ARTIGO


Reflexões acerca da relação entre a alimentação e o homem

Reflections on the relationship between food and man

Vivilaine Maturana

Endereço para correspondência


Resumo

Por meio deste trabalho, é desenvolvida uma reflexão sobre a relação construída entre o alimento e o ser humano, fazendo um pequeno histórico de como o sujeito relaciona-se com o alimento, desde os tempos mais remotos até os dias de hoje. A relação entre o alimento e o corpo é contemplada através de visões antropológicas, reações orgânicas, e, especialmente, mediante contribuições da psicologia, trazendo algumas considerações a respeito da importância do olhar psicológico sobre o fenômeno alimentar.

Palavras-chave: Alimentação; Ser humano; Psicologia; Gestalt-terapia.


Abstract

Through this article or review is developed a reflection on the relationship between the food and the human being, making a brief history of how people were linking up with food, since the most remote times until the present day. The relationship between the food an the human being is contemplated through anthropological vision, organic reactions in the relationship of the food and the body, and especially through the contributions of psychology, bringing some considerations about the importance of the psychological look over food phenomenon.

Keywords: Food; Human beings; Psychology; Gestalt therapy.


Introdução

O interesse em estudar o tema da alimentação surgiu quando refletíamos sobre a incidência das questões referentes ao assunto nos atendimentos psicoterápicos, nos quais percebíamos que o ato de comer, muitas vezes, estava relacionado a diversas questões do âmbito social, estético e emocional, e como estas áreas se encontram quando o olhar sobre as partes dá lugar à complexidade do todo.

Tendo em mente várias sessões de angústia vividas por algumas clientes insatisfeitas com o seu peso e também por suas dietas mal-sucedidas, começamos a questionar acerca do que levava as clientes a burlarem suas próprias regras, saindo das restrições assumidas nas planilhas de redução alimentar, e acerca da forma como cada uma delas se relacionava com a alimentação.

O mais interessante foi perceber que cada uma se relacionava de forma diferente; compensação, compulsão, escolha específica do alimento e gratificação eram algumas das relações que pudemos observar e sobre as quais foi possível refletir naquele momento.

Bastou olhar mais um pouco ao redor para perceber que o tema é bastante amplo e atinge muitas pessoas. Além disso, existem poucas respostas; encontramos muito pré-conceito, discriminação, dietas milagrosas e classificações patológicas. Perceber um mundo obeso e, ao mesmo tempo, esteticamente lipoaspirado, bulímico e anoréxico também gera algumas indagações.

Ao iniciar uma pesquisa bibliográfica, pudemos constatar que pensar em alimentação é complexo, pois trata-se de um tema que é muito abrangente e que se pode desdobrar em vários outros. E, em consequência disto, a delimitação do tema para a construção desta monografia apresentou-se como um desafio.

Antes de começarmos, uma pergunta se faz necessária: por que pensar na alimentação? Ao pesquisarmos sobre o assunto, encontramos uma autora que determina bem a importância da alimentação no dia-a-dia de cada sujeito, o que nos ajuda a entender que estudar a alimentação está diretamente relacionado com estudar o indivíduo e seus hábitos.

Em cada lar, pelo menos umas cinco horas diárias são dedicadas à comida, entre refeições, lanches e seu preparo. E isso nem inclui as idas ao supermercado, à padaria ou ao açougue. (HERCULANO-HOUZEL, 2003, p. 212).

Entendendo a importância diária da alimentação, pudemos questionar e buscar respostas também para outras perguntas relevantes para este trabalho, como: por que a psicologia deve estar preocupada com o tema, já que tabelas nutricionais e menus nunca foram o seu objeto? Que relações existem entre o ato de comer ou entre a falta dele e os aspectos emocionais?

Sendo a psicologia uma área que se interessa em estudar o comportamento humano, e sendo a alimentação um comportamento diário, vital e tão complexo, imaginamos que iríamos encontrar muita literatura acerca desse assunto. No entanto, foi surpreendente o fato de ter havido tanta dificuldade em encontrar material de pesquisa.

O objetivo inicial deste projeto se baseava na leitura da alimentação enquanto influenciadora nos estados emocionais do sujeito. No entanto, ao nos deparamos com a escassez de literaturas acerca do tema, optamos por realizar, nesse primeiro momento, um apanhado geral sobre a alimentação sob as lentes da psicologia e, principalmente, da Gestalt-terapia.

Em primeiro lugar, buscamos abordar a alimentação de forma geral, no contexto histórico e social. Apresentamos o tema no que se refere à constituição dos sujeitos em vários âmbitos de sua vida, pontuando a relação emocional existente no ato de alimentar-se e descrevendo as diversas formas de relação entre o alimento e o indivíduo.

No segundo momento, buscamos apresentar a forma como o tema alimentação foi discutido e teorizado por algumas abordagens da psicologia. E, para tal, escolhemos algumas linhas teóricas que julgamos mais relevantes para este trabalho, tais como: a psicanálise Freudiana, Reichiana, a abordagem corporal bioenergética, a abordagem sistêmica familiar e principalmente as contribuições da Gestalt-terapia.

Buscamos trazer, as contribuições da psicanálise, uma vez que acreditamos ser ela o berço da psicologia clínica.

Escolhemos, também, abordar a teoria de Reich, por se tratar de um psicanalista que se dedicou a um olhar específico sobre o corpo e suas interações emocionais e orgânicas.

Apresentamos as contribuições da Gestalt-terapia, com destaque, pois trata-se da abordagem escolhida como base pela autora, para o trabalho na psicologia clínica, e, ainda, por tratar-se de uma teoria que procura ter um olhar integrando as partes num todo.

A alimentação também é apresentada sob o prisma do funcionamento orgânico do corpo humano em relação com o alimento, da alimentação às percepções e às reações químicas do corpo; pensando sobre as curiosidades e sobre as dúvidas acerca de como o cérebro e como o corpo, na sua totalidade, recebem e reagem à alimentação e a cada tipo de alimento.

Por fim, repensamos o processo de pesquisa, detalhando o procedimento utilizado na obtenção do material e a forma como esse foi tratado no decorrer do trabalho. Este tópico denuncia a falta de publicações sobre o tema, a carência de diálogo entre as áreas do saber no que se refere ao assunto abordado neste trabalho e levanta a necessidade de reflexão e de contribuições da psicologia acerca das relações entre alimentação e o sujeito.

 

Sobre a alimentação: indo além do ato de nutrir.

A alimentação, na contemporaneidade, está longe de ser apenas uma forma de nutrir o corpo diante das necessidades para alcançar a sobrevivência. Ela está diretamente ligada a fatores históricos, familiares, sociais e até mesmo religiosos, como abordaremos neste capítulo.

Pretendemos abordar a relevância da alimentação na constituição dos sujeitos em vários âmbitos da vida, pontuando a relação emocional existente e descrevendo as diversas formas de relação entre o alimento e o indivíduo.


Antropologia do alimento:

Escolhemos iniciar a discussão acerca do tema com uma leitura antropológica da alimentação, aproveitando a contribuição da antropóloga Maria Leonardo (2006), que divide a relação humana com o alimento e a forma de consegui-lo em três estágios.

Num primeiro momento, as sociedades primitivas sobreviviam da “caça, pesca e colheita natural, ou seja, do que pescavam, caçavam e das raízes e frutos que colhiam naturalmente, sem plantações e esforços para produzir” (p.1. Leonardo 2006). Essa etapa representa um nível de subsistência que depende do que a natureza oferece e é capaz de sustentar somente uma sociedade bem pequena.

Depois, surge o segundo estágio, que é praticamente a produção de alimentos, quando ocorre uma “domesticação” de plantas e animais, passando o homem a ser produtor e não caçador de alimentos. Nesse processo o homem administra e cultiva as sementes e pastoreia rebanhos, garantindo alimentação durante todo o ano, tornando-se um grande avanço. A agricultura e agropecuária tomaram formas bem expressivas na alimentação da sociedade. Nesse estágio, as pessoas viviam da produção de suas próprias terras a partir da colheita, em pequenas cidades. As necessidades eram supridas através das trocas e de vendas locais.

O terceiro estágio é atribuído à Revolução Urbana e à Revolução Industrial, quando passa a existir uma grande concentração de pessoas nos centros urbanos, tendo por consequência a necessidade da produção de alimentos em grandes escalas e da inserção da produção industrial.

A explosão demográfica implica em uma nova era na produção de alimentos. Essa revolução tem acontecido nos últimos 200 anos.

Juntamente com a facilidade para se obter comida, alguns hábitos e regras também sofreram adaptações. Atualmente, o ato de comer varia entre a refeição com a família e com os amigos, na qual os alimentos são preparados ou, então, sentar-se à mesa com hora marcada, numa relação prazerosa e também de compromisso, e numa forma rápida e pouco nutritiva, muitas vezes em fast foods, na pressa de alimentar-se e dar continuidade a obrigações de trabalho.


Nos primórdios da vida: do útero à amamentação.

A relação que o sujeito estabelece com o alimento se desenvolve desde o início de sua vida. Seguindo uma cronologia, tentaremos problematizar o tema, abordando vários fatores emocionais relacionados ao alimento no decorrer de alguns estágios do desenvolvimento.

A alimentação está vinculada não apenas à nutrição, mas também à troca, ao contato com o outro e a toda relação de amor e carinho estabelecida entre mãe e filho. Através da amamentação, a criança começa a estabelecer essas relações culturais, familiares e emocionais com a comida, o que vai muito além do simples ato de se alimentar.

Na realidade, desde o útero, o bebê se relaciona com a mãe. Um dos meios é o mesmo por onde ele recebe alimento, que é o cordão umbilical. A partir daí, o ato de se alimentar já recebe uma conotação emocional, uma vez que é o mesmo que liga o feto à mãe, juntamente com seus sentimentos e emoções.

O nascimento, segundo o médico psicanalista Donald Winnicott (2000), é o primeiro corte, o primeiro rompimento dessa situação familiar e confortável para o bebê. Esse corte simboliza um começo de vida independente; de repente, depois do parto, o bebê está num ambiente em que sentirá tudo pela primeira vez: o ar, a temperatura, a visão, o tato.

Esse primeiro contato com o ambiente é, de alguma forma, assustador para o bebê, que só conhecia o mundo protegido de dentro do útero materno e, bruscamente, vê-se obrigado a sobreviver, tendo de respirar e de clamar pelo alimento.

Essa ruptura repentina para o bebê é ainda, de acordo com Winnicott (2000), amenizada pelo ato de amamentar, pelo qual a mãe desenvolve com seu filho uma nova forma de transmitir seu amor.

É nesse contato, através do peito, que se devolverá a segurança e o calor presentes no útero. Assim, o desligamento da mãe, pode ser lento e progressivo, até chegar o tempo em que o bebê não mais precisará de leite e nem de segurança tão estreita. Esse período da amamentação, no qual predominam processos de desenvolvimento emocional, tem vital importância para toda a vida do sujeito. Winnicott (2000) acredita que, nesse processo, muitas patologias podem ser desenvolvidas, com base nessa relação criada entre mãe e bebê.

Para Winnicott (2000), o bebê, nesse período inicial da amamentação, está disposto a acreditar que pode criar o seio. Desenvolve-se nele a capacidade de alucinar um objeto. Sua crença é de que ao desejar o seio, ele aparecerá, e é neste momento que a mãe aparece com o seio e o coloca de tal modo que a criança consegue pegá-lo com a boca. O bebê, na realidade, cria uma expectativa devido a sua necessidade, inicialmente, orgânica, e, com o movimento da mãe de lhe dar o seio, ele se acha capaz e confiante de conseguir o que deseja.

A mãe ao adaptar-se ao impulso do bebê permite que ele tenha a ilusão de que foi ele quem criou o seio. Desta forma, o resultado não é somente uma experiência física da satisfação instintiva como também uma ligação emocional e uma crença na segurança de sua capacidade de criação.

Nas experiências com o seio, o bebê começa a brincar, e esta interação é de grande importância, pois possibilita ao bebê um encontro com a mãe e uma comunicação com ela. Aí se aprimora a troca de carícias e afeto; sem esta experiência, os dois permanecem estranhos um ao outro. Winnicott (2000) ressalta essa importância não apenas para o desenvolvimento do bebê, mas também para a mãe, pois, segundo o autor, o brincar permite que a própria mãe “esteja preparada para agir de forma correta” (p.243), ou seja, compreendendo as necessidades de seu filho.


Seguindo a linha da vida: as escolhas.

A relação inicial afetiva com o alimento, uma vez aprendida, será levada por toda a vida do sujeito. Entretanto, essa relação será todo o tempo re-criada de acordo com a pessoa e com o seu meio.

A bióloga Suzana Herculano-Houzel (2003) explica que também na adolescência, por exemplo, a alimentação, basicamente gordurosa, ainda está muito ligada à necessidade do organismo de captação de gordura para o cérebro, quando fala da infância que: “com o cérebro em franca produção de capas gordurosas para suas fibras nervosas, não é de se espantar que elas gostem tanto de frituras e manteiga em abundância” (p. 198).

Fazer parte de um grupo, identificar-se com alguém, comer o que está na moda, é essencial para o adolescente que está se diferenciando-se de seus pais e precisa buscar nos amigos e nos grupos novos exemplos de comportamento e de ideias. Com isso, acreditamos que a alimentação desse período é mais do que apenas nutrir-se, é também ter a sensação de pertencimento e de aceitação desse novo grupo. Como afirmado por Renssen e Villela (2007): “O adolescente irá buscar maior independência e autonomia, arriscando-se em relacionamentos fora da família. (p. 25)”.


Família e alimentação.

As famílias também têm grande importância na manutenção dessa relação emocional com a comida, pois, na construção dos ritos familiares, por exemplo, é passada a importância da reunião para almoço de domingos. Os ritos familiares têm um peso muito grande na constituição do sujeito, eles constituem inclusive a forma e o ritmo das refeições, influenciando diretamente até mesmo no paladar e no gosto de cada sujeito.

Na família, costumamos aprender os valores carregados por toda a vida, em relação à alimentação; é nela também que, ao estarmos desenvolvendo nossa própria personalidade, temos a possibilidade de conhecer e reconhecer outras pessoas e outros modos de viver iguais ou até diferentes dos nossos. É devido a essa percepção que o sujeito consegue diferenciar-se, como afirma a psicóloga familiar Marilene Krom (2001):

A família nos fornece o sentido de pertencimento e diferenciação. Portanto, é nesse bojo de relacionamentos e de conteúdos que perpassam as gerações, é respirando esse ar e dançando ao fluxo dessas emoções, que vivemos os processos psicológicos apontados pela psicologia do desenvolvimento, tão importante para a construção do nosso self. (p. 16).

O alimento e a forma de se alimentar são também uma das tradições carregadas de sentidos e emoções que são passadas pelas famílias ao repetir esses ensinamentos, a pessoa não apenas relembra a família, como também tem uma ideia de pertencimento e de continuidade.

A ideia de valores transmitidos intergeracionalmente é abordada por Krom (2001). Ela explica que:

Torna-se evidente que esse sentido que perpassa as gerações é transmitido intergeracionalmente e permeia todas as estruturas relacionais na família. Vai dando origem aos significados atribuídos às experiências e determinam as hierarquias de valores, influenciando a maneira como a família vê o mundo e o sentido que as pessoas atribuem as suas vidas. (p. 24).


Alimento e o prazer.

O ato de comer torna-se não apenas uma forma de sobrevivência, mas também uma forma de prazer. O antropólogo Lévi-Strauss (In: Romanelli, 2006) compara o alimento ao sexo. Ambos são essenciais à vida humana e, nos dois, há uma escolha ligada ao prazer e não apenas à finalidade de nutrir-se ou de procriar-se.

O “comer” envolve o “estar junto” e o “trocar” com o outro, no Brasil, bem como em outros países, é muito comum amigos e familiares serem convidados para confraternizações, sempre em torno da mesa, envolvendo comida.

De acordo com Leonardo (2006), na Espanha, é comum grupos de amigos se encontrarem na praça e dividirem sementes de girassol; no Paraguai, amigos se reúnem para tomarem chá; na Itália, as refeições podem durar até três horas; e na cultura Árabe, as mulheres passam muito tempo preparando a comida para o momento da confraternização.


Alimento sagrado.

A valorização da comida e o alimentar-se não são apenas atos familiares e sociais, mas também religiosos. Em várias religiões, como no catolicismo, o alimento tem uma conotação sagrada. Além de seus valores nutricionais, o alimento está relacionado a milagres e até mesmo aos rituais, onde o pão e o vinho, por exemplo, segundo a doutrina católica, são o próprio corpo e sangue de Jesus Cristo, aproximando o sacerdote do divino.

Não é apenas o sacerdote que tem essa possibilidade. O homem também se aproxima de Deus, sendo abençoado e purificado, através da comida consagrada no altar, ao receber a hóstia, o corpo e sangue de Cristo.

Na literatura acerca da religião Judaica, também podemos perceber a existência da relação com a comida, havendo alimentos específicos com significados sagrados que devem ser consumidos nas comemorações religiosas, a fim de aproximar o homem do divino.

Os alimentos simbólicos, principalmente na religião judaica, estão relacionados à história de perseguição e de luta pela vida. Dessa forma, comer alimentos muitas vezes energéticos, assim como ficar um determinado período sem consumir nada, faz parte da religião e atribui ao sujeito um status de abençoado e de merecedor de liberdade e de realizações pessoais.

Podemos perceber, então, que existem muitos outros fatores que estão ligados à alimentação, além da necessidade biológica do organismo. A psicologia tem se interessado mais pelo assunto devido a essa percepção, acreditando que há uma relação emocional com o alimento e, impulsionados pelo crescente número de pessoas com disfunções e transtornos alimentares que chegam aos consultórios.

Acreditando que há uma relação entre o comportamento e as escolhas alimentares, e a vivência emocional, mais adiante, faremos uma leitura psicológica desse processo diário e abordaremos um pouco mais essas disfunções e as escolhas emocionais alimentares.

Antes, contudo, o capítulo seguinte aborda de forma breve, o funcionamento orgânico do corpo humano durante a alimentação.

O alimento no corpo: fisiologia alimentar.

“A gente não quer só comida,
a gente quer comida, diversão e arte. (...)
E você tem fome de quê?
E você tem sede de quê?”
(Titãs)

Acreditamos ser curioso o fato de sermos todos iguais em nossa constituição orgânica básica, tendo as mesmas papilas gustativas, distribuídas da mesma forma e com o mesmo funcionamento e, ainda assim, termos paladares e hábitos alimentares tão diferentes.

Neste capítulo, faremos, então, uma breve descrição do funcionamento orgânico do corpo humano em relação ao alimento, sobre como o alimento interage desde as papilas gustativas até o cérebro, sobre as percepções gustativas e, até mesmo, sobre como a carga genética pode influenciar ou não na alimentação.

Nosso organismo é muito complexo e cheio de particularidades. Isso se faz necessário para nossa sobrevivência. Com relação ao alimento, muitas funções são essenciais, pois ao mesmo tempo em que o ato de comer precisa ser satisfatório para termos energia, temos de ter mecanismos que não nos permitam comer sem parar e nem mesmo comer coisas estragadas que possam ser prejudiciais.

O cérebro do homem tem uma forma de funcionamento, de acordo com a bióloga Suzana Herculano-Houzel (2003), em que um sistema processa sabores a partir de sinais transmitidos pela boca, nariz e olhos e outro atribui uma valência positiva ou negativa de acordo com a quantidade de cada alimento que já tenha sido consumida, mantendo com isso a homeostase do organismo.

O cérebro identifica exatamente qual o alimento consumido e reduz progressivamente a satisfação com a ingestão desse alimento, de forma que depois de certa quantidade, que varia de pessoa para pessoa, algo que estava delicioso no início, provavelmente após muita ingestão se tornará enjoativo. É por esse motivo que, muitas vezes, não aguentamos mais comer nada do almoço, mas ainda há espaço para uma sobremesa.

Numa pesquisa feita com chocolate, Herculano-Houzel (2003) explica que algumas regiões do cérebro são ativadas somente enquanto há motivação para consumir o alimento, que inclui a região do córtex cerebral, o córtex orbitofrontal caudomedial (localizado no centro da testa e sob os olhos) e a ínsula.

O sabor do alimento é essencial e influencia diretamente na escolha do que será consumido, mas em nada influenciará a sensação de saciedade, essa depende dos sinais enviados ao cérebro citados acima. Herculano-Houzel (2003) acredita que, em experimentos feito com ratos, se for colocado um dreno nos animais de forma que tudo consumido fosse diretamente para fora do organismo, sem passar pelo estômago, intestino etc., o rato continuaria comendo sem parar.

Dessa forma, podemos concluir que o prazer de comer está diretamente ligado à ausência dos sinais de saciedade e que está localizado na boca apenas e não relacionado ao preenchimento do estômago. O dito popular de que “com fome tudo fica mais gostoso” começa então a fazer algum sentido, pois sem fome teremos menos prazer com o mesmo alimento.

Com isso esclarecido, levantamos uma nova dúvida: mas como podemos sentir tanto prazer com alimentos diversificados se, segundo os cientistas, sentimos apenas cinco gostos nos alimentos?

Herculano-Houzel (2003) mostra que:

Os primeiros neurônios no córtex cerebral que recebem os sinais do paladar, situados na ínsula, processam-nos única e exclusivamente quanto aos gostos fundamentais: quanto mais sal for detectado pelos receptores na língua, mais forte será a resposta dos neurônios correspondentes na ínsula que recebem o sinal (p. 152).

O questionamento sobre quantos cheiros e paladares somos capazes de sentir foi iniciado por Aristóteles que, segundo Herculano-Houzel (2006), foi “quem inaugurou uma era de mais de dois mil anos de confusão entre gostos e cheiros” (p. 150).

Pesquisas recentes citadas por Herculano-Houzel (2003) definem o olfato como sendo o sentido com mais sensações do que qualquer outro. O paladar, no entanto está restrito a cinco paladares perceptíveis pelo nosso organismo.

Até pouco tempo atrás, eram quatro os gostos básicos que éramos capazes de perceber, sendo eles: o doce, o amargo, o azedo, o salgado. Sendo, segundo a professora Rosana Cambraia (2004), os sinais para o doce e o amargo, geralmente mais complexos quimicamente do que para o salgado e o azedo.

Recentemente, segundo Herculano-Houzel (2003), cientistas descobriram e provaram que somos capazes de identificar pelo menos mais um sabor, que é o glutamato monossódico, em outras línguas chamado de “umami”.

O glutamato é o mesmo do Ajno-moto e é encontrado em proteínas, principalmente em miolos, ou seja, hoje em dia está presente em quase todos os alimentos. Ele é o principal transmissor do cérebro realizando a comunicação entre os neurônios. Seus receptores são extremamente sensíveis e não estão localizados na parte superior da língua com os demais, e sim na parte de dentro.

Essas cinco categorias são definidas como qualidades básicas da percepção sensória do paladar, pois depende apenas desse sentido, não envolvendo os demais. Descobrimos, então, que é num segundo momento do processo orgânico da alimentação, quando podemos diferenciar qual o alimento estamos consumindo, podendo afirmar que um bolo de chocolate é completamente diferente de uma gelatina, mesmo os dois sendo classificados primeiramente como doce.

Neste segundo momento, as informações enviadas pela boca passam pelo córtex orbitofrontal e ali se combinam com as informações vindas dos outros sentidos, permitindo a diferenciação e a percepção do que definimos por gosto do alimento. Numa sub-parte dessa área do cérebro é percebida a satisfação do organismo, influenciando o gosto do alimento. A resposta do neurônio será cada vez menor conforme a saciedade seja alcançada, ou conforme o alimento seja percebido pelo cérebro, mesmo que não seja ingerido.

Somente no terceiro momento, quando chega ao hipotálamo, é que os impulsos enviados para o cérebro pelo mesmo alimento ingerido deixa de ser percebido, ou seja, não traz mais prazer. No entanto em teoria, os neurônios iniciariam todo o processo novamente se fosse ingerido um alimento diferente, mas isso tem um limite, pois a sensação de saciedade impede que continuemos a comer ou passaremos mal.

Dessa forma, nosso organismo, através do paladar, nos dá prazer para que continuemos a comer para sobreviver e, ao mesmo tempo, cuida para que tenhamos um limite do quanto deve ser consumido, com a alternativa da sensação de satisfação e de enjôo de um mesmo alimento. Porém, tudo isso é reversível, pois, caso contrário, comeria algum alimento uma única vez, após o término da satisfação do alimento, nossos neurônios estarão aptos a saborear novamente o alimento que mais gostamos e, por isso, comemos sempre.

Ainda falta entender por que certos alimentos agradam mais do que outros, como escolhemos nossa comida preferida e ela é diferente da outras pessoas? Essa pergunta acreditamos que está além de uma parte orgânica, como discutiremos adiante. No entanto, fomos buscar contribuições do pensamento científico para esses fenômenos e o que pudemos descobrir, é que, segundo Herculano-Houzel (2003), existe uma particularidade no DNA de cada pessoa que está diretamente ligada à sensibilidade, diferente, pelo menos, da percepção do açúcar. Essa parte do cromossomo diferente em cada pessoa faz com que cada uma aprecie mais ou menos o doce, ou mesmo que tenha a necessidade de consumir uma maior quantidade de ambos antes de obter a mesma satisfação.

A parte mais interessante, entretanto, é que, de acordo com Herculano-Houzel (2003), não existem substâncias amargas ou doces “por natureza”, o que entendemos como tal nada mais é do uma leitura que o cérebro faz desses alimentos e esta leitura está ligada à aprendizagem e a associação que cada um faz com o alimento devido a suas experiências de reação à substância e assim a classificando.

Reforçando a ideia de que a alimentação está diretamente ligada à aprendizagem, buscamos Cambraia (2004), quando explica que:

O hipocampo, além de exercer funções essenciais nos processos de aprendizagem e memória, também participa do controle da alimentação. Possui múltiplas funções na motivação para consumo de alimentos, e pesquisadores começam a enfatizar o papel dos mecanismos de aprendizagem e memória no controle do comportamento alimentar. É reconhecido que o controle da ingestão de alimento depende da habilidade dos animais em codificar e representar na memória uma variedade de informações sobre suas experiências com os alimentos. (p.3).

A leitura diferenciada do cérebro e a relação com a comida diretamente influenciada pela família e pelo social, como abordamos no primeiro capítulo, leva-nos ao nosso questionamento principal sobre a relação emocional com a comida. O ato de alimentar-se é necessário para todo o ser humano, o que muda é a forma e a escolha do alimento, que acreditamos ser, em grande parte, emocional, uma vez que está relacionada, de alguma forma, a “reforços positivos” que tivemos em nossa vida.

Perls (1947) reforça essa ideia ao afirmar que:

As deficiências no organismo humano não são exclusivamente de natureza biológica. A civilização, em particular, criou no homem uma série de necessidades adicionais – algumas imaginárias e outras reais, de importância secundária. (p.71).

Herculano-Houzel (2003) também levanta essa questão quando explica que:

Como se vê, as regiões do cérebro que processam sinais relativos à comida andam de mãos dadas com outras que atribuem valores emocionais, bons ou ruins, a tudo o que se faz. Há quem proponha que essas áreas do cérebro evoluíram em paralelo com o propósito comum de evitar perigos e garantir a sobrevivência, no caso, evitando toxinas e incentivando a incorporação de nutrientes (HERCULANO-HOUZEL, 2003. p. 211-212).


A relação com a água, por exemplo, ainda não se sabe se existem receptores na língua para a água ou se apenas o organismo reconhece a falta do sal na boca, já que a saliva é salgada. O que sabemos é que o organismo necessita de água para sua manutenção e a forma de ele nos avisar a necessidade de ingestão dela é o sinal de sede.

Esse sinal é enviado de acordo com Herculano-Houzel (2003), quando a concentração sanguínea se eleva. De acordo com a autora, existe um “hidróstato” nos ventrículos cerebrais que percebe essa alteração e tolera até 2% de aumento na concentração sanguínea. A sensação de saciedade, no entanto, depende de sensores espalhados pela boca, esôfago, e nas paredes do estômago, que indicam ao hipotálamo o volume de água ingerida, mas a percepção da saciedade é responsabilidade do córtex cingulado. Devido a esse funcionamento é que apenas colocar água na boca não aplaca a sede, apesar de amenizar um pouco a sensação.

No decorrer da evolução do homem, passamos a reconhecer os alimentos e, consequentemente, soubemos identificar o que falta ao organismo, sentindo “vontade de comer” alguma comida, com determinada substância. No entanto, essa, mais uma vez, é uma escolha, pois cada substância é encontrada em uma enorme quantidade de alimentos.

Isso ocorre também com a bebida, e é curioso pensar, por exemplo, na bebida alcoólica, pois se a sede surge devido a maior concentração sanguínea, e se o álcool reage com a água, transformando-a, a sede tornar-se maior. Como explicar a pessoa tomar um drink com álcool para matar a sede?

Podemos perceber a diferença da escolha emocional nos alimentos em pequenos detalhes, pois ainda falando do álcool, de acordo com os apontamentos de Herculano-Houzel (2003), ele não é uma substância “pedida” pelo organismo, mas as pessoas não só o consomem como, muitas vezes, passam a ficar dependentes dele, passando a “ter a necessidade” de consumi-lo.

De que maneira fazemos escolhas é um grande estudo que deve ser realizado pela psicologia, uma vez que acreditamos que algo se passa entre a genética, a cultura e as vivências emocionais. No capítulo seguinte, transitaremos por esse campo, ao trazer algumas contribuições da psicologia sobre a alimentação.


Você é o que você come ou como você come? Contribuições da Psicologia.

“Cada corpo reflete uma pessoa única, com um estilo ímpar de vida.”
(Dychtwald, K.)


Para entendermos mais um pouco a relação estabelecida pelo sujeito com a alimentação, traremos a seguir um recorte de alguns olhares da psicologia, algumas teorias psicológicas que buscam, de alguma forma, dar conta desse fenômeno. Não pretendemos esgotar o tema e sim apresentar algumas teorias que nos chamaram a atenção e nos levaram a pensar sobre a problemática que envolve o sujeito, sua subjetividade e a alimentação.


Uma leitura psicanalítica

Iniciaremos apontando o que a psicanálise tem a dizer sobre a alimentação, já que ela é a abordagem com maior número de publicações literárias e de maior diversidade de temas no âmbito psicológico.

Ao começarmos pela psicanálise, e, obviamente, em se tratando do seu fundador, Freud, a relação com a alimentação estará ligada à fase oral. Freud (1905), define a Fase Oral como período que dura de 0 a 2 anos, período em que a zona de erotização é a boca e em que o prazer ainda está ligado à ingestão de alimentos e à excitação da mucosa dos lábios e da cavidade bucal.

Para ele, na fase oral existe uma necessidade intensa de gratificação e satisfação. Assim, desde o nascimento, tais necessidades estão concentradas, predominantemente, em volta dos lábios, na língua e, um pouco mais tarde, nos dentes.

Para Fadigman e Frager (1986) a pulsão primária do bebê não é social ou interpessoal, é apenas receber alimento para atenuar as tensões de fome e sede. Enquanto é alimentada, a criança é também confortada, aninhada, acalentada e acariciada. Deste modo, a criança, num primeiro momento, associa o prazer à redução da tensão no processo da alimentação.

Com base nesse pensamento, a boca seria a primeira área do corpo que o bebê pode controlar. E, para Freud, nessa fase, a maior parte da energia libidinal disponível é direcionada ou focalizada nesta área. De acordo com o crescimento da criança, outras áreas do corpo desenvolvem-se e tornam-se importantes regiões de gratificação.

Entretanto, ressaltam que, para Freud, alguma energia é permanentemente fixada ou catexizada nos meios de gratificação oral. Em alguns adultos, existem muitos hábitos orais bem desenvolvidos e um interesse contínuo em manter prazeres orais. Comer chupar, morder, lamber ou beijar com estalo são expressões físicas destes interesses.

Pessoas que mordicam constantemente, fumantes e os que costumam comer demais, podem ser pessoas parcialmente fixadas na fase oral, pessoas cuja maturação psicológica pode não ter se completado. (FADIGMAN e FRAGER, 1986.)

Esses autores salientam que a fase oral tardia, depois do aparecimento dos dentes, inclui a gratificação dos instintos agressivos, como morder o seio, causando dor à mãe e levando-a à inibição do ato de amamentar. Essa agressividade do ato de morder somada à privação do seio, pode, mais tarde, na fase adulta, desenvolver problemas ligados a essa fase, como por exemplo, o sarcasmo, o arrancar o alimento de alguém, a fofoca e alguns outros.

Para eles, a transformação dos interesses em prazeres orais não foge à normalidade, porém, o que a torna patológica seria uma sistematização da gratificação nessa área, isto é, se uma pessoa for excessivamente dependente de hábitos orais para aliviar a ansiedade.

Se a gratificação sistemática ligada à oralidade pode ser apresentada como uma patologia, o que pensar da compulsão alimentar, e dos parâmetros de saciedade e de satisfação? Acreditamos que tais temas requerem um estudo mais detalhado e cuidadoso, pois esses comportamentos alimentares estão ligados aos problemas digestivos, obesidade e distúrbios alimentares.

Não mais a partir de um entendimento intitulado fase oral, mas ainda em se tratando da boca como um canal de ligação interna com o mundo externo, buscamos a teoria de Reich, quando fala das couraças, sendo a boca descrita como parte das sete couraças musculares.

Reich (1927) acreditava que a energia que circula dentro do corpo humano é a mesma existente no cosmos, à qual chamou de Energia Orgônica. Com o estudo dessa energia, ele desenvolveu a técnica de trabalho denominada orgonoterapia, que visa integrar em um único trabalho as questões psicológicas e corporais e a dinâmica energética do paciente.

Desse modo, a Energia Orgônica flui naturalmente por todo o corpo, de cima a baixo, paralela à espinha. Os anéis da couraça formam-se em ângulo reto com esse fluxo e operam para rompê-lo. A couraça serve para restringir tanto o livre fluxo de energia como a livre expressão de emoções do indivíduo. Para ele, o que começa inicialmente como defesa contra sentimentos de tensão e ansiedade excessiva torna-se, mais tarde, uma camisa-de-força física e emocional.

Segundo Reich, a boca é o sistema equilibrador de todo funcionamento energético do corpo, possibilitando o segundo ato vital do ser humano que é a sucção. Na fase oral, o contato com o seio materno serve como matriz emocional que vai se refletir em toda a vida do indivíduo. Já no adulto, a boca tem função nutritiva, expressiva e de vocalização. Couraças, neste segmento, podem se expressar pela contração e tensão excessiva dos músculos mastigatórios como bruxismo noturno (ranger os dentes dormindo) e distúrbios da ATM (articulação têmporo-mandibular).

Acreditamos fazer todo sentido a relação mastigatória compulsiva no ato de comer, ou na privação do próprio ato às couraças descritas por Reich. Se o sujeito retém energia na boca, descrita por Reich como sistema equilibrador, a rigidez no processo da alimentação pode ocorrer pela falta de equilíbrio dessa energia no organismo. Seria pretensioso demais associarmos os problemas alimentares à falta de fluidez dessa energia?

Reich (1975) aponta outro ponto importantíssimo que, visto superficialmente, não estaria ligado à alimentação, mas afirma ser imprescindível para a digestão e obtenção de energia. Esse ponto refere-se à respiração.

Para ele, uma simples observação diria que, biologicamente falando, a respiração teria função de introduzir oxigênio dentro do organismo e de remover o dióxido de carbono. O oxigênio do ar introduzido realiza a combustão dos alimentos digeridos. E sabendo que a combustão ocorre na fusão das substâncias com o oxigênio gerando energia, na falta do oxigênio não haverá combustão e, portanto, não há produção de energia.

No organismo, a energia é produzida por meio da combustão dos alimentos. Dessa forma, são gerados o calor e a energia cinética. A bioeletricidade também é produzida nesse processo de combustão. Reich (1975) explica que “na respiração reduzida, absorve-se menos oxigênio; de fato, apenas o suficiente para a preservação da vida” (p. 262).

Mas, de acordo com este apontamento de Reich (1975), podemos parar para pensar sobre a nossa própria respiração. Como é que respiramos normalmente? Respiramos bem nas refeições? De acordo como o autor, a respiração e a alimentação estão amplamente ligadas no que se refere ao conjunto do funcionamento do organismo.

Reich (1975) também descreve a inibição da respiração como sendo um dos primeiros atos na supressão das sensações de prazer no abdômen e também na redução da angústia abdominal. Porém, apesar de importante e instigante, não é a nossa proposta deste trabalho discutir a função da respiração e sim somente a relação que ela estabelece com a alimentação.

Vista biologicamente, a inibição da respiração nos neuróticos tem a função de reduzir a produção de energia no organismo e de reduzir assim a produção de angústia. (REICH 1975, p.262).

Como vemos, é negligente e ingênuo pensarmos que o ato da alimentação está ligado puramente ao fato de que o organismo humano necessita de nutrir-se e de que cada refeição desempenhará somente esse papel, na medida em que temos algumas teorias e releituras que chamam a atenção para o processo de construção da própria personalidade, baseando-se na complexidade do alimentar-se, do ato da nutrição à construção subjetiva que cada sujeito constrói com sua alimentação.

As contribuições da Gestalt-terapia.

Neste capítulo, propomos uma leitura, sob a ótica da Gestat-terapia, acerca da alimentação, buscando apresentar de que forma esta abordagem vem se aproximando deste tema e, também, trazer uma correlação com alguns conceitos que compõe a base teórica dessa linha.

O material encontrado, curiosamente, é pequeno, aparece em revistas, congressos e encontros da abordagem, no entanto, em sua maioria, trata do tema a partir de discussões sobre transtornos alimentares, como: bulimia, anorexia e a obesidade.

É interessante observar como o foco na patologia impede, algumas vezes, de se ter um olhar anterior a ele, ou melhor, um olhar mais geral sobre o tema. Um olhar menos sujeito a influências dos rótulos pré-estabelecidos, menos contaminado pelo sintoma e pela consequência dele.

A ênfase no sintoma pode trazer o risco de se ter um recorte restrito e formatado das questões advindas das vivências emocionais,

Num pensamento gestáltico, acredita-se que a pessoa é mais do que números definidos por uma normatização. Ela é um sujeito singular, dotado de emoções, e percepções bem particularidades, permitindo-lhe ligações e vivências, as mais complexas e variadas.

Vale a pena ressaltar que não se trata de levantar bandeira contra as formatações e classificações patológicas entre outras, e sim de enfatizar a importância de um olhar para a questão como um todo, e particularmente no caso da proposta deste trabalho, sair da questão dos transtornos alimentares para a compreensão do fenômeno da alimentação como um todo.

Ao se pensar na relação estabelecida pelo homem com a alimentação dentro da Gestalt, automaticamente, nos remetemos ao gestalt-terapeuta, Frederick Perls (1947), fundador da abordagem e que, logo no início de seus estudos, fala abundantemente sobre o tema, em seu livro “Ego, fome e agressão”.

Perls em 1947, insatisfeito com a atenção exagerada da psicanálise em torno do inconsciente, dos instintos sexuais e da função da repressão, inicia os primórdios da Gestalt-terapia, onde ele propõe novos elementos da personalidade humana como o instinto de fome, a agressão biológica e a necessidade da gratificação. Este livro veio ser a principal base teórica acerca do tema encontrado na Gestalt-terapia, neste trabalho.

É importante ressaltar que, inicialmente o objetivo de Perls era o de dar contribuições à psicanálise da época, com seus questionamentos com suas considerações. Porém, mesmo numa atitude revisionista em relação à psicanálise, o sentimento ambíguo de Perls, admiração e ressentimento, faziam com que ele se mantivesse incerto na perspectiva psicanalítica.

Ego, fome e agressão, foi um livro escrito antes de Perls abandonar completamente a psicanálise, mas o seu conteúdo já se tratava de um divisor de águas. Esse livro foi escrito na África do Sul, quando ele ainda era didata do Instituto Sul-Africano de Psicanálise por ele fundado em 1935.

O contexto do livro se tratava nos anos 40 sua primeira publicação foi em Durban 1942 na África do Sul no período da Segunda Guerra Mundial, quando Perls foge dos horrores impostos aos judeus, como ele. Curiosamente a obra nasce do inglês Ego, hunger and aggression e não do alemão, sua língua materna. Foi editado em 1947 em Londres no pós-guerra e onde havia um fórum privilegiado para o pensamento psicanalítico.

Ego, Fome e Agressão está dividido em três partes. Na primeira parte, “Holismo e Psicanálise”, apresentado em 13 capítulos, Perls critica a psicanálise e assume a posição de que ela apresenta algumas incompletudes e defeitos. Nesta parte, Perls discute pontos de ligação e de diferenciação entre a psicanálise e a futura Gestalt-terapia.

Na segunda parte, “Metabolismo Mental”, também em 13 capítulos, Fritz Perls ensaia uma teoria da personalidade com base na psicanálise, na psicologia da Gestalt, na teoria organísmica de Kurt Goldstein, na visão holística de Smuts entre outras influências. Nessa parte, ele relaciona a assimilação mental com a assimilação alimentar e insere uma análise, do ponto de vista psicopatológico, do caráter paranóide.

Na terceira e última parte, “Terapia de concentração”, termo usado na denominação original da Gestalt-terapia. Está subdivido em 16 capítulos, nos quais Perls propõe a técnica, baseada na substituição do método psicanalítico de associações livres por um método no qual acredita ser um antídoto para a evitação, o método da concentração.

Perls (1947) aborda a alimentação como algo constitutivo e estruturante do caráter e da personalidade humana. O alimentar-se é a primeira forma de contato com o mundo e o comportamento mandibular é uma ação que influenciará diretamente a personalidade e a forma como o indivíduo se relacionará com o mundo. Assim, para o autor, quanto mais a atividade de morder for inibida pelo bebê, menor será as sua capacidade de enfrentar situações estranhas a ela.

Um conceito importante utilizado pela Gestalt-terapia, norteia todo o entendimento dos conceitos abordados no decorrer desse capítulo, é a leitura de um entendimento para além das partes, denominado de Holismo.

A visão holística da Gestalt baseia-se na percepção do sujeito como um todo em interação e não apenas como soma das partes; ela nos propicia uma reflexão bem ampla e convergente, na qual podemos não só perceber o fenômeno como também dialogar com outras vertentes do conhecimento. “(...) a Gestalt-terapia considera a existência do ser humano de uma maneira completa, não apenas sua doença, sua mente ou seu discurso”. (RODRIGUES, 2004, p. 48)

Segundo Perls, o holismo é uma atitude pela qual nos damos conta de que “o mundo consiste per se não apenas de átomos, mas de estruturas que possuem um sentido diferente do que o da mera soma das partes.” (PERLS, 1969, p. 28 in D’ACRI, LIMA, ORGLER, 2007, p. 136)

A Gestalt-terapia acredita no sistema como um todo, e na capacidade do organismo de superação e autoregulação, quando, de acordo com Perls (1947), existe uma “restauração do equilíbrio organísmico, uma resposta a qualquer reação, qualquer réplica a uma ação” (p.167).

A autoregulação para Gestalt-terapia é a forma saudável que o organismo encontra para buscar a volta a seu estado de equilíbrio, onde uma necessidade tenta ser suprida ou caso não seja possível, o sujeito como um todo irá buscar criativamente a adaptação a situação.

Os organismos vivem em estado permanentemente de tensão entre ordem e desordem, entre equilíbrio e desequilíbrio. Segundo Goldstein (2000), até a busca do equilíbrio o que nos move para encontrar maior desenvolvimento e autoregulação. (D’ACRI, LIMA, ORGLER, 2007, p. 31).

Na busca do sistema de lidar com as necessidades que surgem, que nem sempre podem ser facilmente solucionadas, alguns comportamentos foram observados e definidos por Perls (1947) e amplamente estudados posteriormente, por outros autores. Esses comportamentos podem ser funcionais, ou disfuncionais, variando a intensidade com que são utilizados pelo sistema.

Uma das saídas ao sistema, então, é a projeção. Perls (1947) fala de projeção, citando o bebê e explicando que nesse estágio ocorre uma pré-projeção (já que projeção depende de uma consciência do mundo interno e externo, que o bebê ainda não tem).

Quanto mais a habilidade de machucar é inibida e projetada, mais a criança desenvolverá o medo de ser machucada; e esse medo de retaliação, por sua vez, produzirá uma relutância ainda maior para inflingir dor. Nesses casos, o uso insuficiente dos dentes incisivos é encontrado, junto com uma incapacidade de ter controle sobre a vida, de enfrentar uma tarefa. (PERLS, 1947. p.167)

Para falarmos sobre Projeção precisaremos apresentar também o termo introjeção. Ginger (1995) explica que:

Enquanto a introjeção é a tendência a tornar o responsável pelo que, de fato, cabe ao meio, a projeção é a tendência a atribuir ao meio a responsabilidade por aquilo que tem origem no self”; em outros termos, enquanto na introjeção o self é invadido pelo mundo exterior, na projeção é, pelo contrário, o self que “transborda” e invade o mundo exterior. (GINGER, 1995, p.135)

Polster (2001), ainda, fala que “a pessoa que usa a introjeção entrega seu senso de identidade, enquanto o indivíduo que usa a projeção o distribui aos pedacinhos”. (p. 93)

A capacidade de projetar é uma reação natural humana. Porém, a pessoa que faz um contínuo uso deste artifício está de certa forma, com dificuldades em aceitar seus sentimentos e suas ações. Deste modo, ela não reconhece seus próprios limites e dificuldades, mas sim os liga a outra pessoa, e nunca a si mesmo.
Outra saída para a agressão inibida é a retroflexão, uma resposta a qualquer ação. A pessoa que retroflete, bloqueia seus impulsos para o mundo, jogando para dentro de si seus sentimentos, não entra em contato com nenhum deles. Essas pessoas tendem a ficar estagnadas e supostamente fadadas a um “não sentir nada”.

De acordo com Perls (1947), o movimento mastigatório estaria constituindo uma relação saudável entre o indivíduo e a sua agressão, transformando o ato de mastigar em um mecanismo de elaboração interna, mesmo que não consciente. Desse modo, comer é lidar com sua agressividade? A forma como comemos e o que comemos está desempenhando um processo terapêutico, já que elabora a nossa agressividade ou é mais um viés para estudarmos?

Ginger (1995), ao falar da retroflexão, explica que:

“Ela consiste em voltar contra si mesmo a energia mobilizada, fazer a si aquilo que gostaria de fazer aos outros (exemplo, mordo os lábios ou cerro os dentes, para não agredir) ou ainda fazer a si aquilo que gostaria que os outros fizessem (exemplos: a masturbação ou ainda a lisonja” (p.137)

Seguindo a ideia da importância do estudo acerca da alimentação, Perls (1947) atribui três estágios à fome; os diferentes estágios no desenvolvimento do instinto de fome podem ser classificados como estágios pré-natal (antes do nascimento), pré-dental (amamentação), incisivo (morder) e molar (morder e mastigar). Esses estágios estariam constituindo um sistema complexo envolvendo a alimentação como nutrição e como relação com o mundo.

Se a tensão da fome se torna elevada, o organismo reúne as forças a tal disposição. O aspecto emocional deste estado é primeiro experienciado como irritação indiferenciada, depois como raiva, e finalmente como ira. A ira não é idêntica à agressão, na enervação do sistema motor, como o meio de conquistar o objeto necessitado. (PERLS, 1947. p. 178)

Ainda se tratando da relação do indivíduo com o exterior, Perls exemplifica citando a impaciência como um comportamento produzido pela má relação feita com a alimentação. A impaciência estaria combinada com a gula e a incapacidade para obter satisfação. Muitos adultos se relacionam com o alimento sólido “como se” ele fosse líquido, a ser engolido, em goles. Tais pessoas geralmente são caracterizadas pela impaciência. Exigem a satisfação imediata de sua fome - elas não desenvolveram o interesse em destruir o alimento sólido.

Esses comportamentos ocorrem, pois as pessoas agem segundo Lima Filho (2002), num estado pré-reflexivo, onde eles não se dão conta de suas necessidades ou em outras palavras, não estão aware. As pessoas agem simplesmente para se satisfazer, sem tentar identificar qual é na realidade sua necessidade.

Este comportamento, como observamos em experiências práticas de consultório, é extremamente comum, quando uma pessoas projeta na comida suas frustrações ou ansiedades. A pessoa por não identificar exatamente a necessidade do organismo, come tentando voltar ao estado de equilíbrio.

Identificar sua real necessidade organísmica é o que Perls chamará mais tarde de Awareness. Lima Filho (2002), ao fazer uma leitura de Perls, define Awareness como “a capacidade de perceber, ter presente, dar-se conta de algo, interno ou externo, por ser acessível aos sentidos...” (p. 31).

De acordo com Perls (1947), no caso da impaciência, a falta da mastigação do objeto sólido é como uma saída natural biológica da tendência destrutiva; o indivíduo pode sublimar esta tendência, manifestando outras formas e, muitas vezes, com comportamentos nocivos, tais como matar, fazer guerras, crueldade, etc.

Como falado anteriormente, as funções de contato podem ser funcionais ou não. Uma forma de agir nocivamente não com o mundo, mas consigo próprio pode ser por meio da retroflexão, como autotortura e até autodestruição. Polster e Polster (2001) definem a retroflexão como: “uma função hermafrodita na qual o indivíduo volta contra si mesmo aquilo que ele gostaria de fazer com outra pessoa (...)” (p. 96).

Portanto, da mesma forma como essas pessoas não têm paciência para mastigar completamente o alimento real, também não reservam tempo suficiente para “mastigar completamente” o alimento mental.

Vale ressaltar que Perls estava no ano de 1947, quando descreveu sobre a impaciência no ato de comer. Portanto, acreditamos que 60 anos passados são o bastante para pensarmos que o aceleramento de um mundo globalizado e potencialmente industrial é um contexto propício para a alimentação apressada e industrializada e para o aparecimento avassalador dos fast-foods e de lojas de conveniências, que, geralmente, oferecem alimentos gordurosos e pouco nutritivos.

Enfim, para Perls nossa atitude em relação ao alimento tem uma grande influência na inteligência, na habilidade para compreender coisas, para enfrentar tarefas disponíveis.

Assim, alguém que não usa seus dentes arruinará sua habilidade de utilizar suas funções destrutivas em seu próprio benefício. Enfraquecerá seus dentes e contribuirá para sua deterioração, pois que, nos piores casos de subdesenvolvimento dental, as pessoas permanecem, por assim dizer, bebês por toda a vida.

Raramente encontramos alguém que tenha permanecido um bebê completo, não usando os dentes, encontramos muitas pessoas que restringem suas atividades dentárias a alimentos macios, que se liquefazem facilmente, ou alimentos crocantes, que proporcionam a sensação de que os dentes estão sendo usados, mas não exigem nenhum esforço.

Para o autor, apenas aqueles que trituram seu alimento mental tão completamente a ponto de apreender todo o seu valor serão capazes de assimilar e colher o benefício de uma ideia ou de uma situação difícil. Como ele mesmo ressalta, é mais proveitoso e inteligente ler um bom livro seis vezes do que ler seis bons livros ao mesmo tempo. Ou ainda, “temos de estar totalmente ‘aware’ do fato de que estamos comendo” (PERLS, 1947. p. 273).

Para ele, a mastigação se aplica igualmente à crítica: se alguém é sensível, e sua agressão dental projetada, toda crítica é experienciada como um ataque e isso, com frequência, resulta numa incapacidade para suportar até mesmo uma crítica benevolente.

Desta forma, quando a agressão dental está funcionando biologicamente, a crítica não é evitada, sendo até mesmo bem-vinda. Não se pode aprender muito com um elogio negligente, mas a crítica pode conter algo construtivo; dessa forma, convertendo até o ataque mais nocivo em um benefício. Assim, Perls (1947) explica que: “A crítica não deveria ser rejeitada, nem engolida, mas mastigada cuidadosamente e sempre levada em consideração” (p. 191).

Concluindo, Perls afirma que a assimilação adequada do alimento sólido exige a concentração contínua e consciente na destruição, no sabor e na “sensação” do material ingerido permanentemente mutável. Para essa elaboração no ato de comer é preciso estar a todo tempo percebendo-se, entrando em contato com o mundo interior e com o mundo exterior.

Assim, podemos concluir também que quanto mais digerirmos, ou seja, nos tornarmos aware do que realmente acontece conosco interna ou externamente a cada momento, melhor poderemos lidar com as situações e buscar o equilíbrio. Essa proposta é a busca principal de todo cliente em terapia na abordagem gestáltica.


Processo de Pesquisa

Tudo começou com buscas instantâneas e descompromissadas pela Internet, sites como Google, Cadê e Alta Vista. Fomos navegando sem compromisso com tempo nem o assunto tão definido. As buscas, geralmente, não levavam a nada exatamente sobre o tema Alimentação, ou melhor, aparecia muita coisa sobre problemas alimentares como bulimia nervosa, anorexia e outros, o que não atendia nossa expectativa e nem nosso interesse no que se refere a este trabalho. Porém, o mais interessante foi encontrar, muitas vezes, artigos e trabalhos sobre pesquisas com animais.

Por várias vezes encontramos literatura sobre a alimentação de ratos, gado e até de suínos. Bem, foi intrigante e até curioso constatar que a veterinária tem muitas pesquisas sobre alimentação e também vêm produzindo muito conhecimento e divulgando-o em artigos científicos. A mola mestra disso pode ser o investimento do produtor ou cuidador para aumentar a produção de leite ou melhorar a qualidade da carne, visando o produto final, o lucro, mas, de qualquer forma, cabe a esses profissionais o mérito em investigar o comportamento alimentar e o empenho na divulgação e na produção acadêmica.

Ao procurar nos sites, buscamos apresentar a palavra exata, alimentação, e, em outras vezes, somando-a a outras palavras como influência e ou psicológica, na busca da palavra exata como também de qualquer assunto relacionado a ela. Algumas vezes, as buscas foram em inglês e as respostas não eram muito diferentes das em português; chegamos a traduzir alguns artigos, mas nada substancial que pudéssemos usar neste trabalho.

Buscamos também os sites das bibliotecas como os da USP, PUC, UFRJ, UFF, UNIRIO, Fiocruz, e outros referentes à psicologia, dentre eles:
http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/textosfreud.html
http://www.cobra.pages.nom.br/ecp-psicanalise.html
http://www.neurociencias.org.br/Display.php?Area=Noticias&Action=Read&ID=34
http://www.cerebromente.org.br/indexge.htm
http://www.bvs-psi.org.br/
http://www.sobresites.com/psicologia/pesquisa.htm
http://www.holos.com.br/arquivo/artigos/bioenergetica.html
http://www.analisebioenergetica.com/analise_bio_art2.htm
http://www.psiquiatriageral.com.br/psicoterapia/freud4.htm
http://br.geocities.com/webdaleth/reich.html
http://www.sppa.org.br/ver_saiba_mais_sobre.php?id_saiba_mais_sobre=8

Em alguns dos sites, obtivemos artigos que não se referiam somente ao tema, mas alguns convergiam para o assunto. Vale ressaltar que todo o material obtido foi lido e refletido e por critério de delimitação do tema o material foi sendo separado.

O objetivo inicial era fazer a pesquisa bibliográfica sobre alimentação em psicologia e mais especificamente em Gestalt-terapia, mas com a falta de material resolvemos estender a pesquisa e ver o que as outras áreas dizem sobre este tema.

Buscamos ler antropologia, sociologia, nutrição, endocrinologia, neurologia e biologia, leituras que foram de grande valia e que se somaram ao longo da construção deste trabalho, tomando um formato único, um saber construído de partes, formando um todo. Assim como o organismo, que é formado por tantas partes: órgãos, veias, artérias, mas depende da relação íntima e harmônica das partes, como um ritmo numa orquestra.

Fizeram parte da pesquisa, também, conversas informais na tentativa de obter indicação bibliográfica. Conversamos com duas nutricionistas, um endocrinologista e alguns gestalt-terapeutas. A partir das conversas, percebemos a riqueza que foi dialogar de diferentes formas e com diferentes percepções sobre o tema.

Como citamos, durante o trabalho, a falta do material foi um ponto que trouxe muita angústia, e por vezes, desespero; lidar com o vazio e vê-lo como criativo não foi nada fácil. Por esse motivo, buscamos apresentar o tema de uma forma geral e a partir daí começar um projeto de pesquisa específico sobre o tema dentro da psicologia. Um projeto de pesquisa que envolva outros profissionais, um diálogo entre os saberes, entre vivências e percepções.

Ao nos depararmos com a falta de publicações e explorações em torno da temática da alimentação algumas indagações devem ser feitas a fim de suscitar reflexões que venham contribuir na compreensão e incentivar a busca de respostas ou até mesmo o simples fato de pararmos para pensar e discutir a complexidade do fenômeno alimentar.

Por que estamos com tanta dificuldade de encontrar relatos ou considerações do universo alimentar do ponto de vista psicológico, ressalvo a abordagem psicopatológica dos distúrbios alimentares. As considerações mais amplas não são necessárias? O fenômeno alimentar é algo compreendido na sua totalidade a ponto de não ser merecedor do olhar crítico e compreensivo do profissional de psicologia?

Pensamos que o comércio alimentício é um dos mais promissores e bem sucedidos do setor e que desta forma, pode-se constatar que além do fato de que alimentar-se é imprescindível à vida, o setor alimentício nos mostra a importância dada pelo ser humano à comida.

Ao acabarmos de considerar que o ser humano entende a importância da comida e que o comércio aponta para um crescimento neste setor, o que podemos entender do fato de que pouco refletimos ou ao menos registramos sobre as relações humanas com sua alimentação?

Para entendermos melhor a queixa que esta produção faz à falta de material bibliográfico, bastamos nos questionarmos um pouco mais. Por exemplo, o que vemos na mídia em relação ao alimento? Bem, vemos pessoas alegres comendo, pessoas magras, altas, geralmente reunidas em torno de amigos, as comidas apresentadas de forma bem colorida e com aparência de serem bem apetitosas. Comidas que podem ser consumidas enquanto se trabalha, se conversa, quando se assiste a um filme, quando se está com pressa, dentro do carro, os chamados drive thru. Desta forma, o incentivo ao ato de comer nos mostra que existe com certeza um grande marketing, muito bem pago, por de trás de tudo isto. O fato de reconhecermos tudo isto nos mostra o quanto falta a informação sobre outros pontos referentes à alimentação.

Tanto na mídia escrita quanto na televisiva encontramos alguns programas e alguns documentários onde a alimentação foi apresentada do ponto de vista da saúde, da nutrição, do comportamento social e também cultural. Porém, as pontuações pareceram pouco abrangentes, cada área partia de um pré-suposto. Pensamos que, tais programas tratam muito pontualmente cada tema, e que cabe à comunidade científica abordar e aprofundar o tema de forma que receba as contribuições dos diferentes olhares, diferentes visões que o tema esbarra.

Vale a pena refletirmos de forma mais ofensiva sobre os grandes interesses na produção científica, ou melhor, no financiamento destas produções? Se pensarmos que sim, vale pontuar que pode ser mais rendoso o patrocínio de pesquisas dos medicamentos que tratam os transtornos alimentares, do que somente pesquisas que tratam de compreender a relação feita pelo sujeito com sua comida. Essa relação pode não estar envolvendo um produto final, um saber que geraria soluções vendáveis, produtos lucráveis.

Imagine um dia que pudéssemos compreender as relações que fazemos com o nosso alimento e na medida que essa compreensão fosse chegando, e que a nossa relação com a comida fosse por um processo consciente de escolhas e de conscientizações físicas e emocionais. Provavelmente esta solução seria menos lucrativa para os grandes servidores do capital, mas muito funcionalmente saudável para o sujeito, não precisaríamos de nenhum produto para cuidar das patologias, pois estaríamos um passo antes, cuidando para que elas não apareçam.

Não podemos deixar de mencionar que frente à chamada “crise dos alimentos”, pesquisas sobre este tema serão cada vez mais necessárias, posto que a tendência é que haja uma mudança no perfil da alimentação mundial, capazes de gerar impactos nas mais diversas áreas. E, ao levarmos em consideração a influência da alimentação na saúde emocional, entendemos que a psicologia deve acompanhar estas transformações, a fim de compreender seus possíveis impactos e buscar meios de minimizar os danos.

Para tornar esta diretriz mais clara, podemos pensar em termos práticos a partir de um trecho de uma reportagem veiculada na revista Veja intitulada “Crise dos Alimentos”.

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), uma família dedica aproximadamente 15% de sua renda à comida nos países ricos, mas essa proporção pode chegar a 60%, 70% e até 75% do orçamento familiar nos países em desenvolvimento. Um bom exemplo desse delicado quadro são as consequ'ências do aumento do trigo, cujo preço saltou 130% em apenas um ano. Para uma família pobre do Iêmen, isso significa comprometer um quarto de sua renda apenas com a compra de pão. (http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/crise-dos-alimentos/contexto2.html)

Não precisamos ir tão longe, podemos pensar em como esta realidade se reflete no Brasil e as consequências para os integrantes destas famílias que deverão se submeter a viver sob esta estrutura. Quais os impactos que isto poderá gerar nas relações familiares? Que mudanças no estilo de vida das famílias será preciso acontecer para que seja possível suprir as necessidades básicas de alimentação?

Outro trecho da reportagem menciona os prováveis impactos da má alimentação na saúde e na educação.

Gestantes subnutridas correm o risco de que seus filhos apresentem problemas de desenvolvimento ainda no útero. Já a desnutrição, quando ocorre em crianças, se não for tratada até os 2 anos de idade, causa danos irreversíveis, como retardo no crescimento, além de déficit de vitaminas e minerais essenciais para o desenvolvimento humano. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) já alertou para a possibilidade de o aumento dos preços dos alimentos agravar ainda mais essa situação, já que as famílias terão de reduzir seus gastos com comida. Para o Unicef, a atual crise também provoca "um risco grande de que as famílias de países pobres tirem as crianças da escola, porque estas precisarão trabalhar".

Este fato já é uma verdade incontestável com a qual nos deparamos diariamente nas ruas do país e exige um esforço conjunto na busca de saídas possíveis e os psicólogos devem fazer parte da massa que discute estas questões de impactos devastadores para aqueles que mais importam para nossos estudos: os seres humanos.
Ainda neste tema, e mais uma vez pensando nos impactos em nosso país, há que se pensar na tendência a uma mudança significativa no perfil da alimentação da população. Os alimentos básicos da mesa do brasileiro estão entre os que sofreram aumento mais significativo, dentre eles: o pão devido ao aumento do trigo, o arroz, o leite, e os ovos. Dos médicos e nutricionistas estas mudanças já despertam interesse. E dos psicólogos?

Devemos pensar que o que até então seria considerada uma alimentação saudável e equilibrada, talvez não seja mais viável em alguns anos para uma parcela da população. De maneira mais direta, seria importante, por exemplo, acompanhar os possíveis impactos psicológicos destas mudanças.

De maneira objetiva, é sabido que a ingestão insuficiente de calorias ou uma dieta desequilibrada pode diminuir a resistência ao stress. Logo, para a psicologia, pesquisar estas relações entre alimentação e a prevenção ou manifestação de determinados distúrbios, pode ser fundamental um campo de grande importância.

E, considerando a definição de saúde aludida pela Organização Mundial da Saúde a qual afirma que:

“A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social.” (Organização Mundial de Saúde)

É categórica a participação de nossa área de saber junto às ações que visem soluções para esta questão na busca de equilíbrio não apenas físico, mas psicológico.

Considerações Finais

“Não temos corpos, somos corpos, somos nosso corpo. A realidade emocional e a base biológica são a mesma coisa e não podem de modo algum ser separadas ou diferenciadas.”
(Stanley Keleman, 1996)

Ao terminar esse trabalho podemos concluir que o tema alimentação requer muito estudo e pesquisa. E este trabalho, como dito anteriormente, foi um simples ensaio sobre o assunto.

Mesmo sendo um tema tão complexo e vasto, a alimentação é, sem dúvida nenhuma, um assunto importantíssimo que merece um olhar mais cuidadoso e investigativo da psicologia. A alimentação está para o sujeito assim como o ar que ele respira, pois não há quem viva sem comida, mas comer não representa um simples ato de enviar pela boca nutrientes ao corpo.

A necessidade orgânica do ser vivo, neste caso, o indivíduo, transforma o ato da nutrição diária num ritual, que somado às experiências particulares de cada um, faz com que tais indivíduos se relacionem de uma forma bem específica e singular com seu alimento. Em geral, a alimentação está imersa na cultura de cada sujeito, na sociedade: na sua família, com os amigos, com os seus pares, no ambiente de trabalho. Enfim, a alimentação é uma ação diária, acontece muitas vezes no dia e de diferentes formas.

Podemos perceber que, apesar de tão particular de cada indivíduo, a forma de se alimentar e até mesmo a escolha do alimento a ser ingerido, tem muita influência de outros fatores aprendidos durante nossa vida, como tradições, pressão social, valorização social etc., o que nos levou a perceber que, apesar de peculiar, a alimentação está também ligada ao todo, que existem hábitos semelhantes desde grupos familiares ou de amigos até sociais de cada cidade, estado ou país.

A alimentação é um assunto de suma importância para entendermos o ser humano, que vive comendo ou deixando de comer, que metaforiza em seus sonhos a sua relação com a comida. A comida está presente nas reuniões com os amigos, com a família, nas comunhões religiosas; a comida une pessoas e distancia tantas delas, se formos pensar no exemplo da fome ligada à miséria. Enfim, a alimentação traz significados e significações tão particulares que acaba por ser negligente não pensar sobre ela.

Podemos pensar na comida, ou melhor, na alimentação como parâmetro indicador de classe social, do nível de nutrição e desnutrição, problema vivido por tantos em nosso país. Podemos também pensar em alimentação como indicador do grau de desenvolvimento de um país, no qual temos uma disparidade elevadíssima demarcando com tanta distância o que escolhe num restaurante francês ao que namora pela vitrine o prato do outro ou até mesmo aquele que se “satisfaz” com os “menus” do lixão. Nestes casos distintos, por exemplo, acreditamos que a relação feita pelo sujeito com a sua alimentação seja completamente particular e consequentemente diferente.

Bem, é difícil falar sobre esse tema sem nos indignarmos e consequentemente não sermos irônicos em apresentá-lo sob o viés da problemática social do país. Porém, acreditamos que, ao levantar a bandeira de uma pesquisa sobre alimentação, esbarraremos com essas questões sociais outra vez, pois as vozes clamam por justiça social, e tais pesquisas podem fazer com que a psicologia reflita junto à sociedade sobre tais problemas, mas, neste momento, não é nosso objetivo esgotar essa proposta.

Podemos dizer que a psicologia já esteve mais interessada neste assunto do que agora. Não foi à toa que Perls, no seu primeiro livro, ainda antes de construir a gestalt-terapia como é hoje, que escolheu como Ego, Fome e Agressão o nome de seu livro. E também não foi sem razão que passou páginas e páginas descrevendo a fome, a mastigação e também relacionando-as com os aspectos da personalidade humana. Infelizmente, o que podemos perceber é que, depois de tantos anos passados não há, em psicologia, muitos trabalhos publicados sobre a alimentação.

Pesquisas sobre alimentação devem proporcionar a reflexão e a consciência de que os saberes não podem dialogar sozinhos, mas sim entre eles, porque o sujeito é único e a soma de diferentes olhares pode dar uma contribuição maior para a ciência.

Pudemos em nosso trabalho trazer, primariamente, a importância, por exemplo, da contribuição da biologia e da neurociência, pois além de nossas reações emocionais e afetivas relacionadas ao alimento estarem diretamente ligadas ao nosso corpo, aos nossos receptores elétricos etc., essas ciências, assim como a neuropsicologia, nos permitirão entender um pouco mais essas relações de aprendizagem e alimento.

Portanto, faz-se necessário um olhar mais específico dos psicólogos sobre a alimentação, não somente nos problemas relacionados a ela, mas também na alimentação de uma forma mais ampla, observando as relações que cada sujeito estabelece com ela.

Ao final deste trabalho, que visou abranger o tema sobre alimentação em vários âmbitos de influência, propomos, então, uma continuação, uma nova pesquisa ainda mais detalhada e agregada de outros saberes, para que esse tema seja melhor conhecido por nós e por toda a sociedade acadêmica, a fim de nos permitir lidar melhor com os clientes dos nossos consultórios e, até mesmo, poder, finalmente, estabelecer relações emocionais com a alimentação.



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Endereço para correspondência


Vivilaine Maturana


E-mail: vivimaturana@yahoo.com.br

Recebido em: 10/02/2008
Aprovado em: 07/12/2009