ARTIGO

 


O sentimento do terapeuta frente à condição do paciente


The felling front of therapist patient condition


Marlene Batista Ramos

 

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Resumo

O Sentimento do Terapeuta frente à Condição do Paciente – apresenta observações e relatos de sentimentos mobilizados durante o período inicial de estágio em psicologia clínica de orientação analítica em um Serviço de Proteção à Criança. A abordagem de aspectos teóricos relevantes à violência contra crianças e adolescentes, a situação emocional em que se encontram as vítimas e o papel do terapeuta, da instituição ou família, exige a busca permanente do conhecimento e de capacitação para poder suportar os sentimentos despertados por esta condição.

Palavras chaves: Violência; Criança; Transferência; Psicoterapia.

 


Abstract

The sentiment front of Therapist Patient Condition - presents observations and reports of feelings mobilized during the initial period of training in clinical psychology analytic in a Child Protective Services. The approach of theoretical aspects relevant to violence against children and adolescents, the emotional situation in which they are victims and the role of the therapist, the family or institution, requires a permanent search for knowledge and skills to be able to bear the feelings aroused by this condition.

Keywords: Violence; Child; Transfer; Psychotherapy.

 



Quando iniciei o estágio no Serviço de Proteção à Criança a pequena paciente P.V. já estava em atendimento.

Conforme seu prontuário, quando P.V. estava com 1 ano e meio de idade, sua irmã V.V. e seu irmão P.V. estavam sendo abusados sexualmente pelo seu pai biológico S.M. com conhecimento de sua mãe biológica J.V. que tinha uma atitude passiva e não protetiva diante do fato. Há suspeita que P.V. também era vitima de algum tipo de violência sexual. Através de denúncia as crianças foram retiradas da casa dos seus pais e estes perderam o pátrio poder. A partir deste episódio, as crianças foram abrigadas na casa da avó, em casas de passagem, abrigos e, atualmente as meninas estão em um abrigo municipal na região metropolitana e o menino em uma outra instituição, estando, portanto, separados os irmãos. Desde a retirada da casa dos pais até o presente momento já se passaram quase 7 anos, longos anos nos quais foram negados à essas crianças todos os direitos básicos do Estatuto da Criança e do Adolescente – a família falhou, o estado falhou e continua falhando.

A situação atual dessas crianças é gravemente comprometedora; a irmã de P.V., a adolescente V.V. apresenta comportamento infantilizado, sintomas de auto-mutilação e alto comprometimento cognitivo; seu irmão P.V., da mesma forma. A paciente P.V. encontra-se em um momento dramático de seu desenvolvimento emocional e cognitivo, pois enquanto não consegue ter supridas suas necessidades básicas de afeto e segurança, não consegue voltar-se para o aprendizado, para a aquisição do conhecimento, como já ocorreu com seus irmãos. Por outro lado, seus pais biológicos se reorganizaram, constituíram novas famílias e se favorecem com a situação dos filhos abandonados e institucionalizados. A mãe recebe recursos do Estado por conta do mal que permitiu ser infligido aos seus filhos, o pai abusador continua impune. Coube à essas crianças serem penalizadas pela violência que sofreram dentro da família, onde deveriam ser protegidas, amadas e preparadas para se tornarem adultos saudáveis e felizes. Sendo revitimizadas pelo Estado com sua morosidade, burocracia e falta de maior investimento no ser humano, onde as três crianças vitimas de violência doméstica não passam de, apenas, mais três números de processos a serem despachados. Está faltando um olhar crítico quanto à condição do ser humano, da instituição e do papel do Estado, não basta criar um Estatuto, é necessário que se pratique o Estatuto.

A vivência escolhida para este artigo trata-se de um atendimento onde sentimentos muito fortes e significativos afloraram e a importância do conhecimento especializado.

Este atendimento foi repleto de conteúdos carregados de sentimentos muito intensos e assustadores. Pude constatar e sentir o quanto a contratransferência mobiliza nossas reações dentro e fora do setting. O que jamais havia imaginado era que esses sentimentos emergissem com tamanha intensidade. Logo no inicio da sessão P.V. comentou que sua irmã V.V. havia fugido do abrigo, mas que já retornara. No decorrer do atendimento, a medida que as brincadeiras foram acontecendo, fiz uma intervenção inadequada, ameaçadora às suas defesas, desencadeando uma reação violenta em P.V. que passou a ser agressiva comigo e tentando, inclusive me machucar fisicamente. Sem querer eu havia colocado em risco sua integridade emocional, impedindo que pudesse fantasiar para poder elaborar, acionei suas defesas sádicas fazendo com que tentasse, de maneira concreta, fazer com que eu sentisse a dor e o horror que tinha dentro de si. Neste momento pude sentir o quanto estava me tornando perigosa para a paciente, assim como foi sua família, as instituições por onde já passara e onde vive atualmente. A medida em que se fortalecem os nossos laços, se consolida o vínculo, maior a ameaça para suas defesas. Entrar em contato com esses conteúdos que mobilizaram núcleos sádicos e perversos de defesas muito primitivas da paciente, me deixou em pânico, fiquei assustada e com medo. Passado o primeiro momento, fui invadida por sentimento de frustração e impotência, porque as ocorrências foram tão intensas, me pegaram tão desprevenida, tamanha a surpresa que não consegui elaborá-las durante o atendimento para devolvê-las à paciente de modo que a tranqüilizasse e afastasse os temores e terrores evidenciados no decorrer da sessão. Para minha sorte, a atitude compensatória da menina ao pegar alguns brinquedos da sala na hora de ir embora e escondê-los em sua roupa, permitindo, de uma forma sutil, que eu percebesse sua intenção, nos deu a oportunidade de reparação e retomada do vínculo. Mais uma surpresa para mim, a força interior e a capacidade de ego desta criança para continuar acreditando que as coisas podem ser diferentes, que sua vida pode melhorar, de não desistir de lutar e pedir ajuda para isto. Foi uma experiência riquíssima e frustrante ao mesmo tempo. Frustrante porque não consegui retomar o controle e elaborar o conteúdo evidenciado para uma devolução adequada; riquíssima porque pude perceber o quanto é desafiador trabalhar com crianças, a importância de se ter sempre presente a possibilidade do inesperado. No atendimento com crianças, mais do que com adultos, atuam no setting mecanismos muito primitivos tanto do paciente como do terapeuta.

Grotjahn(1983), refere que o psicoterapeuta deve ser um homem de todas as estações. Ele deve ser confiável, deve inspirar confiança e esperança. Para fazê-lo, deve ter confiança e esperança em si mesmo, bem como nas outras pessoas. O terapeuta deve ser uma pessoa que tenha vivenciado ao máximo as adversidades da vida e estar disposta a fazê-lo sempre que for necessário. Independente de sua idade e condição, deve ter a coragem de experimentar a vida em muitos níveis ; ele deve saber como é se estar vivo. Deve reconhecer o medo e a ansiedade, saber o que é estar na condição de superioridade ou de dependência e não deve temer o amor, nem ignorar o ódio.

As vicissitudes da profissão exigem do terapeuta a busca permanente de aprendizado e um constante esforço criativo de entendimento do comportamento humano, o que o faz crescer e amadurecer, distinguindo-o das outras pessoas. Como conseqüência, há uma tendência dos profissionais da área ao isolamento, alienação e afastamento. A afeição das pessoas com quem tem trabalhado pode iludir o terapeuta no que tem sido chamado de “Complexo de Deus”(Grotjahn,1983).

O analista maduro conhece este perigo e permanece cético a respeito de si mesmo, já que sabe que não é tão mau quanto teme ser nem tão bom quanto esperava ser. Às vezes, o terapeuta pode concluir melhor que ninguém que, nas palavras de Greenson(apud Grotjahn,1983) “o melhor entre nós é apenas um bom iniciante”.

Segue o autor, o verdadeiro psicólogo deve ser dirigido pelo desejo de entender, e desta maneira ele é um cientista. Ao mesmo tempo, deve ser capaz de entender a tensão da não compreensão. Theodor Reik(apud Gratjahn,1983) disse que é melhor não entender do que entender mal. Como um bom Quaker, o terapeuta deve ser capaz de esperar que a luz brilhe, mesmo que ele tenha de sofrer períodos de escuridão.

O terapeuta tem que tolerar muitas contradições em si mesmo. Tem que ser paciente e impaciente ao mesmo tempo. Deve ser capaz de amar e odiar, de ser amigo e oponente da mesma pessoa. Somente quando não nega seus sentimentos , o paciente será capaz de confiar nele. O terapeuta deve ter consciência das necessidades de seu paciente de uma fusão simbólica com a mãe. Esta necessidade, como Mahler e Guntrip mostraram, é a base para o desejo de ser entendido(Grotjahn,1983).

Segundo Craig(1991), o terapeuta também traz consigo certas expectativas. Elas incluem a expectativa de ser capaz de formular perguntas, investigar e obter informações relevantes e significativas. Tais expectativas decorrem do papel de expert atribuído ao terapeuta. Schafer(1954) menciona as possíveis armadilhas inerentes a certos aspectos do papel do terapeuta, que podem reduzir a efetividade da entrevista. Os terapeutas precisam estar conscientes das necessidades e motivos que trazem consigo para tal interação, de modo a poder controlá-los, realizando uma avaliação objetiva e imparcial do paciente.

Frankl(1990), refere que nenhum psiquiatra, nenhum psicoterapeuta – e nenhum logoterapeuta – poderá dizer a um cliente o que é o sentido. Poderá, todavia, dizer-lhe com veracidade plena que a vida tem um sentido. E, mais do que isto, que este sentido se preserva incólume sob todas as condições e em todas as circunstâncias, graças à possibilidade de se encontrar sentido também no sofrimento. Trata-se da capacidade de transfigurar em realização o sofrimento experimentado em nível humano. Em suma, de dar testemunho do que o homem é capaz até mesmo nos momentos de fracasso...Em outras palavras, consoante o que Lou Salomé escreveu para Sigmund Freud, quando este “não chegava a bons termos com a existência do declínio”: É relevante que a “arte de alguém sofrer solidariamente por todos nós sirva como sinal daquilo de que é capaz”(1990,p.19).

Ver o medo transformado em palavras que dão um significado e um nome ao que lhe é desconhecido, é aquilo que todo paciente, muito particularmente o que estiver bastante regressivo, espera do seu analista(Zimerman,1999).

Segundo Winnicott(1982), é comum dizer-se que as crianças “dão escoamento ao ódio e à agressão” nas brincadeiras, como se a agressão fosse alguma substância má de que fosse possível uma pessoa livrar-se. Isso é verdade em parte, porque o ressentimento recalcado e os resultados de experiências coléricas podem ser encarados pela criança como uma coisa má dentro dela. Mas é mais importante afirmar essa mesma idéia dizendo que a criança aprecia concluir que os impulsos coléricos ou agressivos podem exprimir-se num meio conhecido, sem o retorno do ódio e da violência do meio para a criança.

Segue o autor , conquanto seja fácil perceber que as crianças brincam por prazer, é muito mais difícil para as pessoas verem que as crianças brincam para dominar angústias, controlar idéias ou impulsos que conduzem à angústia se não forem dominados.

A angústia é sempre um fator na brincadeira infantil e, freqüentemente, um fator dominante. A ameaça de um excesso de angústia conduz à brincadeira compulsiva, ou à brincadeira repetida, ou a uma busca exagerada dos prazeres que pertencem à brincadeira; e se a angústia for muito grande, a brincadeira redunda em pura exploração da gratificação sensual.

Para Rogers(1987), a diferença mais notável entre uma consulta psicológica normal e a ludoterapia é que nesta a relação é definida muito mais através de ações do que das palavras. O interesse e a afeição amigável do terapeuta pela criança exprimem-se claramente por meio de um grande número de gestos sem importância. O caráter permissivo da relação é gradualmente definido à medida que a criança tenta atividades cada vez mais ousadas e vê que são aceitas. Muitas vezes depois de uma nova ação agressiva, como por exemplo, entornar água, soltar um grito, ou “ferir” uma boneca, a criança lança um olhar culpado, à espera de qualquer castigo ou reprovação. Como isto não acontece, aprende lentamente que se trata de um novo tipo de situação, com muitos aspectos permissivos que não são de todo característicos da sua experiência habitual. O fato de ser um tempo seu, de utilizá-lo como quiser, sem pressão, ordens ou coerção tudo isso é apreendido através mais da experiência da sua liberdade do que de esclarecimentos verbais. É apenas na definição dos limites que as palavras têm um grande papel. A criança fica sabendo que há um limite de tempo na experiência, que há um limite na afeição implicada na relação, pois o terapeuta vê outras crianças numa atitude idêntica e que há um limite para os tipos de destruição consentidos.

Aberastury(1987) refere que na criança o temor à repetição das experiências com o objeto ou os objetos originários obedece tanto ao que aconteceu com os pais reais como à sua própria compulsão a repetir situações que lhe causaram dano. Na sua fantasia de cura, expressa o desejo de modificação do mundo exterior real e o seu desejo de curar sua compulsão a repetir ditas experiências.

Temendo repetir sua relação com o objeto originário, a criança transforma o terapeuta na pessoa de quem desconfia e a quem teme. O objeto originário carregado de frustração e medo projetado no terapeuta transforma este em alguém temido pela criança e de quem, então, espera a mesma conduta negativa e agressiva de seus pais. Este objeto originário em seus aspectos amados – nos aspectos em que satisfez suas necessidades – confere ao terapeuta os atributos necessários para curá-lo. Esta dupla fonte de transferência deve ser interpretada desde o primeiro momento, mas como os dois aspectos estão sempre presentes durante o tratamento, a interpretação de seu significado deve fazer-se também nas sucessivas sessões.

Ainda, segundo a autora, é fundamental que desde o primeiro momento assumamos o papel de terapeuta, porque isto ajuda a criança a situar-se como paciente e a ir fazendo consciente o que mostrou como fantasia inconsciente; para isso devemos interpretar a dupla imagem e seus significados(1987).

No tratamento com crianças, o relacionamento transferencial e o real fazem parte de um todo e estão entrelaçados. Existe um relacionamento real entre terapeuta e criança e uma distorção desta relação, colorida pela transferência(Duarte e Bornholdt, 1992).

Para Mackinnon(1992), o principal instrumento da entrevista é o próprio médico. Cada médico traz diferentes antecedentes pessoais e profissionais à entrevista. Sua estrutura de caráter, seus valores e sensibilidade aos sentimentos alheios influem em suas atitudes para com os seres humanos; sejam pacientes ou não. Descreve que há duas classes de respostas emocionais que o terapeuta pode ter frente a seus pacientes: reações ao paciente tal como esse realmente se apresenta; respostas contratransferenciais (são específicas da personalidade do terapeuta e são inadequadas), o terapeuta reage ao paciente como se fosse figura importante do seu passado.

As respostas contratransferenciais são mais freqüentes nos entrevistadores principiantes e naqueles que têm importantes conflitos emocionais não resolvidos.

Kaplan e Sadock(1997), referem que “da mesma forma que o paciente traz para o relacionamento suas atitudes transferenciais, o médico freqüentemente desenvolve reações de contratransferência a seus pacientes. A contratransferência pode tomar a forma de sentimentos negativos , perturbadores do relacionamento médico-paciente, mas também pode envolver reações desproporcionalmente positivas, idealizadoras ou, até mesmo, erotizadas. De igual modo como os pacientes têm expectativas acerca dos médicos - por exemplo, competência, altruísmo, objetividade, conforto e alivio -, os médicos, com freqüência, têm expectativas inconscientes ou tácitas quanto aos pacientes. Caso essas expectativas não sejam satisfeitas, mesmo que isso ocorra em razão de necessidades inconscientes e irrealistas do médico, o paciente pode ser culpado e percebido como antipático, difícil ou mau”.

Klein (1970), coloca que o jogo expressa uma variedade de situações emocionais: as sensações de frustrações e rejeição , os ciúmes, o amor e o ódio, assim como também a angústia, a culpa, e a necessidade de reparar. Além disso, reproduz experiências atuais, em que certos detalhes da vida cotidiana aparecem misturados com a fantasia.

Conforme segue a autora, deve-se desde o começo, tentar entrar em contato com a fantasia inconsciente, manifestada na transferência, devendo-se levar em conta os aspectos defensivos da fantasia e descobrir a relação entre a fantasia e a realidade externa no passado e no presente. Ainda salienta que as interpretações são feitas através do material que o paciente traz, no nível em que, naquele momento, a ansiedade está centralizada.

Klein et alli(1980), refere que a “...pré-condição para a psicanálise da criança é compreender e interpretar as fantasias, os sentimentos, as ansiedades e a experiências expressas ao brincar...”(p.28). E segue, a interpretação pode aumentar, de inicio, a ansiedade e a desconfiança para logo após dar lugar ao alivio. Ressalta que a interpretação tem de ocupar-se também de níveis mais profundos, levando em conta as culpas, a ansiedade persecutória e os impulsos destrutivos.

Já Freud (1969) estabelece a diferença entre o jogo infantil e o sonho diurno. Refere-se que cada criança, em seu jogo, se comporta como um poeta, que cria um mundo próprio, ou melhor dizendo , reordena as coisas do seu mundo numa nova forma que lhe agrade mais... o oposto ao jogo não é o sério mas o real. Apesar de toda a emoção com que caracteriza o mundo lúdico, a criança estabelece bem sua diferença e sente prazer em unir seus objetos e situações imaginárias com as coisas tangíveis e visíveis do mundo real. Esta união é o que diferencia o jogo da criança da fantasia. Mostra que a atividade lúdica é determinada por um desejo particular - desejo de ser grande.

Para Braun (2002), “ Violência doméstica: punição corporal - leve ou severa - treina a criança para aceitar a agressão e a violência na medida em que tais atos feitos pelos adultos destinam-se a ensinar obediência e submissão. Os sentimentos associados (de angústia, raiva, ansiedade, medo, terror, ódio, hostilidade), que surgem de tal punição originam-se nos relacionamentos domésticos dos adultos que foram espancados quando crianças. Os padrões de agressão contra crianças tornam-se modelos de agressão dirigidos contra adultos, especialmente esposas, maridos e companheiros.

Azevedo (1989) caracteriza a violência doméstica contra crianças e adolescentes como uma violência interpessoal e intersubjetiva, sendo um abuso do poder disciplinador e coercitivo dos pais ou responsáveis; um processo que pode se prolongar por meses e até anos; um processo de completa objetalização da vítima, reduzindo-a à condição do objeto de maus-tratos.

A Unicef (apud Azevedo,1989) nomeia maus-tratos como todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças ou adolescentes que, sendo capaz de causar dano físico, sexual ou psicológico à vítima, implica de um lado uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos de direitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

Para Farinatti (1993), abuso infantil é toda a ação ou omissão de parte do adulto cuidador, que resulte em dano ao desenvolvimento físico, emocional, intelectual e social da criança. É a ausência, insuficiência ou distorção da interação dos pais(cuidadores) com seus filhos.

As crianças vítimas de abuso físico e sexual apresentam uma multiplicidade de perturbações psiquiátricas, incluindo ansiedade, comportamento agressivo, ideação paranóide, transtorno de estresse pós-traumático, transtorno depressivo e risco aumentado de comportamento suicida. O abuso sexual parece aumentar o risco de perturbações psiquiátricas, em crianças que já estejam vulneráveis, e suas vulnerabilidades mais freqüentes são baixa auto-estima, depressão, transtorno dissociativo e abuso de substâncias. Os maus-tratos crônicos parecem promover um comportamento agressivo e violento em crianças vulneráveis.

Durante o desenvolvimento infantil, a criança enfrenta problemas específicos do crescimento do corpo e das demandas sociais, necessitando enfrentar os conflitos de cada fase e, para isso, buscando mecanismos de adaptação para de defender e obter alívio da ansiedade decorrente.

Aberastury(1987), afirma que nos jogos da primeira infância encontram-se as bases da vida amorosa adulta. O jogo do primeiro ano de vida dá as bases da sublimação da infância e conduz aos jogos de amor.

O mundo da criança é povoado de fantasias e imagens boas e más, de fantasias ternas, de figuras temidas, perigosas, violentas e terroríficas. Através do brinquedo a criança procura dominar suas angústias, controlar idéias ou instintos, dar vazão às suas fantasias e também obter prazer.

A terapia de uma criança é um desafio onde o terapeuta pode passar por momentos de angústia, pois torna-se continente de uma série de projeções, identificações e identificações projetivas intensas. Necessita mergulhar em seu mundo de fantasia, brincar, se disponibilizar como um objeto transicional, tolerar e dar vazão à agressividade geralmente contida e controlada em outros ambientes e relacionamentos.

M. Klein(1946) entendia a identificação projetiva como um conceito amplo; seria um veículo para distinguir o eu do não eu.

O processo começa quando a posição esquizo-paranóide pela primeira vez se estabelece em relação ao seio materno e se intensifica quando a mãe é percebida como objeto total e seu corpo é penetrado pela identificação projetiva(Sandler,1989).

No primeiro estágio grande parte do ódio se dirige à mãe(relação objetal agressiva) para causar danos ou controlar. Envolve uma clivagem(objeto é parcial-bom/mau) e expulsão de partes do self, identificando o objeto com as partes clivadas e expelidas do self.

Bleichmar e Bleichmar(1992) referem aos mecanismos primitivos , segundo a teoria de Melanie Klein, igualando os conceitos de clivagem- dissociação(splitting) e definindo-os como uma separação da mente em duas partes que podem ser independentes sem comunicação uma com a outra, utilizando inclusive diferentes linguagens simbólicas. Estes diferentes setores da personalidade podem ser sentidos como próprios ou alheios, vivos ou inanimados, normais ou anormais, neuróticos ou alucinatórios(p.131).

No atendimento, P.V. projetou em mim as partes clivadas do seu self que lhe eram fortemente terroríficas para defender-se dos objetos persecutórios que lhe eram ameaçadores.

Segundo M.Klein(1982), os processos de divisão do objeto e do ego são de natureza fantasmática. Neste processo o ego tende a fragmentar-se pela ameaça de destruição causada pelo impulso agressivo.

Desta forma, P.V. fez com que eu me sentisse culpada, triste e deprimida ao me identificar com o objeto cindido resultante da sua representação fantasiosa, o que consiste no processo contra-transferencial normal.

No segundo estágio da posição esquizo-paranóide, o analista se identifica com o objeto em grau suficiente para contribuir com a contra-transferência, o que ocorreu durante o atendimento de P.V.. Porém, o procedimento seguinte, apesar das orientações e do embasamento teórico, me surpreendeu, me senti fragilizada, desprotegida, ameaçada e sem saber exatamente o que fazer. Busquei todos os recursos internos, teóricos e emocionais para saber o que melhor se aplicaria naquela situação. Sem êxito, disse a P.V. que não poderia me machucar e acabei a brincadeira.

Rogers(1987), quando fala sobre os limites de uma ação agressiva, refere que: a simples expressão “sei que você está muito zangado comigo esta manhã” é normalmente suficiente para impedir um ataque contra o terapeuta, pois a necessidade de atacar é atenuada quando o sentimento é reconhecido. Às vezes, porém, pode ser necessário exprimir este limite verbalmente; “Pode sentir a raiva que quiser contra mim, mas não pode me bater”. Os terapeutas principiantes, aí me incluo, não tem confiança em que a criança, particularmente no caso de problemas de adaptação, aceite esse limites. Subestimam mais uma vez o valor de uma situação claramente definida e bem estruturada(p.86).

Revisando o relato e o texto, pude compreender melhor minha atitude em relação à P.V. e a agressividade que emergiu. Concluo, ainda, que a pouca prática psicoterapêutica nos coloca mais facilmente nessas situações de vulnerabilidade.

No terceiro estágio( na segunda posição), por projeção das partes más em um seio bom, o bebê se tornará capaz, na medida em que seu desenvolvimento permite, de reintrojetar as mesmas partes sob forma mais tolerável, uma vez que tenham sido modificados pelo pensamento do objeto(Bion,1962).

É na identificação destas projeções através da contratransferência que o analista trabalha, se reforça a aliança terapêutica – o analista é continente, ocupa o lugar do seio bom.

A contratransferência terá sido útil, enquanto instrumento do processo terapêutico, quando o psicoterapeuta for capaz de receber o lixo(seio mau) do paciente e devolver de forma modificada como a mãe, que com sua capacidade de rêverie, transforma as sensações desagradáveis e proporciona alívio ao bebê, que então reintrojeta a experiência emocional mitigada e modificada.

Aberastury(1992), refere que se uma situação traumática existiu, a criança pode imaginá-la, pensar nela, perder o sono, ser presa de pavores e até desenvolver uma fobia, porém não poderia condicionar essa nova situação no mundo externo. Pode, isto sim, repetir muitas vezes esta experiência, já que o psiquismo dispõe de uma capacidade denominada “compulsão à repetição” que impele o indivíduo a reproduzir situações não elaboradas e a levá-las cada vez mais à consciência.

Será, então, através da atividade lúdica que a criança poderá viabilizar a elaboração da situação traumática, sem pôr em perigo a relação com seus objetos originários cuja perda é temida

Ao interromper bruscamente a brincadeira com P.V., destituindo-a de suas fantasias, reforcei a crença descrita na teoria Kleiniana de que se o objeto total desaparece, é porque os sentimentos hostis foram mais fortes que os de afeto e causaram a destruição do objeto. Esta constatação originou um sentimento de culpa, e o reconhecimento desta gerou uma necessidade de reparação do objeto danificado. De minha parte, reconhecendo que a minha reação à agressividade de P.V. havia sido tão intensa quanto a sua hostilidade e pela tentativa de re-estabelecer o vínculo com a paciente. E pela atitude da criança em permitir que eu percebesse que havia se apropriado indevidamente de objetos pertencentes à sala de atendimento, dessa forma viabilizando o resgate do vínculo e afastando a ameaça da perda do objeto.

As tendências à reparar implicam as subjacentes tendências destrutivas dirigidas ao exterior e a si mesmo. A diminuição do sadismo para conservar o objeto amado ou desejado, é o que nos dá o índice de maior adaptação à realidade de capacidade de gozo na vida(Aberastury,1987).

Winnicott(apud Bleichmar e Bleichmar,1992), em sua obra diz haver em cada bebê uma central vital, e seu ímpeto para a vida, para o crescimento e desenvolvimento, é uma parcela do próprio bebê, algo que é inato na criança. Refere ainda, que a criança nasce indefesa. É um ser desintegrado, que percebe de maneira desorganizada os diferentes estímulos provenientes do exterior. A tarefa da mãe é oferecer um suporte adequado para que as condições inatas alcancem um desenvolvimento ótimo. Esta proteção e cuidado que a mãe deve proporcionar a seu filho não têm apenas implicações fisiológicas, destinadas a garantir a sobrevivência, à medida que estes cuidados são providos adequadamente, para o que, como Winnicott indica, é necessário sentir amor, a criança conseguirá integrar, tanto os estímulos, como a representação de si mesmo e dos demais , adquirindo um ego sadio. Se esta integração falhar, o papel da mãe como ego auxiliar for insuficiente, a criança poderá recorrer à construção de um ego auxiliar falso, o falso self.

A condição de P.V. como abrigada desde tenra idade, 1 ano e meio, têm deixado muitas falhas em seu desenvolvimento, na falta da mãe suficientemente boa, restou apenas o não lugar, o lugar do nada, já que a abrigagem se preocupa basicamente com dados de sobrevivência de sua clientela, onde nem sequer as roupas que a criança usa são suas, direcionando pouco ou nenhum investimento no emocional. Mas P.V. têm preservadas suas capacidades inatas como referiu Winnicott em sua obra e ainda busca sua estruturação e adequação no mundo exterior.

O comportamento de P.V. e a busca de soluções para os conflitos estão muito fixados na fase oral, como podemos constatar quando pede bolachinhas no inicio do atendimento e em sua brincadeira preferida – casinha e em outras como a que me propôs no inicio do atendimento; “vamos brincar de médico, tu tá doente e eu vou te examinar e cuidar de ti”.

Fenichel(2000), define que o comportamento daqueles que têm o caráter oral mostra, com freqüência, sinais de identificação com o objeto pelo qual querem ser alimentados. Há pessoas que procedem feito mães amamentadoras em todas as suas relações objetais: são sempre generosas, enchem os amigos de presentes e ajudam de modo autêntico e altruístico, quando são favoráveis as condições econômico-libidinais. A atitude delas tem o significado de um gesto mágico: “Assim como cumulo a Você de amor, quero que Você me cumule”.

Quanto ao meu sofrimento com a condição de P.V. além da contratransferência, acrescento à minha busca de alívio e entendimento o que Silva(2000,p.63) diz sobre a terapia com pacientes vitimas de abuso. Existe um fenômeno conhecido por trauma secundário, mais recentemente denominado de fenômeno fadiga da compaixão. Fadiga da compaixão é o efeito indireto sofrido pelo terapeuta que trabalha com pacientes traumatizados. Estudos mostram que terapeutas que lidam com DEPT sofrem de efeito cognitivo, esquema de identidade alterada, e alteração na percepção do mundo. Os efeitos do trauma sofridos pelo paciente afetam indiretamente o terapeuta em sessão, fazendo com que ele se torne mais cínico em relação ao mundo, assim como mais vulnerável, desenvolvendo um sistema de poder sobre os outros. Um outro sintoma do efeito vicário sobre o terapeuta é a perda do idealismo. Esses sintomas geralmente acontecem quando o terapeuta é iniciante porque quanto mais veterano ele for, menos sintomático e mais familiarizado com os horrores do abuso ele se tornará. O desgaste que o terapeuta sofre porque trabalha com este tipo de paciente é denominado de burn out, ou uma exaustão emocional que leva ao estresse. Quanto mais idealista for o terapeuta, e quanto mais entregue ele for a sua profissão, mais chances ele terá de se sentir emocionalmente exaurido. Infelizmente, as pessoas que têm pouco treino são aquelas que trabalham com pacientes mais difíceis.

Bleichmar e Bleichmar(1992), referindo à falha básica descrita por Balint, diz que todo analista tem a experiência de tratar algum caso, onde observa que, quando interpreta, ao paciente interessa, mais do que o conteúdo da interpretação, sua verdade ou não, sentir o contato e saber que o analista está com ele. Ë nesta afirmação que reforço minha atitude ao finalizar a sessão, procurando me recompor, percebi que o mais importante naquele momento era reforçar o vínculo terapêutico e permitir que P.V. se sentisse à vontade e segura quanto e para o nosso próximo encontro. Sua resposta à minha despedida dizendo: “tchau, a semana que vem venho no Serviço de novo!”, confirmou o resgate da aliança terapêutica.

Falar sobre infância significa entre muitas coisas falar de sonhos, fantasias, alegria, brincadeiras, inocência, desenvolvimento, etc., mas infelizmente neste nosso estudo estamos enfocando um outro lado, a infância maltratada, ultrajada.

Quando trabalhamos com crianças precisamos estar preparados para contar com o inesperado, tudo depende do momento, das atividades desenvolvidas, das fantasias e seus conteúdos, da condição física e emocional, de nossa intervenção e de como a criança se sentirá e reagirá à ela.

A criança vitima de violência precisou buscar defesas adaptativas muito primitivas para sobreviver ao meio agressivo e violento de origem, e será com essas defesas que iremos interagir no ambiente psicoterápico. Portanto, se faz necessário que busquemos no conhecimento cientifico um maior entendimento e embasamento teórico para um melhor manejo das vicissitudes desta prática terapêutica.

Ao finalizar este trabalho, repasso o tema que o originou e o resultado de sua demanda, entendo melhor a relação contratransferencial no setting e os sentimentos emergidos. A importância da supervisão, suas contribuições, apontamentos, criticas, orientação e apoio no caminho que está apenas começando – a prática psicoterapêutica. Seria inviável um desempenho satisfatório rumo ao crescimento pessoal e profissional sem as orientações, esclarecimentos de dúvidas e apoio em situações criticas e o referencial bibliográfico disponibilizado.

A escolha do tema originou-se da necessidade de compreender e elaborar sentimentos de angústia e dor diante do sofrimento trazido pelo paciente. A capacidade de identificar o que pertence ao setting, ao paciente, ao psicoterapeuta e à criança que ele traz dentro de si, é de fundamental importância no fazer clínico e que requer uma especial e contínua atenção, independente de ser um iniciante, como na condição em que nos encontramos enquanto estagiários, ou um profissional experiente.

 

Referências


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Endereço para correspondência

Marlene Batista Ramos

E-mail: marlenebatista@terra.com.br

Recebido em: 09 / 02 / 2009.
Aprovado em: 26 / 06 / 2009.