RESUMO

O uso de drogas como um ajuste possível do sistema familiar e sua possível terapêutica

Drug abuse as a creative adjustment of the family system and its possible therapeutic

Eduardo de Sequeira Cremer

Endereço para correspondência:


RESUMO

A dependência química é um tema difícil quanto à abordagem clínica. Por isso, parece importante pensar nas questões que surgem nesse tipo de atendimento tomando como base os pressupostos da Gestalt-terapia, para que o trabalho psicoterapêutico traga uma melhora, seja ela qual for a quem procura. Esclarecendo a síndrome seguindo a linha gestáltica, surgem possibilidades de cuidado e, principalmente, a importância da inclusão da família no processo psicoterapêutico. Essa proposta encontra apoio também na Teoria Sistêmica, que compreende a família como um sistema em que seus componentes encontram-se interligados, sugerindo que um sintoma que aparece em uma pessoa trata-se de um sinal coerente com o modo de vida daquele grupo familiar.

Palavras - chave: dependência química; adicto; família; sistema; sintoma.



ABSTRACT

The addiction is a difficult subject to the clinical approach. Therefore, it seems important to consider the issues that come in such service based on the assumptions of Gestalt-therapy, so that psychotherapeutic work can bring an improvement, whatever it is, for those looking for that. Clarifying the problem through Gestalt-therapy, there are possibilities of care and, especially, the importance of including family in the psychotherapeutic process. This proposal also finds support Systemic theory, which includes family as a system where components are interconnected, suggesting that a symptom that appears in a person is a consistent sign with the way of that family life.

Keywords: substance abuse; addict; family; system; symptom.



Introdução

Frequentemente ouvimos muitas histórias de famílias que são destroçadas pelo uso e dependência de drogas de um de seus componentes. Senão no consultório, acompanhamos o que nos chega através da mídia, meio pelo qual temos contato com muitas histórias com esse roteiro que, não raro, terminam de forma trágica.

Nesses casos vemos sempre uma família atônita, sem entender o motivo que levou tal pessoa a enveredar por esse caminho e, ato contínuo, em algumas situações, sem conseguir compreender alguma reação intempestiva de um familiar contra tal indivíduo. Não é incomum nessa dinâmica alguém terminar perdendo a vida nos casos que acompanhamos.

Aliás, esse tipo de roteiro tem por definição um estilo de vida que se desenvolve testando o limite das pessoas envolvidas, forçando sempre o alargamento do que consideram tolerável para suas vidas. Essa característica torna os casos sempre muito próximos de situações de morte, seja por overdose do usuário, seja por falência psicofisiológica de algum componente do grupo ou, nos casos mais graves, no assassinato de um dos envolvidos.

Observando por esse ângulo o uso de drogas e a dependência das mesmas se constitui num problema grave de saúde pública que merece muita atenção dos profissionais da área, sobretudo hoje em dia em que parece vivermos uma epidemia no que tange a essa questão. Precisamos dar a devida importância até mesmo para que, atentos ao problema, possamos ajudar da melhor maneira possível o usuário e seus familiares, que ficam perdidos em meio a essa trama. De forma geral, a família não consegue compreender como essa questão se desenvolveu em seu interior e, não raro, não conseguem entender que sentido tem aquilo para aquele grupo. Nem se permitem perceber se são participantes da construção de um possível dependente.

Nesses casos o usuário é olhado como se fosse o errado daquela família e seu comportamento seria uma produção singular que não está em consonância com o cotidiano do sistema familiar. Minha pretensão aqui é fazer, à luz de uma compreensão gestáltica, uma discussão mais aberta sobre a questão das drogas. Em primeiro lugar, classificando o uso de drogas, dentro dessa perspectiva, como um ajustamento de tal grupo e também do próprio usuário, ajustamento esse que não deixa de ser criativo. E em segundo lugar entendendo a família como um sistema que se interliga e produz situações que fazem sentido para a sua dinâmica, indo, portanto, de encontro
à posição familiar predominante.

Junto a isso me valho também de algum conhecimento teórico-prático que obtive em minha formação de Conselheiro em dependência química, período em que participei de diversos atendimentos a esse tipo de demanda realizados em consonância com os preceitos metodológicos dos Doze Passos, filosofia utilizada nos grupos anônimos de auto ajuda, como o AA e o NA . A orientação clínica era fundamentada também nas teorias de base da Terapia Cognitivo Comportamental, campo teórico-clínico muito presente entre os profissionais que se dedicam a trabalhar nessa área. O que tento aqui é observar minha experiência com esse tipo de atendimento, me utilizando-me das lentes teóricas da Gestalt-terapia.

Para tanto, primeiro tento desnaturalizar a idéia das drogas como ruins a priori, já que em muitas situações elas são até bem vindas, como é o caso, por exemplo, dos remédios, o que vai diferir na realidade é que tipo de uso se faz. Depois passo a relação que a família estabelece quando percebe que essa questão faz parte de sua vivência chegando, logo após, a discussão de construtos teóricos da Gestalt-terapia que nos ajudam a compreender esse processo. Por fim, falo sobre o possível atendimento a essa demanda não construindo prescrições, mas levantando possibilidades para essa difícil atuação, com um ponto de destaque que é a inclusão da família do usuário em determinados encontros com o psicoterapeuta.


Uma breve consideração sobre o uso e o abuso de drogas em nossa sociedade

Drogas são usadas pelas diferentes sociedades humanas há muito tempo. O consumo dessas substâncias sempre esteve presente na forma de remédios ou, mesmo, para alterar a consciência (Sampaio, 2003, p 1). No segundo caso, na maior parte das vezes, o consumo se dava em rituais religiosos. Como nos esclarece Masur (1985), há muitos grupamentos sociais que se utilizam de drogas para fortalecer a ligação entre seus membros em ritos religiosos, de iniciação ou só como um componente da socialização. Essa autora cita os portuários gregos que usam maconha enquanto conversam, sem que isso signifique algum comportamento antissocial, índios na Bolívia que usam bebidas alcoólicas em um rito secular e outros povos indígenas, nesse caso mexicanos, que consomem cogumelos alucinogênicos em cerimônias religiosas. Todas essas atividades estão circunscritas em seu formato, momento e duração de ocorrência, possuindo regras bem definidas para o consumo dessas drogas.

“Obviamente, a utilização de drogas em culturas semelhantes à nossa obedece a padrões que nada têm em comum com os que foram descritos. E não poderia ser diferente. Culturas onde não existem normas sobre o uso de drogas ou que quando existem são ambíguas, frouxas, só podem gerar um uso indiscriminado e individualista que não se submete a restrições.” (Mansur, 1985, p. 58)


Hoje esse tema ganhou uma dimensão sem paralelo. O uso indiscriminado de tais substâncias sem estarem ligadas à cura ou a rituais parece ter provocado um problema social amplo. Esse tipo de uso, sem um balizamento em regras específicas, fez com que se perdessem os limites confluindo, em muitos casos, para que esse comportamento se tornasse o centro da vida dos usuários.

Então, o uso de drogas começa a se tornar um problema quando é usada desconectada de suas funções principais, ou em quantidades exageradas ao que seria conveniente. Um exemplo disso é o que acontece hoje no Brasil, percebemos um consumo exagerado de muitas drogas, incluindo as legais, como antidepressivos e álcool. O Rivotril e seu genérico, por exemplo, tiveram um aumento de 36% nas vendas entre 2006 e 2010 e já é o segundo remédio mais vendido entre os que precisam de prescrição, como divulgou a Revista Veja em sua edição 2201 ano 44, n. 4, do ano de 2011.

Esses dados chamam nossa atenção para forma como nossa sociedade está vivendo, parece que precisamos muito de drogas, as que produzem relaxamento, alienação, mais potência ou um bem estar aparente. Masur (1985), falando dos efeitos peculiares de cada uma, classifica em drogas que fazem com que as pessoas se “liguem” (drogas estimulantes), se “desliguem” (drogas depressoras) e algumas que fazem aparecer sons inexistentes ou figuras irreais (drogas alucinogênicas). Essas sensações, mesmo que transitórias, são muito procuradas principalmente porque não implicam o indivíduo em suas questões, algo que sem dúvida é mais trabalhoso do que mascarar a angústia através do uso de uma substância externa, proposta que apazigua as dificuldades de maneira instantânea.

Não à toa chamaram, há tempos atrás, uma droga que altera o psiquismo, ou pelo menos a sua química, de pílula da felicidade, por exemplo. Esse processo não parece ser uma simples qualificação ingênua e, mesmo que seja, dá a dimensão de como a sociedade avalia essas medicações e o que esperam delas. Do ponto de vista do mercado também é ótimo, já que, com essa denominação, quem não gostaria de comprar tal remédio. Hoje é comum observarmos um balcão de farmácia com muitas pessoas comprando muitas drogas dessa linhagem, em sua maioria, com o objetivo acima mencionado.

Percebemos, então, o quanto temos e produzimos dependência de drogas em nossa sociedade. Não discutindo se é necessário ou não, me interessa aqui os diversos usos e principalmente os indevidos, já que tais remédios, classificados como psiquiátricos, muitas vezes são usados sem prescrição médica, o que o coloca como tipo de uso que também pode ser deletério para o usuário.

Se vemos o uso de muitos tipos de drogas atravessando os séculos, então, por que hoje esse tema ganha contornos de algo perigoso? E quais drogas representam esse perigo e quais não fazem parte dessa categoria? O que observamos nos discursos antidrogas é que as substâncias consideradas perigosas são associadas às ilegais e as que não causam problemas são consideradas legais. O que precisamos ter em mente é em que momento o uso se torna passível de intervenção e que todas as drogas são potenciais perigos, se mal administradas. Portanto, talvez a pergunta mais importante seja: de que forma estão sendo usadas? Essa pergunta nos faz refletir sobre usos possíveis, caminhando na direção contrária de uma generalização negativa das substâncias.

Essa avaliação é importante principalmente para definir a abordagem mais adequada num atendimento que envolva um usuário de drogas. É difícil precisar se o uso é “social”, se já há um abuso ou se já estamos no terreno da dependência. Por uma perspectiva cientificista, há uma busca por parâmetros objetivos, como os que encontramos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM-IV. Nesse compendio estão descritos sete sintomas, dos quais uma pessoa deve apresentar ao menos três para ter um diagnóstico de dependência química. Os sete sintomas descritos, somente para efeito de esclarecimento, são os que se seguem: tolerância; abstinência; consumo da substância em maiores quantidades ou por um período mais longo do que de início pretendia; tentativas frustradas de diminuir ou interromper o uso; dispender muito tempo obtendo a substância, usando-a ou recuperando-se de seus efeitos; atividades sociais, ocupacionais ou recreativas abandonadas ou reduzidas em virtude do seu uso; apesar de admitir a sua contribuição para um problema psicológico ou físico, a pessoa continua usando a substância.

Outras classificações tentam enquadrar a dependência no aparecimento da Síndrome de Abstinência no caso da verificação de sintomas físicos de mal-estar (Masur, 1985) ou em enquadre mais subjetivo, ao tratar da dependência psicológica, definindo pela frequência com que é usada e o tempo e empenho que se investe na busca pela droga, com a consequente diminuição de interesse em outras áreas da vida. Seria como se a droga ocupasse lugar central nos pensamentos, emoções e atividades da pessoa (Masur, 1985). Todas essas classificações se tornam confusas de serem feitas sem o acompanhamento do indivíduo em questão e, pela perspectiva gestáltica, não faria muito sentido fazê-lo dessa maneira. O diagnóstico oriundo de enquadres objetivos e, portanto, externos ao campo de vida do sujeito não se alinha a uma visão gestáltica, que se notabilizaria com algo próximo ao que encontramos no trecho abaixo:

“A frequência e quantidade de álcool ou droga ingeridas podem ser menos relevantes para o diagnóstico em alguns casos que a forma de consumo e a interferência deste no cotidiano da pessoa, no seu estilo de vida. Ou seja, o quando e o quanto devem ser avaliados com o fator como a pessoa utiliza o álcool ou droga.”(SAMPAIO, 2003.p 2, grifos nossos)

Além disso, estabelecido o diagnóstico, é preciso observar também se há uma demanda do usuário por atendimento a essa questão e por último, em caso de consentimento ao trabalho do psicoterapeuta, ainda há uma questão a se resolver: trabalharmos com foco e proposta inicial na abstinência ou acompanharmos o movimento do indivíduo. Muitos atendimentos se dão com proposta de abstinência, como, por exemplo, a filosofia dos Doze Passos do AA e do NA e algumas propostas baseadas na Teoria Cognitivo Comportamental, outros fazem o acompanhamento sem a finalidade da interrupção do uso, como na proposta de Redução de Danos, orientação dos Caps-ad, instituições que recebem usuários de drogas e faz parte da aparelhagem pública de saúde mental. Mais a frente colocarei as possibilidades de trabalho com os pressupostos da Gestalt-terapia.

Portanto, a priori, é difícil dizer sem a ajuda do usuário o que deve ser feito com seu uso e se isso é um problema para ele. A partir disso, não seria interessante ele ser tratado como uma pessoa anormal por usar determinada droga. Seria mais coerente também não ter como princípio a interrupção do uso, a não ser que ele mesmo apresente como demanda. Torna-se difícil estabelecermos exatamente qual o procedimento adotar num primeiro contato com alguém que se utiliza de determinadas substâncias, do mesmo modo como é complicado chegar ao diagnóstico, como coloquei acima.

Essa dificuldade de avaliação se torna mais clara principalmente no uso das drogas legais, que possuem um simbolismo diferente das ilegais. Como seu consumo é uma infração às leis, o usuário já demonstra uma falta de limite em seu contato com essas substâncias. A dependência de álcool, por exemplo, em diversas oportunidades só é diagnosticada com a observação de perdas fundamentais na vida do indivíduo, como trabalho e família. Até que isso ocorra, a pessoa que não passa um dia sem beber, que vincula situações sociais somente ao álcool, mas que não tem nenhuma perda social aparente, não recebe o mesmo diagnóstico. Não tentando balizar de forma objetiva nenhum dos dois casos, de fato é algo difícil de avaliar somente com uma observação.

De qualquer maneira todos usamos drogas em alguma medida e este usuário que, às vezes, usa um entorpecente ilegal não parece ser diferente em nada - do ponto de vista clínico e não legal - de alguém que usa antidepressivos, anfetaminas ou remédios para impotência sexual sem a devida prescrição e orientação médica. Todos, em algum momento, acabaram por usar alguma dessas sustâncias, mas o que assistimos é que algumas drogas, ditas perigosas, são discriminadas junto com seus usuários principalmente por serem ilegais.

Essa classificação parece aleatória quando falamos em saúde pública, principalmente porque o álcool, muito consumido em nosso país, está na liderança das estatísticas de causas de acidentes de trânsito em nossa cidade, como observado em matéria da Revista Época (2003) que divulgou os dados de uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz. Também está associado a brigas que, em algumas situações, terminam em homicídios ou na destruição de famílias pela violência. Sem falar de sua síndrome de abstinência, uma das piores entre as drogas. Os critérios de classificação não são muito claros e para entendê-los precisaríamos de uma análise histórica, algo que não farei no presente trabalho.

Sem fazer apologia a descriminalização das drogas, minha intenção aqui é somente chamar atenção para uma diferença que, sem dúvida, dificulta a abordagem do profissional de saúde mental no atendimento de usuários e familiares. Na vida familiar isso também se torna complexo na medida em que alguém que bebe todo dia, ocasionando algumas perdas na vida social ou familiar, não é repreendido da mesma forma que outro componente desse grupo que fuma maconha eventualmente.

É claro que algumas drogas têm um potencial de dependência física maior que outras, mas todas elas apresentam risco e não há como prever quem pode desenvolver esse quadro e quem não vai ter esse tipo de problema. Portanto, qualquer uso de droga é igualmente perigoso do ponto de vista fisiológico e psíquico. E nos casos em que a dependência se instala, lidar com as questões psicológicas do problema se torna difícil porque a droga, possivelmente, tem uma função na regulação organísmica do usuário. Da mesma maneira como este tem função importante na trama familiar que o aponta como “doente”, componente classificado pela nossa literatura como paciente identificado.


As drogas como ajuste criativo

Observando o grande consumo de drogas psicoativas em nossa sociedade suspeitamos de uma função importante que ela pode ter na vida de quem usa. Percebemos muitas vezes que essas substâncias são utilizadas com objetivo de compor artificialmente alguma deficiência de ordem física, psíquica ou de personalidade.

Um exemplo disso é o uso de Viagra por jovens que não tem qualquer distúrbio físico, mas que pretendem aumentar seu desempenho artificialmente. O uso de anabolizantes para alcançar o corpo ideal de forma mais rápida, assim como o consumo de anfetaminas para emagrecer pelo mesmo objetivo, também são exemplos contemporâneos do uso de substâncias que visam o aumento de desempenho. O que é usado com a função aparentemente física tem repercussões importantes na auto estima de seus usuários. Numa sociedade que valoriza muito um estilo de corpo específico, os dois últimos exemplos, claramente, geram benefícios em termos de construção psíquica.

Da mesma forma são as drogas psicoativas. O cigarro, por exemplo, em boa parte do século passado, foi associado a um glamour sustentado pela mídia através de propagandas e de sua inserção em filmes com seus principais atores fazendo uso da substância. Esse movimento fez a imagem de fumar cigarro se associar a um requinte que trazia dividendos sociais para quem fazia uso. Hoje o cigarro foi banido de qualquer campanha publicitária, mas continua sendo consumido, mesmo que em menor escala.

De qualquer maneira, os adolescentes, faixa etária em que a maioria inicia esse consumo, continuam usando cigarro e percebe-se que pela idade em que isso é feito esse comportamento lhes confere algum benefício no que tange a sua auto-estima. Via de regra, se perguntamos para que fumam não sabem precisar muito bem, mas o fato do início do hábito da maioria dos usuários de cigarro se dar na adolescência chama a atenção, principalmente por ser uma época de incertezas e inseguranças existenciais. Frequentemente fumar dá aos adolescentes a sensação da entrada no mundo adulto mais precoce, já que, por lei, somente os maiores de dezoito anos poderiam fazer uso da substância. Isso pode fazer com que se sintam mais seguros, por fazerem algo que é reservado aos mais velhos. Esse comportamento ainda vai contra a orientação da maioria dos pais, estabelecendo aquele velho antagonismo relacional entre pais e filhos.

Estendi o comentário sobre o uso do cigarro por ser uma substância que não traz, a princípio, nenhum efeito físico mais imediato pelo seu uso, concorrendo para que pensemos que o mesmo está restrito a um apoio psicológico para uma situação desconfortável específica. O uso do cigarro não provoca sensação de bem-estar e euforia, nem de poder, nem de estimulação sexual intensa (MASUR, 1985). Nesse caso é como se a droga tivesse o poder de dar ao seu usuário uma adequação que este não alcança através de seus próprios meios, porque, possivelmente, não possui essa condição em determinado momento. Como a inadequação muitas vezes promove sofrimento, o usuário prefere um meio artificial, mais rápido e menos doloroso para lidar com essa situação.

Esse tipo de objetivo se estende também a outras substâncias psicoativas como álcool, inalantes, ácido, maconha, cocaína entre outros, com potenciais de dependência variados. Essas substâncias têm tantas funções específicas como o número de pessoas que se utilizam delas, assim como acontece em qualquer outro movimento obsessivo. Cada indivíduo terá uma história construída e uma forma de viver que encontram na droga um importante componente de apoio, alguns usam para relaxar, outros para suportar a pressão que está presente em suas vidas. Em outros casos o objetivo é encorajar a fazer algo, a sentir menos vergonha ou desconforto em alguma situação, entre outros. Esses são alguns poucos exemplos das funções que uma droga pode ter na vida de seu usuário, como enumera Masur (1985, p. 32):

“Existe um fator da maior importância – o que a droga vem a significar. Que espaços seus efeitos vêm preencher, que ausência de perspectivas elas vêm suprir. Se isto não fosse importante criar-se-ia o mito da inevitabilidade. Qualquer um que experimentasse psicotrópicos entraria no ciclo de dependência. Não é assim!” (MASUR, 1985. p.32)

Portanto, além do prazer físico que o uso dessas drogas proporciona, incluindo aqui o produzido pelo alívio da abstinência, a substância escolhida surge, muitas vezes, como um componente que possui sentido para quem faz uso. Como um sintoma que é, esse tipo de compulsão, como as outras, aparece como uma tentativa de solução para as questões existenciais do indivíduo, algo que não atinge o alvo e, por isso, se repete. Como nos lembra Perls (1988, p. 42/3):

“De modo pervertido, a necessidade deste ritual parece formar a base das neuroses obsessivas e compulsões – aquelas que se revelam através de necessidades tão ridículas como a compulsão de lavar as mãos a cada vinte minutos. Os rituais obsessivos deste tipo sempre têm raízes sociais e pessoais. Contudo, mantêm a forma social devido ao conteúdo social e, ao mesmo tempo, são incapazes de satisfazer as necessidades móveis do indivíduo. São, no máximo, formas estéreis de expressão – que não dão nada a César nem a si mesmo.”

Sendo assim, o uso de droga entra como uma tentativa de resolução de uma questão, provavelmente não muito clara para quem a consome, mas de grande importância para sua vida.

Seguindo essa linha de raciocínio percebemos, então, que tal qual um sintoma, a entrada das drogas possui alguma função específica na vida de uma pessoa. Pensando de forma gestáltica, balizando sintoma e droga, trabalhamos de forma a compreender o que tal movimento significa na vida do indivíduo, qual posição ocupa e qual relação tem com sua história de vida. Com isso nos concentramos em contextualizar a questão e observar como é a vida daquele sujeito com a droga.

De modo inverso, ao focar o sintoma, perdemos a totalidade daquele sujeito e trabalhar para eliminá-lo seria perder a única pista que temos daquela questão. Em último caso, seria, ainda, extinguir a maneira existencial que o usuário possa ter conseguido produzir para equacionar as suas questões, classificando negativamente seu esforço de autorregulação.

“Além do mais, relembramos que o sintoma neurótico é uma estrutura intrínseca de elementos vitais e embotadores, e que o melhor self do paciente está investido nela. E por último que há o perigo de, ao dissolver as resistências, o paciente tornar-se menos do que era.” (PERLS; HEFFERLINE;GOODMAN, 1997, p. 95)



Se, gestalticamente, pensamos dessa forma também precisaríamos seguir essa linha para o processo psicoterapêutico em que a questão é o uso de drogas. Portanto, o trabalho não teria seu enfoque na abstinência, mas em compreender que tipo de escolha é essa e qual a sua função para o cliente.

Claro que é muito atrativo, especialmente nesses casos, ter como objetivo fazer com que o cliente consiga chegar a abstinência, já que o vício causa muitas perdas concretas em diversos setores da vida como: saúde física e mental, relações sociais, familiares e de trabalho. Além disso, quando esse sujeito nos chega ao consultório, em geral, se apresentam num estágio em que eles mesmos percebem que entraram num ciclo de autodestruição por causa do consumo de drogas e sua demanda é a interrupção do uso, eliminando, portanto, o sintoma. Dessa forma, é difícil o psicoterapeuta não ser seduzido a perseguir essa meta.

Caso opte por tomar essa direção, o psicólogo vai seguir um caminho diferenciado. De maneira geral, esse modelo se alinha mais intimamente ao da Terapia Cognitivo Comportamental, mas na realidade podemos nos apropriar dele de maneira que não contradiga nossos pressupostos teóricos. Nesse ponto podemos trazer à cena a Gestalt-terapia de Curta Duração, forma de pensamento desenvolvida por Ponciano (1999) que fala de um processo psicoterapêutico mais curto e mais focado no que é figura para o cliente.

Esse autor nos traz essa possibilidade sem se desfazer de conceitos básicos da Gestalt-terapia e lança o desafio de se tratar sim o sintoma, mas sem perder de vista o todo. Ressalta que não devemos deixar de lado o significado do sintoma sob pena de resolvermos sem curar. Coloca ainda que estar nas duas coisas, sintoma e totalidade, vai depender da sensibilidade, da criatividade, da disponibilidade de ambos [cliente e psicoterapeuta]. Só no aqui-e-agora se verá (PONCIANO, 1999.p. 139, definindo, assim, esse modelo:

“Gestalt-terapia individual de curta duração é um processo no qual o cliente e psicoterapeuta se envolvem em soluções imediatas e situações de qualquer ordem, vividas pelo cliente como problemática, utilizando todos os recursos disponíveis, de tal modo que num curto espaço de tempo o cliente possa se sentir confortável para conduzir sozinho sua própria vida.” (PONCIANO, 1999. p. 136)

É importante notar que a situação é vivida como problemática pelo cliente, ou seja, parte dele essa compreensão de algo não vai bem. Outro ponto a se destacar diz respeito a, num reduzido espaço de tempo, o cliente poder conduzir sozinho sua própria vida, que no nosso caso aqui, seria o momento do dependente químico estar mais equilibrado para poder observar outras questões. Portanto, nos utilizando dessa formulação teórica devemos nos apropriar do uso de drogas como figura, mas sem perder de vista sua função existencial, de maneira que, paralelamente a isso, não percamos oportunidade de trazermos a cena outras questões pertinentes. Por essa proposta, caso haja demanda do cliente, o psicoterapeuta pode optar por perseguir o caminho da abstinência.

Mesmo nesses casos o profissional deve estar atento com a expectativa de que isso ocorra de maneira consistente em curto prazo. Como em qualquer atitude repetitiva, ao longo do processo vamos observar evoluções e involuções no quadro, confluindo, no caso do uso de drogas, em recaídas - como é chamado o processo de interrupção de abstinência - no caminho da psicoterapia. Compreender esse processo deixa o psicoterapeuta em uma posição mais confortável diante de suas frustrações com relação ao que entende como melhora do cliente. Em caso da expectativa que a evolução seja linear, esse tipo de atendimento se torna muito frustrante para o profissional, com possíveis reflexos em seu investimento no processo psicoterapêutico.

Nesses casos, a leitura que proponho aqui é ir na direção de compreender que a recaída faz parte desse tipo de atendimento e conviver com isso é uma das tarefas do gestalt-terapeuta. A observação do caso por esse ângulo, tendo em vista o ajustamento criativo, faz com que o atendimento se torne menos frustrante, já que as chamadas “recaídas” acabam permeando o processo e podem ser compreendidas como qualquer repetição neurótica.

O uso de drogas no sistema familiar

Falamos anteriormente sobre a função que há no uso de drogas para o seu consumidor, da mesma maneira esse indivíduo tem um encaixe no ambiente familiar. Esse modo de pensar, familiar a Gestalt-terapia, advém do Modelo Sistêmico cuja idéia central [...] é ser o “doente”, ou membro sintomático, apenas um representante circunstancial de alguma disfunção no sistema familiar. (CALIL, 1987. p.17) Portanto, entendemos que a família funciona como um sistema total em que seus membros influenciam e simultaneamente são influenciados pelos comportamentos de todos os outros (CALIL, 1987, p. 17). Dessa forma, concluímos que o surgimento da dependência química faz sentido em determinada família e se desenvolve com a contribuição de todos os envolvidos.

Essa influência mútua pode ser observada nas famílias que produzem esse sintoma através de uma característica muito marcante: a falta de limites entre seus membros. É muito comum esses grupos familiares apresentarem indefinição hierárquica, papéis familiares trocados (filhos responsáveis pelos adultos e adultos infantis), dificuldades com regras ou ausência das mesmas, limites ausentes e dependência simbiótica entre seus membros (SAMPAIO, 2003, p. 4). Essas características se aproximam muito do nosso entendimento gestáltico que nomeamos de confluência. Perls (1988, p. 52) descreve tal mecanismo, chamado de neurótico, como a dificuldade da pessoa em se dar conta da barreira que existe entre ela e o outro, não sabe onde termina seu espaço e começa o do outro. Num grupo familiar isso pode ocasionar as confusões descritas por Sampaio, características comuns nas famílias que desenvolvem uma história de drogadição. Sampaio (2003, p. 10) ainda completa:

“Um dos sintomas da ausência de limites numa família é a dependência química. Ouvem-se em centros de recuperação pais dizendo: ‘Eu nunca tive nada e esse garoto sempre teve tudo o que quis. Como pode usar drogas se tem tudo?’ Não sendo acostumado a receber um não, o dependente químico não se sente capaz de encarar os limites presentes na escola, no trabalho. Sem ter internalizados direitos e deveres a partir de sua própria família, ele pode tornar-se um fora-da-lei para a sociedade.”

Percebemos, então, uma família confusa em seus papéis, fato que pode ser repetido como sintoma pelas gerações familiares. Muitas vezes os filhos acabam trilhando o caminho da dependência química, já presente em sua família de origem, ou buscam alguém que possua o sintoma. Nesse segundo caso, o encontro se dá por familiaridade de condições de vida, já que, tendo essa experiência na família nuclear, o indivíduo busca fora dela a mesma estrutura, visto que sabe lidar com essa condição. Claro que isso ocorre sem a percepção dos envolvidos que, na maioria dos casos, rejeitam esse modo de funcionamento, não conseguindo compreender que o sistema familiar está envolvido na construção do sintoma.

“Assim se forma o ciclo de adicção nas gerações. Os membros da família aprenderam a linguagem da adicção; na altura de formarem relações fora da família, procuram pessoas que falem a mesma linguagem. Esta procura selectiva não se dá a um nível consciente – tem lugar a um nível muito mais profundo, o nível emocional.” (NAKKEN, 1996, p. 111)

Portanto, quando a dependência química aparece na vida familiar, de maneira geral, o sistema não se identifica com o sintoma, observa o usuário como estranho a família, quando, na realidade, ele está sinalizando algo produzido por aquele grupo. Nesse movimento são produzidas duas consequências imediatas: o surgimento do que chamamos de paciente identificado e a dificuldade correlata da família em observar a sua parcela de responsabilidade na construção de tal situação.

O paciente identificado é apresentado como um indivíduo problemático que não quer deixar de usar a droga de escolha por opção deliberada e muitas vezes é acusado de destruir a família que, por sua vez, se vê como vítima de todo o processo, não observando que participa da construção do quadro. Por esse mesmo motivo, muitas vezes também acaba não se engajando no tratamento, como proposto em alguns casos. Esse modo de pensar não se traduz em retirar a responsabilidade do usuário, já que, analisando com mais acuidade, é opção dele sê-lo, só não podemos deixar de lado que a família tem seu papel nessa produção, embora não cause diretamente o fato.

“Nenhum subsistema ‘causa’ nada. Os eventos dentro e entre os sistemas são multideterminados. Não há duas coisas que tenham um relacionamento causal direto. Os processos não são só lineares; são complexos e existem simultaneamente em vários níveis diferentes.” (ZINKER, 2001, p. 81)

Dessa forma a família, apesar de não ser a causa linear do sintoma, participa de uma construção que tende a se manter. Calil (1987, p.19) traz a compreensão desse modelo colocando que cada família desenvolve formas básicas, específicas e padronizadas de comportamento garantindo, através da repetição, uma organização e previsibilidade sobre a forma de agir de seus membros. É como se houvessem regras para se relacionarem, mas elas não estão escritas em lugar nenhum e nem são verbalizadas. O grupo sempre vai tentar fazer com que os combinados permaneçam, tendendo, sempre, retornar ao equilíbrio anterior, já que sabem de antemão como funciona.

No caso da psicoterapia começar a ter resultados na reestruturação de vida do dependente químico pode haver dificuldade da família em se reorganizar sem seu paciente identificado. Com isso, o grupo pode passar a interferir e fazer “pressão” para que o equilíbrio inicial, do qual se queixavam, retorne. Isso pode acontecer de forma mais direta ou de um jeito menos brusco, sendo este mais difícil de ser manejado pelo psicoterapeuta, já que se dá por meio de não-ditos. Esse movimento também indica o comprometimento da família na questão, como tento expor nessa parte do texto.

Como já coloquei antes, esse processo não se dá de forma consciente, mas há uma necessidade, ou se torna menos “custoso”, o grupo continuar com a mesma estrutura de antes. Isso ocorre porque a mudança mobiliza energia, que em muitos momentos os envolvidos não estão disponíveis para investir. Sendo assim vão “optar” pelo menor gasto, que seria manter a homeostase inicial, a forma de organização anterior. Portanto, nesse caso, a família se torna um entrave ao processo terapêutico do adicto e, por esse motivo, se torna importante que esse conjunto de pessoas seja sensibilizado de alguma maneira, ou mesmo, realize seu próprio processo terapêutico.

A importância de trabalhar com a família no atendimento

Para terminar esta exposição tecerei algumas palavras sobre a temática familiar e seu envolvimento no atendimento. No atendimento de usuários de drogas não é raro perceber a influência familiar, que, aliás, aparece desde o início. Em grande parte das vezes o dependente químico é levado a psicoterapia pelos seus familiares, sempre com o formato de que ele é a peça a ser reparada. Além dessa participação inicial de levá-lo ao “conserto”, durante o processo os componentes do grupo acabam aparecendo em outros momentos, como em recaídas, quando avisam do ocorrido, ou em outras situações em que tentam prestar informações que podem atravessar e atrapalhar o atendimento do sujeito indicado para ser assistido.

A participação dos componentes familiares, em algum nível, na formação do sintoma é tratada muito de perto pela literatura que se dedica a discutir a adicção e pelos grupos anônimos de autoajuda, que intitulam esse fenômeno de codependência. Essa palavra define o envolvimento da família no processo de dependência química e sua dependência sistêmica do usuário contumaz para manter a homeostase do grupo. Nakken (1996, p.109) diz que os codependentes são pessoas que cuidam dos adictos.

“Co-dependente é o familiar mais próximo do dependente químico (Wegsheider, 1981; Kaufman, 1986) e com isso vai deixando cada vez mais a própria vida de lado. A degradação do co-dependente é semelhante à do adicto, pois ele vai se isolando e abandonando trabalho, amigos, lazer, comprometendo progressivamente sua saúde física e emocional.” (SAMPAIO, 2003; p. 22)

A codependência, portanto, possui uma definição muito próxima do que descrevi anteriormente usando uma terminologia mais familiar a Gestalt-terapia, quando tratei da organização sistêmica da família. A observação desse fenômeno abriu caminho para um dos pontos importantes no cuidado ao dependente químico: a atenção à família. Aos poucos se percebeu a importância de incluí-la na assistência para obtenção de um prognóstico melhor.

A necessidade do suporte para os familiares no que tange ao seu sofrimento e participação na construção do sintoma surgiu, por acaso, nos grupos anônimos dos usuários, que também se formaram sem planejamento prévio como vemos no trecho abaixo:
“A irmandade dos AA nasceu em 1935, em Akron, Estado de Ohio, nos Estados Unidos, após uma conversa entre um corretor da Bolsa de Nova York e um médico de Akron, conhecidos, respectivamente, como Bill Wilson e Bob Smith. Eles constataram que, por alguma razão até ali não bem compreendida, conseguiam ficar sem beber durante bons períodos depois que passavam algum tempo conversando e compartilhando seus problemas. Após passar por uma verdadeira "experiência espiritual" e experimentar "fortes sentimentos de triunfo, paz e serenidade", segundo depoimento do próprio corretor, ele decidiu trabalhar para que outros alcoólicos se beneficiassem com a descoberta; ele viu que, ao falar para outros alcoólicos, "sentia-se revitalizado", conseguindo manter-se sóbrio.” (CAMPOS, 2004)
Os participantes desses grupos eram levados em sua maioria, como se repete até hoje, por seus familiares. Enquanto acontecia a sessão de auto ajuda as pessoas que se encontravam na sala de espera foram aos poucos se comunicando e trocando informações, percebendo, com o tempo, que suas questões eram muito semelhantes e suas dificuldades muito parecidas.

Conforme os encontros iam ocorrendo perceberam que ali também se formara um grupo de suporte, similar ao dos usuários, mas que tratavam de outra questão específica, a codependência. A partir daí começaram a se encontrar com maior frequência, tal qual o grupo de adictos. Se o grupo de usuários focava na reestruturação de uma vida sem drogas, o de familiares buscava alcançar a reconstrução de sua família sem o usuário, ou uma convivência mais saudável com sua existência.

O que se constata é que há muito tempo já se sabia da importância do trabalho com os familiares como algo que traria uma maior eficiência na recuperação da qualidade de vida do adicto, posicionamento que demonstro aqui aproveitando os construtos teóricos da Gestalt-terapia. Portanto, defendo o mesmo objetivo por outro caminho. Dentro disso, elaboro algumas ideias que vem ao encontro desse modelo, tentando uma sustentação teórica a partir da linha clínica que me norteia.

Ao nos depararmos com uma demanda clínica que objetiva o alcance da melhora de vida de um cliente dependente químico, além de trabalharmos com ele no setting terapêutico compreendendo gestalticamente o sintoma apontado pelo indivíduo, como já discuti, é interessante um encontro com a família, mesmo que não se apresente espontaneamente. Por diversas vezes é alguém da família que traz o cliente, o que já nos faz pensar num enfoque diferenciado. Esse esquema nos remete ao atendimento infantil/adolescente, em que um responsável leva o cliente para ser atendido, mesmo porque alguém menor de 18 anos não poderia fazê-lo sozinho. O cenário que se apresenta num caso de dependência química nos faz pensar que esse tipo de enquadre não precisa se basear somente na idade cronológica do cliente, devemos estar atentos também ao contexto.

Na presença da família temos um cliente maior de idade legalmente, mas que vive como uma criança sem responsabilidades, muitas vezes, trazendo problemas às pessoas que são responsáveis por ele. Além disso, é bastante comum esse paciente identificado acolhido não ter dinheiro para pagar as próprias sessões, o que necessariamente traz outras pessoas para o contrato de atendimento, facilitando uma interferência familiar no processo psicoterapêutico. Por esse prisma identificamos uma característica marcante do dependente químico, a irresponsabilidade, que o leva, muitas vezes, a não ter condições financeiras para arcar com suas despesas, tornando-o responsabilidade de outras pessoas, aproximando-o, portanto, do formato de atendimento infantil ou adolescente.

Um outro ponto importante é que esse tipo de atendimento, como já citei, é permeado por um tema marcante que é a falta de limites. Se assumirmos que o usuário e família formam um sistema interdependente, possivelmente vão apresentar características semelhantes. Nesse caso, a família pode não ter uma compreensão de seus limites durante o processo psicoterapêutico interferindo no mesmo. Se esses limites não forem observados pelo psicoterapeuta, este pode se perder na confusão familiar não conseguindo ajudá-los. A família também aparece nas recaídas, que por diversas vezes são avisadas pelo pai, mãe ou companheiro(a). Estes demandam orientação ou apoio, este último por causa do desespero que surge da espera para que o usuário apareça.

Já que a família vai aparecer na maior parte das situações, porque não convidá-la, então, para participar do processo, mesmo que seja para que reflitam sobre seu papel ou para que se sensibilizem a procurar um espaço de cuidado para elas. É importante que fique claro que não será feita uma terapia com a família do usuário em separado, algo impossível para um psicoterapeuta só dar conta, como também não falo de enquadrar a todos em uma terapia de família, apesar de, aí sim, estar dentro das possibilidades terapêuticas. Nesse segundo caso, apesar de viável, no início do tratamento do adicto talvez não fosse indicado sem seu acompanhamento individual, por ser muito importante que tenha espaço para suas questões, que são muitas nesse começo. Em raras vezes a família do assistido não aparece espontaneamente, como coloquei acima, nesses casos continua valendo o convite, mas nesse momento, por demanda do psicoterapeuta.

Falo, então, de um acompanhamento familiar muito parecido com o proposto às famílias que demandam atendimento infantil para seus filhos, como coloquei, dada a semelhança entre os dois casos no que diz respeito ao cliente assistido. Assumindo esse caminho, podemos citar, por exemplo, a proposta de Aguiar (2005, p. 245) para atendimento infantil em que destaca alguns pontos importantes no trabalho com a família da criança em terapia. Fazendo um paralelo, parece um caminho possível para o acompanhamento da família do dependente químico atendido seguir essas mesmas referências. Quais sejam: informação, orientação, sensibilização e facilitação da comunicação.

No trabalho com a temática que trago nesse texto a última etapa citada não é tão importante, então, ficamos com as três primeiras para analisar mais de perto. Aguiar (2005, p.246) define a parte de informação como importante porque, apesar de não ser suficiente para realizar uma mudança na maneira de agir, minimiza a ansiedade esclarecendo dúvidas relevantes. Dessa maneira, no caso do dependente químico, seria interessante passar informações das mais diversas sobre o assunto, por exemplo: muitas pessoas usam drogas e não apresentam esse quadro de dependência, mas outras possuem uma conformação que a levam para esse caminho, tornando a droga uma peça importante em suas vidas. Com isso, podemos retirar um pouco da pressão exercida sobre o cliente de que este larga o uso no momento que quiser, basta força de vontade.

O segundo passo vem com a orientação, que Aguiar (2005, p. 246) diz se tratar de sugestões possíveis, que serão avaliadas como alternativas que podem facilitar determinada situação, observando, nesse modelo, algo bem diferente de prescrições cristalizadas. No caso do dependente químico podemos até prescrever de fato, já que alguns movimentos já experimentados facilitam a vida de todos que estão nessa situação. Mas, mesmo que o façamos que seja de maneira flexível, visto que algumas orientações são importantes para a família e ajudam, por exemplo, no processo de abstinência. Então, talvez fosse válido sugerir à família toda que também suspendam seu contato com drogas, principalmente as que alteram a consciência, como o álcool, por exemplo. Nesse caso, seria de grande ajuda não estocar bebida em casa ou que evitassem, na medida do possível, festas ou lugares onde houvesse o acesso fácil à bebida.

Como último ponto a se destacar tem a sensibilização, que pode ser alcançada nesses encontros do psicoterapeuta com a família, muitas vezes facilitando o contato de seus membros com sua própria dificuldade em lidar com essa situação ou com sua resistência em seguir alguma das orientações combinadas. Aguiar (2005, p. 250) coloca que no momento da informação e da orientação surgem inúmeros entraves na tomada de atitude e que, nesses momentos, podemos promover uma awareness do que está difícil para família. É nesse processo que pode se abrir uma brecha para que a família perceba a importância de ter um espaço para se cuidarem também, fato que, provavelmente, ajudaria no processo de recuperação do adicto, nosso paciente identificado.

Entre as informações e orientações que podem facilitar o atendimento, limitei-me a citar uma de cada, mas existem muitas outras como: a quem recorrer no caso de uma recaída; quando o adicto some, quais providências a serem tomadas; ressaltar a importância do acompanhamento nos grupos anônimos de dependentes e de familiares entre muitas outras questões. Além de algumas que servem para maioria ainda há aquelas que surgem e são necessárias especificamente para cada caso, já que, por mais parecidas que sejam essas famílias guardam sempre suas singularidades.

Por fim, é sempre válido lembrar que, assim como no atendimento infantil, esse apoio familiar deve ser realizado sempre com a anuência do cliente e deve ser garantido o sigilo de suas informações, bem como a família deve ser alertada que qualquer informação que passarem pode ser levado, se necessário, ao conhecimento do atendido. Não delimito também, rigidamente, quantos encontros com a família são necessários, variando de caso para caso. Caminhando dessa maneira, esperamos que a família esteja mais preparada para lidar com a questão, podendo se cuidar também, já que não ficam imunes ao sofrimento num caso como esse. Procurando ajuda podem trazer mais suporte para o próprio adicto, agindo a favor de uma melhora dele, tornando-se aliados de seu processo psicoterapêutico.

Considerações finais

Pretendi com esse texto delinear uma discussão sobre o atendimento clínico de drogadictos à luz da gestalt-terapia. Penso ainda haver muitas questões e pontos a serem discutidos, mas nesse momento optei por abordar a questão da inclusão da família nesse atendimento específico, algo que me chamou atenção em minha prática clínica, por sua participação voluntária e eventual interferência no atendimento.

O que ficou importante nesse caso é que o sintoma nos dá notícias de que algo não vai muito bem com o adicto, mas faz sentido para aquele momento de vida. Assim como, ampliando o campo de observação, o dependente químico nos dá informações de que o sistema familiar possui um funcionamento que passa por dificuldades, contribuindo para o aparecimento do adicto. O sintoma nos faz aprender sobre o funcionamento do drogadicto e este nos faz compreender como a família se estrutura. Seguindo essa linha de raciocínio, de que a família alcança uma homeostase que inclui o dependente químico, é que proponho a participação do grupo no acompanhamento do indivíduo “escolhido” para ser o portador do sintoma, definido por nós como paciente identificado.

Por fim, devemos sempre levar conosco que a demanda por abstinência, se abraçada pelo terapeuta sem um olhar gestáltico do sintoma, ocasiona um desgaste grande do profissional pelas diversas recaídas inerentes ao processo e gerando frustração para o psicólogo. Sendo assim, talvez mais que em outras situações, o trabalho com o dependente químico nos ensina sempre que precisamos nos atentar ao que é possível, sem uma obrigatoriedade de chegar a um resultado, mesmo que proposto pelo cliente. Adictos, quando conseguem, assumem que são impotentes perante a sua compulsão e, nos demonstra, indiretamente, que somos impotentes também, enquanto psicoterapeutas, diante de suas escolhas.

Referências Bibliográficas:

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LOURO, R. Revista Época. Disponível na internet em:
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Endereço para correspondência


Eduardo de Sequeira Cremer

E-mail: escremer@yahoo.com.br

 

Recebido em: 24/10/11


Aprovado em: 18/11/11