ARTIGO

Qual é a especificidade da clínica em gestalt - terapia?

 

What is the clinical specificity gestalt therapy?

Ananias Oliveira Filho

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No trabalho aqui apresentado se propõe um debate acerca especificidades da clínica em Gestalt-Terapia. Para tanto se fez necessário explicitação dos conceitos e premissas básicas, com a finalidade de evidenciar e delinear o que há de próprio e imanente na teoria e na prática clínica em Gestalt-Terapia. No estado da arte atual, aquela fornece uma valorosa dinâmica sobre o processo de relação do ser com o mundo, o que denota ao gestalterapeuta uma consistente base para facilitar o processo de auto-compreensão do cliente, em meio a uma sociedade que vivencia uma crise em sua estrutura. O que circunscreve a Gestalt-Terapia como uma rara fonte não de classificações, mas de processos resultantes e determinantes da fluidez típica das relações, em assim sendo estabelecendo uma relação de confiança com o cliente na viagem deste na busca construtiva de intencionalidade. O gestalterapeuta acaba por ser em seu labor parte do processo, ademais, nunca será ele a direcionar o trajeto, este sempre será dado pelo cliente/viajante através de sua realidade vivenciada.


Palavra - chave: Gestalt-Terapia; Clínica; Relação.


ABSTRACT

In the present study proposes a discussion on specifics of the clinic in Gestalt Therapy. For that made necessary explanation of the concepts and basic assumptions, in order to highlight and delineate what is proper and immanent in theory and clinical practice in Gestalt Therapy. In the current state of the art, that provides a valuable momentum on the process of being compared with the world, which denotes the gestalterapeuta a consistent basis to facilitate the process of self-understanding of the client, in the midst of a society that has experienced a crisis in its structure. The surrounding Gestalt Therapy as a rare source of non-classifications, but cases arising from the flow and determinants typical of relations in thus establishing a relationship of trust with the client on this journey in search of constructive intent. The gestalterapeuta turns out to be in your part of the labor process, moreover, he will never be the direct path, this will always be given by the customer / traveler through their experienced reality.

Keywords: Gestalt Therapy; Clinic; Relationship.


Porque Teu é o Reino
Porque Teu é
A vida é
Porque Teu é o
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.
T. S. Elliot (Os Homens Ocos)

Introdução


A única coisa da qual tenho medo é de que vocês queiram se tornar verdadeiros psicólogos da Gestalt. Eu, propriamente dito, não o sou. (Kohler, 1978).

A pergunta acima foi base para uma avaliação na disciplina de Estágio Supervisionado – I. Foi fonte desencadeadora deste artigo, portanto nada mais coerente do que ela ser o título do presente texto.

A resposta à pergunta título, acredita-se estar contida no trecho da obra-prima de T. S. Elliot, abaixo enunciada. Mas, como exercício, o autor desta retórica pede que após a leitura dos versos abaixo, siga-se diretamente para a leitura dos dois últimos parágrafos. Caso a resposta ainda se apresente insatisfatória, far-se-á ao longo deste texto a explanação de diversos conceitos e definições distintivos da Gestalt-terapia.

O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstração
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
T. S. Elliot (Burnt Norton)

A Gestalt-terapia (GT) é uma abordagem clínica que compreende um arcabouço técnico e de conceitos específicos, em suas dimensões teóricas e práticas. A GT tem como fundador Fritz Perls, que concebeu, em seu entendimento, o que seriam a princípio correções ou melhorias da teoria psicanalítica, mas ao não ter o reconhecimento de suas teses pela comunidade psicanalítica, inclusive do próprio Freud, Perls decidiu constituir uma nova linha de psicoterapia.

Ademais, ressalte-se que as proposições de Perls, ainda como psicanalista, não se enquadravam no arcabouço psicanalítico. Porquanto, como pontua Andrade (2009), Pelrs ainda como psicanalista escreve Ego, Fome e Agressão, onde já apresentava uma proposição metodológica e teórica em oposição a alguns cânones dos princípios psicanalista.

Esta contraposição evidencia-se de forma irrefutável, quando Perls elabora um método baseado em uma relação autêntica com eixo relacional no fenômeno presente, e não na estrutura de projeção representacional da neurose de transferência (GINGER & GINGER, 1995).

Com isso Perls tomando por base as idéias lançadas naquele texto, começa a construção da GT, que tem como principais alicerces epistemológicos a Psicologia da Gestalt, o Existencialismo e a Fenomenologia. Ademais, ressalte-se não ser objetivo do presente artigo, uma explanação mais aprofundada de todos os conceitos que baseiam e norteiam a GT, o foco central é o de mapear tais conceitos e referenciá-los de forma que o leitor com o interesse em maior aprofundamento será aqui apresentado a uma gama substancial de textos e autores fundamentais para o melhor entendimento destes conceitos e pressupostos. O presente artigo espera fornecer uma direção, longe de querer esgotar um assunto tão amplo e complexo.


Marco Teórico

A GT apresenta sinergia com a definição e a prática na clínica moderna, que ultrapassa os limites de sua origem, bem como de seu conceito clássico (DUTRA, 2004). Etimologicamente, a definição de clínica tem em sua gênese uma ligação direta com a Medicina: clinicar, que vem do grego klinike, significaria ir ao encontro do doente, ou estar ao lado do enfermo.

A clínica tem uma prática e uma definição mais amplas, em que clinicar é ação de cuidar e de estar ao lado, ação esta não só vinculada ao médico e nem só direcionada a um enfermo, e sim ao indivíduo à procura de uma melhor qualidade de vida (DUTRA, 2004).

A partir do entendimento acima evidenciado, pode-se concluir que não existe mais o “paciente” em sentido mais clássico, porquanto o sujeito agora vai à busca, denotando claro papel ativo em relação ao seu estado atual e possibilidade de mudança.

Na clínica em GT, ser implica ir; ir por sua vez compreende movimento, trazendo consigo a ideia de motivação, que está intimamente ligada a estabelecer direção e sentido às ações. Nada mais próprio ao ser humano do que se atualizar em sua intencionalidade de modo dinâmico (ROBINE, 2003).

A GT traz em si a proposta de que não há uma conexão estática em que se estabeleça uma relação de figura/fundo entre emoção e razão. Exemplifica-se este entendimento, a partir das colocações de Robine (2003). Em seu artigo, o autor enfoca a criatividade, ligada à emoção e ao rigor metodológico. E este último ligado à razão, evidenciando o caráter dinâmico e processual desta relação.

Robine (2003) faz analogia entre esses dois construtos, que são tidos por muitos como princípios contrastantes. Diversos artistas fazem uso de princípios científicos para alcançar a beleza, como a Monalisa de Da Vinci, em que o gênio italiano usou de axiomas geométricos. Outros cientistas usam da emoção ou da beleza para formular novos preceitos, pois nada da teoria evolucionista de Darwin existiria, não fosse a paixão juvenil de um homem pela natureza e sua beleza.

Ao contrário de grande parte das teorias que julgam ser os elementos que se juntam na constituição de coisas ou organismos, os gestaltistas invertem a questão. No Universo, o importante são os todos ou Gestalten. Esses todos podem constituir as suas próprias partes. (ENGELMAN, 2002, p. 12)

Há na razão um conteúdo inegavelmente emocional e na emoção um conteúdo racional. A beleza está no racional, tal qual o conhecimento está nas artes, podendo assim se entender que um método pode trazer à tona singularidades e não normatização. Este postulado, se assim pode ser dito, é peculiar à GT, pois nele se exprime a concepção de homem total, não em componentes estruturados, porém com suas singularidades, o que leva a ela um infinito campo de possibilidades, trazendo à tona responsabilidade e compromisso com o outro.

O importante é a Gestalt total do organismo e não as suas partes constituintes. Quando se observam moléculas, são moléculas como um todo e não suas partes atômicas. Quando se observam órgãos do corpo, são os órgãos como um todo e não seus átomos constituintes. E quando se observam pessoas, são pessoas como um todo e não o seu incontável número de átomos. São as pessoas que permanecem através do tempo. (ENGELMAN, 2002, p. 12)


“O campo psicológico que existe num dado momento contém também uma referência a como aquele indivíduo vê seu futuro e passado.” (LEWIN, 1965, p. 40). Lewin define campo todo ambiente espaço/temporal no qual o homem está inserido, onde ocorre uma afetação recíproca através da percepção e da ação que se desenvolve no campo perceptivo de cada um.

Lewin (1973) pontua que o homem é agente e produto deste ambiente a partir dos fenômenos por ele percebido em seu campo e de como ele elabora e se reinventa em sua realidade. Lewin (1973) conceitua ainda que espaço vital como: “Um espaço concebido como detentor de uma certa característica em todos os pontos” (p. 240).

Ao estruturar a sua teoria Lewin (1969 & 1973) elabora atributos que formam uma complexa rede dinâmica de vetores, que geram resultantes a partir de uma gama indefinida de possibilidades, mas que permite uma melhor apreensão do aqui e agora.

Esta acepção municia o psicoterapeuta em GT de pressupostos que propiciam uma percepção dinâmica e não nosográfica da relação terapeuta e cliente. Ribeiro (1994) assevera que, “A Teoria de Campo vê a realidade como campos ou como um grande campo unificado, onde a realidade maior acontece” (p. 63).

Há de se buscar a apreensão dos conteúdos dos fenômenos presentes, com base nessa relação de influência mútua entre emoção e razão, explicitando aqui uma relação de polaridade, que é uma força motriz do ajustamento criativo (ANTONY, 2009).

O ajustamento criativo é entendido como processo em que o indivíduo dentro das possibilidades apresentadas em dado momento da existência ele há de construir a resposta mais criativa possível (WALLERSTEIN GOMES, 2001).

A GT em seu escopo faz uso de um arcabouço advindo do Existencialismo, quando este assevera que o presente é o que existe, por conseguinte é a experiência a vivida em sua totalidade, sendo assim só a como se constituir um ser ciente de si mesmo no presente (LEVINAS, 1985).

A GT assume esse aspecto, tendo o psicoterapeuta para funcionar como facilitador da construção da consciência intencional do cliente, deve estabelecer uma relação pautada no presente, sabendo que o setting clínico é um espaço de experiência do hoje.

O homem que se compromete e percebe que não é apenas aquele que escolhe ser, mas que é também um legislador, escolhendo, ao mesmo tempo que a si mesmo, a humanidade inteira, não poderia escapar ao senso da sua total e profunda responsabilidade. (NOGARE, 1994, p. 145).

A GT tem como particularidade o entendimento do homem como um ser de relações com o mundo. Em psicoterapia, não se deve construir e delimitar as relações à simples causa e efeito, mas buscar o entendimento a partir de um diagnóstico, não sendo este uma forma rígida de enquadramento, porém uma base norteadora e dinâmica estabelecida através de um mapeamento.

Descobrindo sua experiência como sente, move, quando entra em contato e permite que o vazio exista, com o tempo descobre-se que o escuro cederá lugar para a luz e do vazio surge um mundo vivo. O indivíduo ao ver, tocar, sentir em sua viagem, o vazio que agora é fértil, começa a responder emocionalmente ao que percebe de forma transformada, com vitalidade e criatividade. (PERLS, 1982, p.75).

O termo mapeamento é aqui usado no mesmo sentido de Cancelo (1991). O autor defende que o ato de mapear, dentro de uma concepção fenomenal, nada mais é do que uma visão do todo, na tentativa de abranger o maior campo possível, não se tratando então de estabelecer fronteiras territoriais rígidas, mas de empreender caminhos, processos e possibilidades.

Não cabe ao gestalt-terapeuta focalizar o caminho da relação em técnicas e experimentos, pois aí estará tendo uma postura como investigativa e policialesca de enforcar o “por quê?” No dizer de Perls (1977), o uso de técnica deve ser empregado em casos extremos, por se configurar em um “truque.”

O autor ainda se refere à mediocridade dos profissionais, por fazerem uso demasiado de técnicas, o que acaba por paralisar o amadurecer do outro, por ser sabotado pela criação de muletas de fácil acesso.

Gadamer bem coloca que:


Aquele que se crê seguro na sua falta de preconceitos, porque se apóia na objetividade de seu procedimento e nega seu próprio condicionamento histórico, experimenta o poder dos preconceitos que o dominam incontroladamente como uma vis a tergo. Aquele que não quer conscientizar-se dos preconceitos que o dominam acaba considerando erroneamente o que vem a se mostrar sob eles. (2002, p. 532)

Deve-se ter clareza de como é tênue o limiar entre técnica e metodologia, aqui entendida como caminho construído pelas possibilidades e questões próprias em que cada relação se baseia e segue em viagem.

Na medida em que é possível dizer, de um modo geral, que tanto a ciência como o conhecimento começam em alhures, então é igualmente válido o que se segue: o conhecimento não parte de percepções, de observações, nem da recolha de dados ou de fatos, mas sim de problemas. Sem problemas não há saber, como não há problemas sem saber. (POPPER, 1992 p. 72)

Thoureau afirma que “Não é desejável cultivar pela lei o mesmo respeito que cultivamos pelo direito” (p.11, 1997). Este recorte reflete o espírito de que a formalidade ou normatividade tem grande utilidade.

Deixa, porém, de ser proveitoso para ser um componente meramente repressivo e demarcatório, quando ao invés de apropriar aos homens as responsabilidades por seus atos e ideias, passa a ser fonte de destituição da intencionalidade individual.

A GT então deve proporcionar uma trilha em que o cliente desenvolva um dínamo próprio, do qual ele é potência. Neste sentido, cabe aqui explicitar a compreensão de método que traz Gadamer (1995, p.34), quando coloca que:

Méthodos, no sentido antigo, significa sempre a totalidade do estudo de um campo de questões e de problemas. Neste sentido, o método já não é um instrumento para objetivar e definir algo, senão que é para participar das coisas de que nos ocupamos. Este significado de método pressupõe que nos encontramos já dentro do jogo e não em um ponto de vista neutro.

A GT lança mão da Fenomenologia como metodologia em setting terapêutico, constituindo-se em princípio distintivo, pois na GT essa escola filosófica não fomenta de forma direta a visão de homem; fornece, porém, um modelo de compreensão e apreensão do aqui e agora do ser em sua relação com o mundo. Que se dá primordialmente por meio do diálogo, sendo assim necessária uma compreensão mais clara da metodologia proposta em GT.
Yontef (1998, p. 236) acerca da proposição acima coloca:

Fenomenologia é o método que a Gestalt-terapia usa para aprender a respeito do processo de awareness (consciência). [Busca tal compreensão] baseada no que é óbvio ou revelado pela situação (que inclui tanto o organismo quanto o ambiente), em vez da interpretação do observador.

A construção de um campo perceptivo confiável é fundamental em um ambiente psicoterápico, pois noção de percepção do campo sensorial norteia a elaboração e forma em que se apresenta ao ser humano, e em conseqüência é como se estabelece o contato material em que se dá o estado awareness. O estado awareness é que produz a intencionalidade organísmica, ou melhor, ela é a intencionalidade organísmica, que vai trazer respostas ponderadas no passado gerando abertura para o futuro (POLSTER & POLSTER, 2001).

Bem define Ribeiro (1985), “o homem nada mais é do que aquilo que ele decide ser, do que aquilo que ele projeta ser; sua essência surge como uma resultante de seus atos” (p. 38).

Esta concepção de homem enquanto possibilidade de escolha com base em sua auto-compreensão promotora de intenção é o objetivo primeiro da GT (ROBINE, 2003). “assumir-se totalmente na liberdade responsável (...), de modo que o homem possa dar respostas diferenciadas entre suas necessidades e as exigências que vêm de fora” (RIBEIRO, 1985, p. 35).

A GT se distingue de forma mais evidente em sua metodologia, porquanto não trabalha a fala do cliente de forma unilateral. Ademais, se compromete com um diálogo construindo entre terapeuta e cliente, foco central da relação em GT. A fala não se estabelece como via, mas o instrumento de acesso ao mundo intersubjetivo do cliente. Por ter no diálogo a via fundamental de acesso e de contato.

Gadamer (1996) propõe o axioma: “A partir do diálogo que nós somos” (p. 401). Ainda na mesma direção coloca que “porque nós somos conduzidos por aquilo que nos é familiar, porque há acordo, é que nós podemos interessar-nos pelo outro, receber o que é estranho e, daí, prolongar e enriquecer a nossa experiência do mundo” (p. 43).

Perls (1980 & 1997) é enfático em sua obra ao colocar o homem como imerso nas e no mundo das relações através da linguagem, mas é antes de tudo nas relações, por conseguinte o ser não vem para as relações e sim vem nas relações. Esta percepção acerca do homem permite uma apreensão da realidade vivida, como sendo resultante da interação humana, essa ocorre primordialmente por meio da linguagem.

A linguagem pondera Bakhtin (2005) tem sua gênese no campo dialógico, seja nos discursos de interação com o ambiente que circunda o sujeito, ou no discurso voltado para si mesmo, em diálogos internos e não falados.

As relações dialógicas que permeiam a teoria de Bhaktin se dão em meio a um processo de construção de significados concernente a cada diálogo, este processo se estabelece em dinâmica especifica de cada relação.

Como assevera Gadamer (1993, p. 10), “somos um diálogo e podemos escutar uns aos outros.” A GT deposita um poder fundamental na relação, sempre preconizando a direção e o sentido dados pelo cliente no processo, não cabendo ao psicoterapeuta direcionar, mas acompanhar, não como guia ou muleta, e sim como companhia a quem o cliente destina confiança.

A visão de mundo e de ser no mundo que a GT traz em si princípios e conceitos de grande complexidade, mas que se ajustam ao dinamismo vivenciado na contemporaneidade, uma modernidade líquida no conceito de Bauman (2001). Segundo o autor, as pessoas enfrentam uma dificuldade em se descobrir ou de se desvelar sem as muletas sociais impositivas, tais como estereótipos, rótulos, normas e regras imutáveis.

No mundo atual, onde há grande volatilidade e velocidade nos processos de mudança nas sociedades, estas, segundo Bauman (2001), acabam por não estabelecer modelos rígidos que balizariam e norteariam os indivíduos em seu processo contínuo de viver.

Com a lacuna cada vez mais nítida, as pessoas terminam tendo que buscar em si mesmas os seus parâmetros e bases constitutivas, provocando um sentimento de não ser e de não estar. Bauman (2001) assevera que o contexto provoca um sentimento de desolação e um conseqüente mal-estar.

Carneiro e Abritta (2008), acabam por conceber uma precariedade existencial, convergente com o pensamento de Bauman, devido à fragilidade do ser humano em elaborar ou construir um sentido para a sua existência, em uma realidade onde está imerso em uma multiplicidade de estímulos.

O que para Bauman é causa em grande parte dos males contemporâneos, em uma compreensão baseada na GT emerge como condição ideal do ser humano, que é de ser em busca e estar na busca. O parâmetro humano deve ser a construção de sua intencionalidade. Esta entendida como capacidade de discernimento, convergindo assim com o conceito de Insight defendido por Kofka (1975).

O trabalho em Gestalt-terapia olha o cliente de uma forma ampla e global. Poder-se-ia dizer que a Gestalt, propõe, de certa forma,uma inversão do processo de cura: em psicanálise, se supõe que a conscientização acarrete uma modificação do vivido – por meio da experiência- permitem uma mudança do comportamento, acompanhada de uma eventual conscientização.Para os psicanalistas o desaparecimento do sintoma é um “luxo”, para os gestaltistas,é a conscientização que é assim considerado. (GINGER & GINGER, 1995, p.66)

A elaboração da intencionalidade é mediada pelo processo de diálogo com o mundo, ou seja, um ser de estar em/nas relações. A GT apresenta em seu arcabouço fundamentos necessários, não para abarcar a compreensão do ser no mundo, mas para ajudar no autoentendimento e na elaboração da intenção própria e particular de cada um (ROBINE, 2006).

A partir do princípio e durante todo o processo, ao ser excitado por uma novidade, o self dissolve o que está dado (tanto no ambiente quanto no corpo e em seus hábitos), transformando-o em possibilidades e, a partir desses, cria uma realidade. A realidade é uma passagem do passado para o futuro: isso é o que existe, e é disso que o self tem consciência, é isso que descobre e inventa (PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1951, p.209).

Conseguir construir ou discernir a intencionalidade singular, que como coloca Robine (2003) é a figura norteadora fundamental para um processo de autonomia e autocompreensão, no qual a psicoterapia pode exercer um papel de facilitadora nesta ação de autoconhecimento de atualização contínua.

A GT trabalha com base na ideia de contato, como define Yontef (1998, p.237): "O contato é o processo básico do relacionamento. Ele proporciona a verificação da diferença entre o self e o outro."

O contato é a porta de entrada para as relações e consequência óbvia para o diálogo, em que se dá o real processo de psicoterapia e se estabelece a verdade, aqui compreendida como qualquer fato ou situação que abra caminhos e possibilidades na psicoterapia.

Ao estruturar a sua teoria Lewin (1969 & 1973) elabora atributos que formam uma complexa rede dinâmica de vetores, que geram resultantes a partir de uma gama indefinida de possibilidades, mas que permite uma melhor apreensão do aqui e agora.

Esta acepção municia o psicoterapeuta em GT de pressupostos que propiciam uma percepção dinâmica e não nosográfica da relação terapeuta e cliente. Ribeiro (1994) assevera que, “A Teoria de Campo vê a realidade como campos ou como um grande campo unificado, onde a realidade maior acontece” (p. 63).

Yontef (1998, p.185) conceitua campo como “uma totalidade de forças mutuamente influenciáveis que, em conjunto, formam uma fatalidade interativa unificada”. O terapeuta em GT deve empreender sua participação no setting clínico ciente de sua relevante participação no campo perceptivo do cliente, bem como de como este o afeta sem eu campo (YONTEF, 1988).

A dimensão dialógica da relação terapêutica se cria em meio ao que cada um já era, e se desenvolve em meio ao que cada um pode vir a ser. Observa Hycner (1997, p. 29): "Entende-se por dialógico o contexto relacional total em que a singularidade de cada pessoa é valorizada".

Esta acepção permite e propicia a construção de um diálogo com base na pertença a uma relação, que não tem a finalidade de subtrair a subjetividade, mas buscar na relação com o outro o fortalecimento de sim mesmo.

A construção de um campo perceptivo confiável é fundamental em um ambiente psicoterápico, pois a noção de percepção do campo sensorial norteia a elaboração e a forma em que se apresenta ao ser humano, a GT denota grande relevância a este aspecto. Porquanto é em conseqüência do campo e do seu entorno, que estabelece o contato material onde se dá o estado awareness (ROBINE, 2003)

O estado awareness é que produz a intencionalidade organísmica, ou melhor dizendo: é a intencionalidade organísmica que vai trazer respostas ponderadas no passado, gerando abertura para o futuro (ROBINE, 2003).

Não se pode traduzir a experiência da intencionalidade, apenas com base em representações simbólicas, à aproximação para uma compreensão e expressão desta intencionalidade só se faz em meio às vivências fenomenais de cada um, estas se fazem presentes nas relações com um mundo (ROBINE, 2003). O profissional em GT deve incluir no seu mundo de relações o cliente, e assim ter acesso e conseqüente participação no mundo relacional do cliente.

Não se trata de estabelecer igualdade nos papéis, todavia fundamentar a participação do cliente em uma relação própria ao seu mundo (ANTONY & RIBEIRO, 2004).

Porquanto na GT qualquer interpretação se dá baseada na relação entre cliente e terapeuta, o que denota um instrumento interpretativo permeado pelo fenômeno emergente no momento da relação e não uma abstração acerca da vida prévia do sujeito (NUNES & HOLANDA, 2008).

A GT é uma proposta de compreensão do ser em sua fluidez, a psicoterapia em GT é baseada no dinamismo relacional no setting clínico, não se faz pertinente ao terapeuta a função de ensinar, mas sim de estar presente nos processos de aprendizagem, por quais passa o cliente, e em estado presente se tornar uma presença confiável fazendo parte do espaço vital, colaborando para uma psicoterapia em que o bem estar seja promotor de auto-conhecimento.

Considerações Finais

A GT tem como maior especificidade a visão de terapia como processo de “buscar” ou “criar” verdades. Mais uma vez, com o auxílio de Cancelo (1991), que sutilmente define verdade como tudo que abre caminhos e possibilidades, sendo assim, a GT não tem um caminho delimitado. Ademais, é a GT uma viagem por caminhos vários, sempre à procura da verdade, que nada mais é do que encontrarmos a nós mesmos através do mundo.

Na bela fábula bretã, o virtuoso rei Artur está gravemente enfermo, convalescendo em seu leito. Seus cavaleiros, à procura da cura, estavam a morrer ou a enlouquecer nos recantos mais longínquos e exóticos do mundo.

Não havia em lugar nenhum nada que o curasse, só o Graal, mas todos morriam à sua procura. Percival, cavaleiro circunspecto e inabalável, ao se encontrar em lugar e em tempo mais próximo que havia de chegar ao seu Sétimo Selo, depara-se com a descrença na existência de sentido e na vida, restando então à clemência daquele em quem genuinamente acreditava: o Rei Artur.

Neste espaço de tempo, ele acha o Graal, onde jamais fora procurado e onde nunca deixou de estar. Percival acreditou em seu rei e assim encontrou o Rei de posse de si mesmo, pela fé e crença do nobre Percival em seu Rei. Fez o enfermo Artur dar-se sentido e estar com a verdade do Graal. Estava de novo ele sobre seu próprio domínio. O Graal sempre estará em nós através do mundo.

Podemos imaginar GT como um continuum dinâmico ao Graal que não propõe achados ou perdas. Propõe enlaces e encontros do que há de vir, com o que foi com o que está, sem esquecer o que deixou de ser e o que não será. Só sendo possível a compreensão deste caleidoscópio chamado existir, a partir da apreensão das relações com o mundo e do diálogo que se estabelece.

O psicoterapeuta de GT é um companheiro de jornada em compromisso com o cliente, reencontro do seu Graal em verdade. Verdade esta, que não acontece em um mundo de isolamento, Popper (1999, p. 12) bem assenta quando diz: "Posso estar enganado e tu teres razão, mas, pelo esforço, podemos aproximar-nos da verdade".

Ferreira (2009) pontua de forma evidente, o papel do psicoterapeuta em auxiliar no desvelar, que deve de acontecer como fenômeno de apropriação de si mesmo por parte do cliente.

Assim como já afirmara Perls (1980) o homem é sempre um ser inacabado. Pensamento esse que converge, com o entendimento de que o processo clínico em GT não possui fechamento, mas há sim des-fecho, entendido como reabertura e assim novos questionamentos.


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Endereço para correspondência


Ananias Filho Oliveira

E-mail: ananiasqueiroga@bol.com.br


Recebido em: 04/07/2011
Aprovado em: 11/10/2011