aos procedimentos que deveria ter quando sentisse determinados sintomas da doença. Em seu atendimento com a psicologia, o paciente expressou o desejo de saber mais sobre a doença para não precisar mais ser internado, falou do anseio em voltar a treinar profissionalmente judô e em voltar a fazer suas atividades diárias. Ele se mostrou competente em solucionar seus problemas no atendimento com a psicóloga, além de poder ter expressado o que esperava de ajuda da equipe.

Foi compartilhado, então, na supervisão médica este desejo de Thiago, apontando para um bom prognóstico quanto ao seu compromisso com o tratamento. Com isso também, foi aumentada a implicação da equipe em informá-lo sobre sua doença, tendo sido solicitado que o próprio staff da nutrição fosse analisar o caso para adequar a alimentação do paciente às suas necessidades específicas de atleta. Sendo assim, Thiago foi beneficiado ao ser visto por diferentes prismas.

Pode-se discorrer também sobre Carlos, um adolescente do sexo masculino, estudante, previamente hígido, que iniciou com um quadro de mal-estar, dor no corpo, placas e febre. O fato de ser jovem mobilizou a equipe da enfermaria que não encontrou inicialmente um diagnóstico decisivo. Apesar do diagnóstico “dengue hemorrágica” ser encontrado, todavia não conseguia explicar a gravidade do estado do paciente, que piorava drasticamente. Pelos mesmos motivos, os pais do adolescente ficaram angustiados pelo enigma do diagnóstico que, mesmo após cerca de três meses, não havia sido concluído. Este episódico ratificou a participação da psicóloga nas visitas médicas, propiciando uma visão interdisciplinar no manejo do adolescente e de seus familiares. Favorecendo, também, que a equipe falasse sobre esse não saber naquele espaço, tornando-a mais disposta emocionalmente a trabalhar a problemática frente ao paciente e aos seus familiares.

Na enfermaria, durante a visita médica puderam ser observados também alguns casos em que havia a recusa do adolescente em tomar os medicamentos, assim como comparecer às consultas médicas, psicológicas ou de outras especialidades, importantes para o melhor prognóstico após a alta da enfermaria. Estes episódios propiciaram debates acerca de como proceder com pacientes que, apesar da prescrição de procedimentos e medicamentos em prol de sua saúde, não aderem ao tratamento. O médico nesta situação se deparava com o limite de sua atuação, remetendo ao trabalho de Szpirko (2000) que abordou que nesses casos a doença não tem a linearidade do saber médico e o paciente não corresponde ao modelo esperado pela equipe. Isso torna evidente que mesmo com o desejo de cura por parte do paciente, muitas vezes este possui ganhos secundários através da doença, dos quais não deseja abrir mão.

Assim, pode-se afirmar que o psicólogo que se encontra em um ambiente hospitalar tem várias responsabilidades, tais como:

“esclarecer sobre acontecimentos biológicos que provocam mudanças significativas na vida das pessoas; informar sobre causas, conseqüências e tratamento de doenças que os pacientes apresentam; assegurar a adesão ao tratamento; auxiliar na adaptação à nova condição de saúde; propiciar trocas de experiência entre pessoas que enfrentam situações semelhantes; criar oportunidades de contato com a equipe para esclarecer dúvidas; comunicar normas e rotinas de determinada unidade; e avaliar a qualidade dos serviços oferecidos pela instituição” (Tonetto, op.cit).

Todas as responsabilidades citadas acima não cabem à atuação solitária do psicólogo, esse somente terá êxito através da boa relação com a equipe multidisciplinar. O bom funcionamento do grupo, de acordo com Romano (1999), depende da percepção por parte de cada um que cada conhecimento não dá conta de tudo. Portanto, torna-se imprescindível a delimitação de cada saber de forma complementar, sem julgamentos, sendo capaz de agregar os saberes de forma a criar algo novo.

Portanto, na psicologia hospitalar deve-se procurar ter uma interlocução contínua, já que contatos esporádicos não dão abertura para que certas questões possam ser analisadas. Por isso, também, ressalto a importância da participação nas supervisões médicas, já que mesmo que aparentemente não haja demanda todos os dias, esta somente poderá ser criada após um espaço relacional entre o psicólogo e os demais membros do corpo médico. Com este espaço construído, é possível, através da demanda por parte do profissional, que o psicólogo analise se a questão apresentada se refere ao paciente ou à dificuldade do profissional em lidar com o paciente. Dependendo de cada caso, haverá uma conduta: se a dificuldade for do membro da equipe, buscará novas maneiras de lidar com o caso; se for do paciente, esse deverá ser atendido. (Tonetto, ibidem).

Portanto, a presença do psicólogo possibilita a construção de um lugar na equipe. Porém, é necessário que ele seja capaz de ao mesmo tempo estar presente na equipe e ser capaz de se distanciar. Isso porque, como foi exposto por Hycner (1995), o processo de terapia necessita que se integrem as dimensões objetiva e subjetiva de maneira harmoniosa. Ao mesmo tempo em que é necessário estar presente por inteiro na relação que se estabelece, é igualmente importante ter a capacidade de se distanciar para conseguir refletir sobre o que está sendo vivenciado no aqui e agora. É a partir da mescla dessas duas dimensões que se dá o processo psicoterapêutico.

Tonetto (ibidem) assinala que a falta de tempo em comparecer às reuniões multidisciplinares e participar da discussão de casos dificulta o trabalho em equipe multidisciplinar. Aponta também que a fim de que se tenha uma boa atuação com a equipe é necessário que o psicólogo seja capaz de apresentar suas conclusões e defendê-las teoricamente. Caso o mesmo não se posicione, os colegas não terão meios de conhecer o trabalho pela escassez de evidências e de meios para considerar a efetividade do trabalho do psicólogo. Cabe acrescentar a importância na forma de se expressar, privilegiando linguagem coerente com o entendimento do grupo de maneira clara, objetiva e coerente, sem jargões técnicos da psicologia.

Outro aspecto relevante é perceber as possibilidades e limites de atuação do psicólogo na equipe, contribuindo com a mesma. Só a partir do reconhecimento do grupo quanto à eficiência no manejo de situações complicadas é que ele pode respeitar, e por vezes admirar, o seu trabalho (Romano, 1999).

A partir de minha prática e da teoria torna-se claro a importância do psicólogo nas supervisões médicas, já que sua participação propicia que questões subjetivas possam ser ponderadas pelos participantes. Além disso, uma visão abrangente sobre o paciente e seus cuidadores favorece o crescimento de todos os envolvidos, que aprendem mais sobre si mesmos e sobre como se relacionam com os demais.


REFERÊNCIAS

 

ANGERAMI - CAMON, Valdemar Augusto. O Psicólogo no Hospital. In: _____. (org) Psicologia Hospitalar: Teoria e Prática. Pioneira Thomson Learning, São Paulo, 2003.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. RESOLUÇÃO CFP Nº 02/01. Brasília, 2001. Disponível em: <http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/legislacao/resolucao/>. Acesso em: 24 out. 2011.

HYCNER, Richard. De pessoa a pessoa: psicoterapia dialógica. Summus, São Paulo, 1995.

JUCÁ-VASCONCELOS, Helena P.. Reflexões sobre o hospital geral: um olhar psi e histórico. IGT na Rede, Rio de Janeiro, RJ, 7.13, 28 12 2010. Disponível em: <http://www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=285>. Acesso em: 24 out. 2011.

ROMANO, Bellkiss Wilma. Princípios para a prática da psicologia clínica em hospitais. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.

SZPIRKO, Jean. Ser doente, ter uma doença. In: ALBERTI, Sonia e ELIA, Luciano. Clínica e pesquisa em psicanálise. Marca d`Água, Rio de Janeiro, 2000.

TONETTO, Aline M. e GOMES, William B. Competências e habilidades necessárias à prática psicológica hospitalar. Arquivos Brasileiros de Psicologia. Vol. 59, N° 1, 2007.


Endereço para correspondência


Helena Pinheiro Jucá-Vasconcelos

E-mail: psi.helena@gmail.com

Recebido em: 25/10/11
Aprovado em: 22/11/11