ARTIGO

 


A arteterapia gestáltica como instrumento na clínica individual com clientes que estão esquizofrênicos


Art therapy, a tool in clinical individual with clients who are schizophrenic

 


Fabrício Siqueira Basso

 

 

Endereço para correspondência

 


RESUMO

A difícil tarefa de realizar um trabalho psicoterapêutico com um cliente que está esquizofrênico gera diversos sentimentos e sensações de limitação quanto à intervenção psicológica verbal. Entretanto, existem outros meios pelos quais o gestalt-terapeuta pode trabalhar possibilitando a integração do cliente. Um deles é a Arteterapia, instrumento que, da Gestalt-terapia, já é velho conhecido. Este estudo busca tecer um breve caminho teórico no que tange a prática psicoterapêutica individual com clientes que estão esquizofrênicos e a Arteterapia enquanto forma gestaltáltica de intervenção.

Palavras-chave: Esquizofrenia; Gestalt-terapia; Arteterapia; Arteterapia Gestáltica.


ABSTRACT

The difficult task of making a psychotherapeutic work with a client who is schizophrenic generates various feelings of limitation during the psychological verbal intervention. However, there are other ways in which the gestalt-therapist can work enabling integration to the client. One is the Art therapy, an instrument which is well known by Gestalt-therapy. This study seeks to make a short theoretical path about individual psychotherapeutic practice with clients who are schizophrenics and Art Therapy as a gestaltic way of intervention.

Keywords: Schizophrenia; Gestalt-therapy; Art Therapy; Gestaltic Art Therapy.


 

Introdução

A odisséia de atender clientes com diagnóstico de esquizofrenia é uma tarefa realmente extra-ordinária. Seu encanto, suas peripécias delirantes é um convite ao imaginário. Dentre tantas sensações e sentimentos, humildade e pequenez prevalecem diante deste outro, que delira ao expressar com palavras, gestos e sentimentos muitas vezes desconhecido para aquele que o percebe.

Entretanto, ao realizar este tipo de atendimento o psicoterapeuta se vê limitado quanto à intervenção psicológica verbal[1]. Diante disto, se vê a procura de outras formas e técnicas de intervenção para que o cliente possa integrar-se.

A Gestalt-terapia enquanto terapia de contato, se utiliza de diferentes maneiras, formas que podem ser consideradas recursos valiosos para possibilitar a integração do indivíduo. Neste intuito a Arteterapia nos apresenta uma proposta extra-ordinária, pois possibilita ao cliente um processo quase que “auto-integrador”.

Procuro expor neste artigo inicialmente, uma explanação acerca da esquizofrenia, sua etimologia, classificação psiquiátrica, bem como o entendimento acerca desta através do olhar gestáltico, em seguida traçarei um breve caminho teórico entre a Arteterapia e a Gestalt-terapia, por fim, cito um relato de experiência como parte integrante do artigo na qual me inspirei realizá-lo.

Não me preocupei em teorizar de forma a esgotar os conteúdos no que tange o funcionamento psicótico, pois nossos colegas MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO; VIERA; e SANTOS já o fizeram com maestria; muito menos no que se refere à Arteterapia.

Escrevo este artigo, pois durante um atendimento com um cliente que estava esquizofrênico, encontrei-me limitado no setting terapêutico, foi então que busquei formas alternativas para que o próprio cliente se integrasse. Quando busquei auxílio na comunidade científica[2] constei escassez de artigos e livros que abordam a prática da psicoterapia individual em clientes diagnosticados com esquizofrenia.

Portanto, busco assim proporcionar ao colega psicoterapeuta uma alternativa à altura, no que tange a prática psicoterapêutica individual com clientes que estão esquizofrênicos.


Esquizofrenia e gestalt-terapia

Esquizofrenia, do grego, esquizo = “cisão”, e frenia = “mente”, é um dos transtornos mentais considerados mais graves que existe, afetando cerca de 1% da população mundial. Normalmente se manifestando no final da adolescência ou no início da vida adulta tanto nos homens como nas mulheres, podendo também ocorrer - porém mais raramente - na infância ou na meia-idade (Organização Mundial da Saúde, 1998).

Conforme o DSM-IV (2003) - Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) – a esquizofrenia é uma patologia que tem características essenciais da presença de sintomas psicóticos, como alucinações, dissociação do pensamento, delírios, comportamento desorganizado ou catatônico e embotamento afetivo. Esta patologia apresenta sinais e sintomas na área do pensamento, percepção e emoções, prejudicando o indivíduo nas áreas ocupacionais, cuidados pessoais, e nas relações interpessoais e familiares.

Na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), a esquizofrenia é classificada como F20, caracterizada pelos principais sintomas importantes para classificá-la como tal: o eco do pensamento, a imposição ou roubo do pensamento, a divulgação do pensamento, a percepção delirante, idéias delirantes de controle, de influência ou de passividade, vozes alucinatórias que comentam ou discutem com o paciente na terceira pessoa, e transtornos do pensamento e sintomas negativos.

Sua evolução pode ser episódica com ocorrência de um déficit progressivo ou estável, contínua, ou comportar um ou vários episódios seguidos de uma remissão completa ou incompleta (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 1998).

A esquizofrenia na visão da Gestalt-terapia, não é tratada como uma doença, pois nos ajustamentos psicóticos também há um intenso trabalho de criação na fronteira de contato. Também é um ajustamento criativo (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2008).

Vicentini (2007), afirma que, no conceito de fronteira do “eu” que envolve a percepção do indivíduo do que está dentro ou fora do corpo, é onde o ajustamento psicótico apresenta dificuldades, pois projetam no exterior conteúdos internos. É possível perceber uma fronteira de contato muito rígida, devido às suas vivências internas serem tão intensas que podem interpretar o contato como uma ameaça a sua integridade física, levando-o muitas vezes a reações inesperadas ou exacerbadas chegando até a agressão física.

Tomando como norte o ciclo do contato, a esquizofrenia parece estar nas disfunções mais comuns correspondentes à função id do self, sendo a fixação (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2008), a deflexão e a dessensibilização. E no processo figura-fundo, a figura não está clara emergindo do fundo, ou vice-versa. Há uma confluência no processo figura-fundo (VIEIRA, 2010).

Nos ajustamentos psicóticos, o indivíduo tem dificuldades em perceber seu senso de integridade, de perceber o que é e o que está dentro ou fora de sua fronteira. Sendo assim não consegue manter espontaneamente contato consigo mesmo e com o mundo a sua volta de forma “auto-reguladora” (VICENTINI, 2007).

Portanto, busca-se no cliente psicótico o funcionamento saudável e equilibrado, para que o indivíduo possa identificar suas necessidades e diferenciá-las do meio ambiente; responder satisfatoriamente suas necessidades, fechando processos, se transformando e novamente se abrindo para novas possibilidades de crescimento e desenvolvimento saudável, dentro de seus próprios limites (VIEIRA, 2010).

No que tange à conduta do terapeuta, Vieira (2010) afirma que o resultado esperado no tratamento

“[...] deverá levar em consideração as especificidades desse paciente, seus limites, seu contexto e sua realidade. Assim, o terapeuta não vislumbrará somente a possibilidade de cura, mas, antes de tudo, a possibilidade desse indivíduo se organizar dentro da sua sintomatologia, tornando-se responsável por si mesmo”. (p.78)

Santos (2005, apud VIEIRA, 2010) salienta que é muito importante a confirmação referente à validação da experiência (como possível, real e autêntico) do cliente, tanto quanto a presença do terapeuta no processo terapêutico, para que assim, busque estabelecer uma relação terapêutica com objetivo de resgatar as relações de confiança, por menores que possam ser.

Diante destas condições, o terapeuta tem dificuldades para realizar um trabalho com clientes psicóticos somente através do diálogo. Destarte, o Gestalt-terapeuta pode utilizar da Arteterapia como técnica integradora.

Através da Arteterapia, o gestalt-terapeuta oferece a possibilidade da expressão da realidade, da comunicação e do contato com pensamentos, sensações e emoções. A criatividade toma conta para dar uma nova “boa forma”.

“Ajustamento criativo e contato são conceitos-chave na Gestalt-terapia, pois implicam não apenas “ajustamento”, mas “ajustamento criativo” e não só em “contato”, mas “contato criativo””. (CIORNAI, 2004, p.58)


Arteterapia e gestalt-terapia

A expressão visual tem sido usada como fator de cura através da história, porém somente em meados de 1940 que foi reconhecida como profissão. A Arteterapia é uma profissão da saúde mental que utiliza o processo criativo da arte de expressar, para melhorar e aperfeiçoar o desenvolvimento físico, mental e emocional, objetivando o bem-estar dos indivíduos de todas as idades. É baseada na crença de que o processo criativo envolvido na auto-expressão artística, ajuda as pessoas a lidar melhor com seus conflitos e problemas, a desenvolver habilidades interpessoais, conscientizar comportamentos, reduzir estresse, aumentar auto-estima, desenvolver auto-consciência, e ter insights (AMERICAN ART THERAPY ASSOCIATION).

Segundo Ciornai (2004), “Arteterapia é o termo que designa a utilização de recursos artísticos em contextos terapêuticos”. (p.7) É o trabalho de profissionais que utilizam as artes plásticas como recurso terapêutico, também chamado de “artes em terapia” ou “terapias expressivas”, diferentemente do termo “artes” que se refere de modo geral a diversas linguagens artísticas.

Liebmann (2000) descreve Arteterapia como um tipo de expressão pessoal, da qual se utiliza da arte para comunicar sentimentos sem expectativas em obter um produto final, estético ou agradável, sendo assim, é um meio de expressão acessível a todos e não somente àqueles que têm talentos artísticos. “Não é necessário nenhuma habilidade ou inabilidade específica”. (p.18)

A Arteterapia é assim chamada, principalmente por ter se desenvolvida mais no campo da saúde mental, especialmente nos hospitais psiquiátricos. Entretanto, pode ser importante não somente para aqueles que estão mergulhados em problemas sérios, como também para aqueles que buscam apenas explorar a si mesmo e os seus sentimentos (LIEBMANN, 2000).

O fazer artístico tem potencialidades de cura quando acompanhado pelo arteterapeuta, facilitando assim a ampliação da consciência e do auto-conhecimento, possibilitando mudanças a quem faz arte. Promove através da ação uma oportunidade de experimentar novas possibilidades de integração, expressão e transformação por intermédio da arte, onde novas possibilidades são imaginadas e experienciadas (CIORNAI, 2004).

Zinker (2007), afirma que o fazer artístico, como desenhar ou pintar, tem potencialidades terapêuticas, pois,

“(...) quando são experienciadas como processos, essas atividades permitem ao artista se conhecer como uma pessoa inteira, dentro de um intervalo de tempo relativamente breve. Ele não só se torna consciente de um movimento interno direcionado à totalidade experiencial, como também recebe uma confirmação visual desse movimento nos desenhos que executa”. (p.259, 260)


Liebmann (2000), salienta que a arte facilita a criatividade; é útil no trabalho com a imaginação e o inconsciente; quando concretos, possuem a vantagem de serem examinados depois de prontos; desenvolve a concentração, a destreza, a memória, a autopercepção, a imaginação, a desinibição, a expressão corporal e a expressão verbal.

A Arteterapia enquanto recurso técnico na Gestalt-terapia teve seu início marcado por Janie Rhyne, que a chamou de Experiência Gestáltica de Arte (em 1973), e posteriormente de Arteterapia Gestáltica (em 1987), conservando-se assim até os dias atuais (CIORNAI, 2004).

Em seu único livro: “Arte e Gestalt - padrões que convergem”, Rhyne (1973/2000) define sua abordagem afirmando a valorização da individualidade de cada ser humano, enfatizando a grande importância terapêutica da atividade expressiva não interpretativa como processo integrador, bem como fonte de caminhos do aprendizado de si mesmo.

Ciornai (2004), define Arteterapia Gestáltica como “um modo de usar recursos artísticos em e como terapia, como uma compreensão do crescimento das pessoas e do trabalho terapêutico, fundamentada na Gestalt-terapia”. (p.15)

Conforme a mesma autora, a Gestalt-terapia e a Arteterapia Gestáltica, acredita que o fazer da arte, quanto o processo de elaboração e reflexão da mesma, são considerados como tendo potencialmente valor terapêutico, devido à crença destas abordagens no processo criativo do ser humano.

Segundo a acepção Gestáltica, todo contato tem raízes em nossas “funções de contato” (ver, escutar, tocar, mover etc.), portanto os processos artísticos bem como outros processos experienciais, podem ser considerados e utilizados como recursos valiosos para promover a intensificação do contato consigo mesmo, com os outros e com o mundo (CIORNAI, 2004).

Liebman (2000) e Ciornai (2004) concordam ao dizerem que a dificuldade em dar sentido aos nossos sentidos e, expressar verbalmente sensações ou sentimentos indefinidos, “pode freqüentemente ser facilitada por outras linguagens. [...] em imagens, cores, movimentos ou sons”. (CIORNAI, 2004, p.71 e 72) Mobilizando assim, energia e emoção através da ação, formando a awareness no próprio processo da ação, devido à ativação das áreas sensório-motora, perceptual, emocional, cognitiva, imaginativa, intuitiva e até espiritual.

Zinker (2007), explica que através da arte, o cliente desenvolve a formação de figura-fundo da awareness congruente com a figura-fundo de sua arte. A obra acabada (com exceção do valor estético) torna-se uma confirmação de sua capacidade de se tornar um ser humano integrado.

No que tange a função do Arteterapeuta Gestáltico, Ciornai (2004) e Rhyne (2000), demonstraram que o mesmo não interpreta os trabalhos de seus clientes, pois como toda abordagem fenomenológico-existêncial, acredita que o cliente é agente de sua própria saúde e de seu processo de crescimento, e que os trabalhos e criações dos clientes possuem sentidos relevantes e significativos particulares.

Sendo assim, o Arteterapeuta Gestáltico exerce a função de guiar, facilitar e acompanhar a busca do cliente, sugerindo experimentos e técnicas que possam ajudá-lo a entrar em contato com realidades interiores e descobrir novos significados (CIORNAI, 2004).

Estas técnicas vão desde exploração de materiais como o desenho, colagem, gravura, argila, modelagem, pintura, máscaras e marionetes, como também meditações, expressões corporais, diálogos, teatro e imaginações (LIEBMANN, 2000; PAÏN e JARREAU, 2001; RHYNE, 2000).


Um relato de experiência

De acordo com o objetivo proposto no artigo, farei um recorte das sessões realizadas para relatar minha experiência em Arteterapia na prática clínica individual com um cliente diagnosticado como esquizofrênico.

Um sujeito do sexo feminino de 47 anos - na qual chamarei de O. -, foi trazida pelo pai e pela filha a terapia com o diagnóstico de esquizofrenia.

Não foi possível compreender a queixa do sujeito, tão pouco o raciocínio lógico de sua fala, devido o fato do mesmo conversar associando[3] em demasia. Entretanto, apesar de sua fala ser muito confusa, dizia algo a respeito de seu ex-marido e sua filha - quem marcou sua consulta.

No início do tratamento, O. falava de diversos assuntos simultaneamente, para explicá-los dava exemplos, sendo estes associações de sua imaginação. Tinha dificuldades em dizer algo sem associar. Sempre usava as seguintes palavras para se comunicar: “Como”, “Como se fosse”; “Parece”; “É igual”, “Que nem”, e então começava a associar.

Cito trecho de uma sessão quando lhe perguntava a respeito do cartão de passe de ônibus que iria fazer:


“Terapeuta: E a questão do cartão, você foi ver?

O: Vou fazer, se não for essa semana, na semana que vem, aí o namorado a V. que vai pagar a armadura. Sabe o que eu pensei Adriano, Adriano não, Henzique, Henzique não, Drº Fabrício, que assim que nem o dragão de chaolim para memorizar as coisas né.

T: Assim como o quê?

O: Dragão de Chaolim para meditar as coisas né.

T: Dragão de Chaolim.

O: Dragão de Chaolim, aquele ninja do japonês dos estados unidos, basicamente dos estados unidos né, porque os estados unidos que tem o dragão de chaolim né. Aí é, para meditar as coisas, procurar um jeito de processar para não esquecer, porque o nosso cérebro é que nem eu te falei é um arquivo de glândulas que vão complexando de forma negra, elas tremem forma aqueles grude, que formam os neurônios né, que nem aquela propaganda que tem na TV daquele rapaz que anda com a cadeira de rodas. Aquilo parece que aquele cérebro que ta lá, um dia eu tava pensando meu cérebro, meu cérebro ele tem muito de imaginações de cientificismo pra inventa, às vezes de prazer, e aquele cérebro que tem uma coisa assim e duas coisas assim (mostra uma forma com a mão), um pouco assim, e vai esfriando assim, parece uma mulher né, aí eu falei assim, é.” (SIC)

 

Na tentativa de fazer com que O. percebesse o que eram associações de sua imaginação, e o que realmente acontecia na realidade dos fatos públicos, me utilizava da descrição dos fenômenos, em seguida enfatizava o conflito que poderia se dar ao comunicar-se mal, ou como poderia ser mal entendida por tal comunicação, incentivando-a a expressar-se de maneira que não fizesse tantas associações.

Conforme Vieira (2010) descreve sobre o processo psicótico figura-fundo, na qual a figura não está clara emergindo do fundo, ou vice-versa, de fato me era percebido esta confluência, logo busquei utilizar a pergunta: “O que você está querendo me dizer com isto?” na tentativa de que O. concentrasse e integrasse algum pensamento ou sentimento para poder se expressar mais nitidamente. Entretanto, ao realizar esta pergunta, novamente descia uma avalanche de associações. Foi então que percebi a dificuldade de realizar um atendimento psicoterapêutico somente com intervenções verbais.

Na oitava sessão, O. chegou refletindo, dizendo como deu conta de suportar todos os problemas que já passou, e vagou por vários assuntos de diversas associações de sessões passadas. Todas as histórias que contava sempre tinham as mesmas características: dois lados, o bom e o ruim e algo envolvendo uma transformação entre eles. Falou sobre algumas histórias envolvendo água, e disse que quando fala de água, fica nervosa (tensa), em seguida me pediu para que pegasse em sua mão para perceber o quanto estava gelada.

Após ter sentido sua mão gelada, O. continuou vagando por diversas associações, então disse que sabia fazer uma captação do pensamento com algo que acontece na vida, e que o fazia de vez em quando em um papel na sua casa. Senti ali a oportunidade de ampliar a intervenção e, com o seu consentimento, pedi para que fizesse esta captação em uma folha que lhe dei. O. começou a associar diversas coisas incoerentes à compreensão lógico-causal enquanto fazia sua captação, após terminar, deu o nome de: “Projeção psicodimensional em radar, em eixo” (SIC)

Após ter feito e explicado sua captação, disse a O. que entendia o que estava fazendo, conseguia ver algum sentido no que fez, porém, se fizesse aquilo, utilizasse ou explicasse daquela maneira a alguém, poderia não ser bem compreendida, poderiam chamá-la de louca ou algo do tipo, pois aquilo só tinha sentido para ela que a criou. Em seguida disse que se quisesse conversar daquela maneira ou aquilo, que poderia ser comigo, mas que buscasse clarificar este tipo de raciocínio quando for conversar com outras pessoas. Ao término desta sessão, a levei até a porta, nos despedimos e O. me disse: “Muito obrigado, você ajudou bastante.” (SIC) e sorriu.

Neste momento do processo, percebi o potencial terapêutico que se deu quando confirmada e validada sua experiência, como também, o quanto o expressar artístico possibilitou sua integração.

Nas sessões seguintes O. começou a contar histórias mais conexas, porém com percepções delirantes, como quando ficou em dúvida se tinha criado o filme Avatar, pois havia pensado em algo parecido com os personagens do filme para a sua filha; e continuava a associar. Estas percepções delirantes sempre foram citadas de forma duvidosa pela mesma.

Com a experiência do fazer artístico já citado acima, me fez querer explorar este recurso, porém não queria lhe impor uma atividade artística sem sentido ou contexto, mas sim um objeto na qual a mesma pudesse utilizar e encaixar quando lhe faltassem recursos para se expressar.

O momento oportuno se deu na décima sétima sessão, quando O. percebeu suas próprias associações, reconhecendo sua dificuldade ao comunicar-se, e como pode ser mal entendida quando mantiver esse tipo de comunicação. Na sessão citada, O. disse que associou quando conversava com uma mãe na escola de sua filha, e afirmou que não conseguia controlar. Logo em seguida começou a associar novamente com o tema de aproveitar, transformar, então perguntei como ela poderia aproveitar de suas associações, respondeu O. que desenha em uma folha as vezes seus pensamentos (como já fez na sessão descrita mais acima) e não conseguiu pensar em outra coisa. Propus então que fizesse o possível para que tentasse associar menos enquanto conversava com outras pessoas, e que guardasse essas associações, para que na próxima sessão transformasse estas idéias em uma imagem que iria pintar em uma tela. O. aceitou a proposta.

Na sessão seguinte, arrumei o setting terapêutico, disponibilizei tintas guache das cores: azul, amarela, vermelha, verde, branca e preta; e quatro pincéis de diversas espessuras.

Antes de iniciar a pintura expressa, em uma conversa breve, perguntei a respeito do que combinamos, sobre tentar se comunicar melhor, buscando não falar muito de maneira associada com as pessoas, após O. ter confirmado, acrescentou que pensou bastante sobre o que pintaria.

Em seguida, já em frente da tela, a orientei dizendo que poderia pintá-la da forma que bem entendesse, que não existe feio ou bonito nem certo ou errado, e que teria o tempo que quisesse para terminar o quadro, podendo continuar em outras sessões. O. iniciou sua pintura dizendo que ia desenhar uma associação que tinha me falado, que tentando dar um nome, seria um tipo de “transformação evolutiva” (SIC).

Começou a desenhar o sol em forma de estrela em vermelho; uma árvore com o tronco verde, pois “não tem tinta marrom” (SIC), e a copa amarela, com algumas folhas e frutos amadurecendo, expresso pela pele em preto atrás das frutas. Folhas caindo, se transformando em grama; nuvens e um vento que se transforma de acordo com a copa da árvore se mexendo, que por sua vez, modifica a forma das nuvens. Segundo O. “o sol é vermelho como a bateria que é oque faz funcionar, viver, como o pulmão é para o homem.” (SIC)

Na décima nona sessão pintou mais ventos, colocou mais traços no sol, na árvore, fez algumas folhas caindo, alguns pássaros e a energia do sol chegando a todo o desenho. Deu o nome do quadro de “RESPIRAÇÃO REPRODUTORA”, explicou-me, que todos respiramos, inclusive as plantas, e me falou que desenhou um rosto no centro da árvore e um no sol, e disse que o nariz que tem no rosto desenhado na árvore respirava a energia do sol, e o sol também respirava.

O. explicou seu desenho de uma forma tudo interligada, finalizando o desenho em duas sessões.

Após o término da tela, conversamos sobre como foi o processo de pensar e pintar a tela. O. se expressou, associou – em temas de perder, nascer e transformar -, e ao final da sessão pedi para que O. resumisse todas as associações que tinha feito, expressando como foi fazer a pintura em uma frase ou um parágrafo.

O. disse que chegou na conclusão de como é importante expressar-se bem e ser bem entendida.

Sentindo o processo nas próximas sessões, e trabalhando com O. suas percepções delirantes, suas associações - que já estavam amenas -, e agindo como um fio terra da realidade, percebi um movimento temático de organização em seu processo no qual culminou no vigésimo nono encontro.

Durante este encontro O. associou poucas vezes, mas após 20 minutos de conversa começou a associar seguidamente, e todas as associações giravam em torno do tema organização.

Combinei com O. na próxima sessão trabalharmos com argila, ressaltei a O. o tema que percebi ter aparecido em suas associações, a “organização”, e após ressaltar, pedi para que pensasse neste tema, pois na próxima sessão iria dar forma a ele, dar forma a algum objeto que o represente ou que esteja envolvido de alguma maneira com este tema.

Na sessão ulterior, O. fez dois objetos: um coração, que ao mesmo tempo é uma mão e um passarinho; e, uma gênio saindo da garrafa.

Explicou que fez o coração porque tudo na vida precisa de amor para dar certo, fez a mão porque precisa de uma mão amiga, um apoio, e o pássaro fez algumas associações junto à mão amiga e o coração (amor). Na gênio, me falou como é sábia por ser o que é e fazer o que faz. Teve várias associações ao explicar como a gênio faz para sair da garrafa, se mexendo e balançando o cabelo, etc.

Então pedi para imaginar que a gênio estivesse presa na garrafa, e perguntei o que ela precisaria fazer agora para sair da mesma. O. me disse através de várias associações que conseguiria sair tomando remédios indicados pelo psiquiatra, acompanhando com um psicólogo, para poder conversar, e trabalhar o cérebro. Em seguida começou a falar de seus rabiscos que faz com intenção de que aconteça no futuro. Falei para O. que não focasse somente nesses rabiscos, que eles eram importantes, mas que não poderia esquecer dessa realidade na qual nos comunicamos, para que tentasse equilibrar os dois lados.

Após a conversa, perguntei ao final da sessão como estava e como foi ter trabalhado com argila, O. disse que estava se sentindo bem, que gostou de trabalhar com a argila, e que agora se sentia segura, pois eu não a julgava, via um lado bom em suas associações, não dizia que era coisa ruim, nem deixava de dar valor.

Nas sessões seguintes O. pintou suas obras e trabalhamos com a obra pronta, explorando o seu significado, o seu processo, suas peculiaridades e as afinidades que tinham com quem as criou. Segundo O. “a argila ajuda, pois quando mexe, aperta e dá forma, firma o pensamento” (SIC)

Como Liebman (2000), Ciornai (2004) e Zinker (2007) já salientaram, esta dificuldade em dar sentido aos sentidos e, expressar verbalmente sensações ou sentimentos indefinidos, pôde ser facilitado e ajustado criativamente por outras linguagens, conforme relato acima.

Continuei o trabalho com O. utilizando da concretude expressa no papel, sempre que precisasse. Querendo ou não, há uma organização para poder escrever ou desenhar. Sua mudança se evidenciava quando dizia que estava lendo livros, tentando e conseguindo se organizar em casa e em suas conversas, se produzia para ir à terapia e chegou a emagrecer 4 kilos, além disso, se expressava mais nitidamente, com poucas associações.

O ápice de O. no processo terapêutico foi de não associar por duas semanas, conversar de maneira tão clara como a água. Após estas duas semanas, voltou a associar demasiadamente, e voltamos ao trabalho de Sísifo[4].

Cito trecho de uma sessão na semana em que O. parou de associar:

“O. contava que foi aniversário da G. (sua filha) e A. (ex-namorado de sua filha V.) foi visitá-las e levou uma caixa de bombom para G. e para V.

O: Aí a V. disse: mãe o A. deixou essa caixa de bombom, ficou perguntando curiosa. Aí ela falo: mais ele não gostava de mim mesmo. Eu acho que ele não gosta dela né. Só namorou para... Como que se fala assim, queria ver mesmo se ia dar certo ou não, mais não deu né. Ela ta namorando o H., estão estudando, arrumando as coisas, até estão tirando carteira de motorista, pra comprar um carro. Às vezes ela é carregada por ele de lá pra cá, pra casa dele, lá pra casa. Um casamento moderno hoje em dia né, mas ele é firme com ela né, ele é muito ciumento, e ela é muito tupetuda, até que ela ta obedecendo ele. E a G. (sua filha) toda faceira quando chega o H. e o M. que eles são muito carinhosos. A mãe do M. telefonou dando parabéns pra G.

T: Quem que é o M.?

O: M. é o irmão do H.

T: hum.

O: M. na casa dele não dá problema para os pais né, ele é tudo organizado também né. Aprendi a fazer sanduíche, que M. gosta também né. Hoje preparei o almoço pra G. inclusive minha panela de pressão, não é que estragou o pino?! Eu coloquei em cima da pia, aí fiz limpeza e joguei fora. Vo te que comprar outro novo.

T: (risos)” (SIC)

 


Considerações finais

A psicoterapia em clientes com diagnóstico de esquizofrenia é de fundamental importância para o seu processo de equilíbrio entre fantasia e realidade, pois o mesmo já está auto-imerso e necessita de um auxílio real para auto-emergir.

Entretanto a dificuldade em manter um diálogo “coerente” com clientes que estão esquizofrênicos é demasiado exaustivo e quase que inacessível, destarte, levando-se em consideração as peculiaridade e acessibilidades de cada cliente, a Arteterapia Gestáltica nos apresenta um instrumento que pode ser realmente útil e acessível no processo terapêutico com clientes psicóticos, possibilitando desta forma um contato e uma integração da qual ninguém além do próprio cliente consegue realizar.

Para o sujeito que parece estar deflexivo, dessensibilizado ou fixado – tomando como norte o ciclo do contato -, nada mais fluido do que lhe proporcionar a ação, deixá-lo contactar.

A Arteterapia Gestáltica não é uma panacéia dos atendimentos psicóticos, mas sim um conjunto de potencializadores integrativos. Não somente a arte, mais a presença do terapeuta como dado da realidade, a postura fenomenológica do mesmo – não interpretando e valorizando o trabalho realizado como sentido e significado idiossincrático-, a confirmação e validação da experiência juntamente com o vínculo terapêutico, parecem facilitar a integração do sujeito.

Meu objetivo neste artigo não logra esgotar o assunto, nem mesmo trazer a solução deste tipo de prática psicoterapêutica, mas sim, expor e auxiliar o psicoterapeuta que quiçá passar pelo mesmo tipo de limitação que passei.



1 - “O que comumente se chama de intervenção terapêutica é o que o psicoterapeuta verbaliza ao cliente. [...] A intervenção verbal do psicoterapeuta é o comportamento que consiste no recurso técnico primordial de seu trabalho” (LIMA FILHO, 2002, p.28 e 29).

2 - Constei em PERLS, F. S., 1977; FAGAN. J.; SEPHERD, J. L. (Orgs.), 1980; SANTOS, E., 2005; VICENTINI, E. B., 2007; MÜLLER-GRANZOTTO, M. J.; MÜLLER-GRANZOTTO, R. L., 2008; e VIEIRA, L., 2010.

3 – A palavra associação que aqui emprego - e que tornará a aparecer diversas vezes durante o relato de experiência - refere-se: ao significado gramatical da mesma, combinar, unir e organizar; encaixar diversas histórias de maneira não linear-lógica da qual comunicamos.

4 - Referência ao mito grego de Sísifo, que por desafiar os deuses foi condenado a rolar por toda a eternidade uma pedra de mármore com as próprias mãos montanha acima, porém toda vez que chegava próximo do pico desta, a pedra rolava montanha abaixo e então Sísifo tornava a empurrá-la novamente.



REFERÊNCIAS


AMERICAN ART THERAPY ASSOCIATION. What is Art Therapy? Disponível em: <http://www.americanarttherapyassociation.org>. Acesso em: 10 de maio de 2011.


ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Esquizofrenia. In: DSM-IV. Disponível em: <http://virtualpsy.locaweb.com.br/dsm.php>. Acesso em: 10 de maio de 2011.


CIORNAI, S. (org.). Percursos em Arteterapia: Arteterapia Gestaltica, Arte em Psicoterapia, Supervisão em Arteterapia. São Paulo: Summus, 2004.


LIEBMANN, M. Exercícios de arte para grupos. Trad. Rogério Migliorini - São Paulo: Summus, 2000.


LIMA FILHO, A. P. Gestalt e sonhos. São Paulo: Summus, 2002.


MÜLLER-GRANZOTTO, M. J; MÜLLER-GRANZOTTO, R. L. Clínica dos ajustamentos psicóticos: uma proposta a partir da Gestalt-terapia. IGT na Rede, Rio de Janeiro, RJ, 5.8, 24 03 2008. Disponível em: <http://www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=176>. Acesso em: 10 de maio de 2011.


ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Classificação de transtornos mentais e de comportamento. CID-10. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.


PAÏN, S.; JARREAU, G. Teoria e técnica da arte-terapia: a compreensão do sujeito. Porto alegre: Artmed, 2001.


RHYNE, J. Arte e Gestalt: padrões que convergem. São Paulo: Summus, 2000.


VICENTINI, E. B. Fronteira de Contato em Pacientes Psiquiátricos Institucionalizados. Disponível em: <http://www.nucleogestalt.com.br/artigo.asp?id=3>. Acesso em 10 de maio de 2011.


VIEIRA, L. Reflexões acerca da esquizofrenia na abordagem gestáltica. IGT na Rede, v. 7, nº 12, 2010, Página 65 de 80. Disponível em: <http://www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=275>. Acesso em 10 de maio de 2011.


ZINKER, J. Processo Criativo em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2007.

Endereço para correspondência


Fabrício Siqueira Basso

E-mail:fabricio_fsb@hotmail.com

Recebido em:05/11/2011

Aprovado em:29/09/2011