ARTGO

Perda do sentido da vida resultando na desistência de viver

Loss of the sense of life resulting in the desistance of living

Maria de Fátima Scaffo
FAMATH - Faculdades Integradas Maria Thereza


 

RESUMO

Este artigo apresenta o início do longo caminho a ser percorrido na busca de maior compreensão do fenômeno suicídio na concepção Gestáltica. Investigando o método fenomenológico e a Abordagem Dialógica, nesta etapa inicial, reforçamos nossa compreensão de ser-no-mundo, desejoso de aceitação, reciprocidade e auto-compreensão. Analisando as causas mais freqüentes e o alto índice de tentativas de suicídio que lograram êxito, reafirmamos nossa convicção de que a Gestalt-terapia tem muito a contribuir em relação a esta temática.

Palavras Chave: suicídio, gestalt-terapia, graduação



ABSTRACT

This article presents the beginning of a long way to be covered in search of bigger understanding of the phenomenon suicide in the gestalt conception. Investigating the fenomenological method and the dialogical approach in this initial stage, we strengthen our understanding of being in world, desirous of acceptance, reciprocity and self-understanding. Analysing the most frequent causes and the high index of attempts that had cheated success, we reaffirm our certainty that gestalt therapy has much to contribute in relation to this thematic one.

Key words: suicide, gestalt-therapy, graduation



INTRODUÇÃO


O interesse por este tema surgiu a partir do trabalho de supervisão no Serviço de Psicologia Aplicada/FAMATH, quando foi percebida, através dos relatos de atendimentos dos estagiários, uma significativa incidência de pensamentos suicidas, em clientes que apresentavam decepção diante dos fatos da vida e ausência de um projeto existencial, ou seja, alguma meta, uma utopia que os fizessem vislumbrar a possibilidade de um futuro menos doloroso.

Diante destas ocorrências, em especial, ao iniciar o trabalho de atendimento terapêutico, fica muito evidente a angústia apresentada pelos estagiários, que se deparam com a falta de recursos para identificar em que momento o seu cliente buscaria, através de um ato drástico e irreversível, “dar conta” de por fim ao seu sofrimento.

Várias foram os procedimentos para fornecer “maior suporte” a este grupo. Estabelecemos que parte do tempo de supervisão seria dedicado à temática suicídio, e, demos início as primeiras buscas sobre o que já havia sido produzido em termos da literatura gestáltica. Constatamos que até então, pouquíssimas eram as informações produzidas pela referida abordagem sobre a questão do suicídio. Encontramos também, que nas Agências Formadoras, ou seja, na maioria dos Cursos de Graduação a questão do suicídio é muito pouco trabalhada.
Destes resultados iniciais decorreram algumas diretrizes: levantamento mais amplo de bibliografia relativa à temática, verificação da incidência das tentativas de suicídios, as que os indivíduos lograram êxito e as correlações existentes com os sintomas mais freqüentes.

Cabe ressaltar que encontramos uma correlação bastante significativa com a depressão na bibliografia sobre o tema, o que nos direcionou a buscar nos relatos registrados nos prontuários do SPA/FAMATH a existência ou não desta correlação. Em função deste resultado preliminar, optamos por tornar oficial a investigação até então informal, apresentando um projeto de pesquisa à equipe responsável pelo PIBIC/FAMATH (Projeto de Iniciação Científica das Faculdades Integradas Maria Thereza). A partir da aceitação da proposta do Projeto: Depressão e Suicídio na Abordagem Gestáltica, estabelecemos que a primeira etapa desta fase oficial seria voltada para a fundamentação teórica sobre o fenômeno do suicídio e a prática terapêutica.

Consideramos importante esclarecer, que a Gestalt-terapia é uma terapia existencial-fenomenológica, que surgiu a rigor, em 1947, com a publicação do livro Ego, Hunger and Agression, de Frederick Perls. Ao longo dos primeiros anos, foi ensinada a seus seguidores aos moldes das tradições passadas de pais para filhos, de uma geração de psicoterapeutas para outra. Essa forma de transmissão de conhecimento visava fundamentalmente à apreensão do método fenomenológico de awareness.
Na atualidade, a articulação da teoria com a forma vivencial, tem sido trabalhada no sentido de oferecer bases sólidas ao trabalho do profissional/aprendiz. No entanto é oportuno sinalizar que desenvolver a capacidade de compreender o cliente é uma tarefa difícil, uma vez que o encontro cliente-terapeuta é permeado por múltiplas e intrigantes questões existenciais que vão emergindo a cada diálogo, exigindo cada vez mais habilidade para lidar com os possíveis paradoxos.

Para a Gestalt o cliente é sempre alguém, cuja totalidade, embora sempre buscada, nos escapa. É fenômeno singular que ultrapassa todas as possibilidades de representação, categorizações e diagnósticos que se enquadrem na comunalidade ou ainda, nas definições baseadas nas classificações puramente racionais. Este ser que se apresenta repleto de incertezas, medos e angústias, também é concebido pela Gestalt-terapia como pleno de possibilidades, potencialidades que podem não ser percebidas, em função dos ajustes distorcidos, considerados necessários à sobrevivência, em determinado aqui-e-agora.

De acordo com Cardella (2002, p.46), a vida é caracterizada por um jogo permanente de estabilidade e desequilíbrio. A satisfação de uma necessidade traz estabilidade ao indivíduo, enquanto o surgimento de uma nova necessidade o desequilibra, gera tensão, e o motiva na busca de uma nova satisfação. Perls (1988, p.20) alerta que quando as necessidades são muitas e, não são satisfeitas, o processo homeostático pode falhar, levando o indivíduo à manutenção do estado de desequilíbrio e, conseqüentemente ao adoecimento. Desta forma, a awareness que significa a capacidade de perceber o interior e o exterior fica prejudicada, interferindo nos recursos que a Gestalt-terapia chama de funções de contato: visão, audição, tato, olfato, fala e motricidade.

Considerando que a hierarquização de nossas necessidades está ligada diretamente à qualidade do contato e ao estabelecimento das nossas fronteiras de contato, entendemos que a falha na capacidade de conscientização do estar e ser no mundo interfira no ajustamento criativo, o que podemos considerar como uma interrupção no processo de regulação saudável do organismo. Ciclo fechado, interação rompida, comportamento cristalizado, repetitivo, emoções suprimidas, porta aberta para a “construção” e aparecimento de sintomas.

Frazão (1999, p. 27), nos chama atenção para a importância das sinalizações dos sintomas. Para esta autora “[...] é necessário compreender a serviço do quê eles se constituíram e se mantêm”. Ainda de acordo com ela, o sintoma pode ser uma forma dramática de expressar alguma necessidade muito profunda, que, por alguma razão, não pode ser expressa de outra maneira.

Sendo o ser humano absolutamente plural, ou melhor, um fato fenomenológico, suas formas de apresentar seus gritos de socorro são as mais diversas e de impossível previsão.

Acerca desta questão recorremos ao Método Fenomenológico, a Buber (1974) e a sua filosofia dialógica, que enfatiza a relação terapêutica como possibilidade de encontro verdadeiro, genuíno e caminho de crescimento. Neste tipo particular de relação a singularidade de cada pessoa é valorizada e a plenitude e a presença do espírito humano é profundamente sentida, acolhida e honrada. Um contato desta natureza é permeado por compreensão, respeito à alteridade, às escolhas, aceitação, entusiasmo e auto-responsabilidade. Neste diálogo, que não se refere simplesmente ao discurso, mas a totalidade do Ser que tem liberdade de emergir, é que se pode pretender captar as perspectivas existenciais do Outro, ou seja, seus desejos, inquietações, angústias, enfim, seu potencial transformador da própria vida e destino.

É importante enfatizar que a atitude dialógica é considerada pela maioria dos Gestalt-terapeutas como um pilar, um suporte para que a atitude fenomenológica possa ser desenvolvida com muito mais êxito.

Para Cardella (2002, p.39) a fenomenologia clareia os significados atribuídos que constituem um fenômeno, ou seja, um fragmento da experiência de um sujeito-no-mundo, pela descrição fenomenológica da experiência, da observação de “como” ela acontece.

Assim, ao realizar esta descrição, o Gestalt-terapeuta privilegia o “o quê” e o “como” em vez do “porque”. Também, como forma de acesso ao Ser, desenvolve intervenções reflexivas, como uma tentativa de alcançar a intencionalidade da consciência, dinâmica que dá sentido as relações e objetos do mundo. Desta forma, favorece a expressão do Ser como um fato fenomenológico global, não estimulando as racionalizações, evitações e justificativas geradas pela ênfase na racionalidade, cuja função básica é reduzir o todo às suas partes, com a pretensão explicativa dos sintomas. “Direcionar” este Ser, respeitando suas idiossincrasias, para refletir sobre a intencionalidade da sua consciência, ou seja, para a investigação da sua própria subjetividade e para o abandono da crença de que através da explicação linear causa-sintoma pode obter a “cura”, é um dos momentos mais produtivos do processo terapêutico. É neste que surgem com mais clareza o reconhecimento das representações dos papéis sociais, os impasses e as fobias. Este Ser que até então se percebia vitimado pela vida, pode a partir desta experiência passar a se perceber como co-agente de sua constituição pessoal e, conseqüentemente suas formas relacionais.

Entendemos que pelo fato de ser fio de tecido inter-humano, e receber ao longo de sua trajetória uma educação oriunda de um projeto que o antecede e ainda, por necessidade de afeto, nutrição, aceitação e confirmação dos adultos que lhes são significativos, os indivíduos acabam por introjetar uma série de concepções acerca de si e do mundo. Desta forma acabam por se habituar a assimilar conceitos, padrões de comportamento, valores morais, etc., sem discriminação prévia. Cardella (2002) alerta que a introjeção propicia uma invasão do meio sobre o indivíduo, que fica impossibilitado de desenvolver sua personalidade, visto que permanece superenvolvido com os elementos estranhos que incorporou. Esta incorporação dificulta a auto-percepção e a auto-expressão, exigindo do mesmo um enorme investimento energético para reconciliar os elementos que porventura percebe como estranhos. O desejo de atender as demandas do meio e as próprias necessidades gera um conflito que dificultar ou até mesmo paralisar o crescimento do Ser. Baseados em Burow e Scherpp (1981), consideramos que uma educação para a saúde e crescimento deve favorecer o auto-encontro, a auto-realização, auto-satisfação e desenvolvimento do potencial humano como um todo, e não a repetição de velhas crenças, valores e formas de vida que apregoam sucesso que muitas vezes não é verdadeiro. Segundo Hycner (1997) “Muito do sofrimento humano poderia ser diminuído se houvesse uma maior preocupação em se estabelecer um diálogo genuíno entre as pessoas”. Fica assim, novamente claro que é através da relação dialógica que se torna possível auxiliar o Ser no atravessamento do seu conflito, da sua depressão, do desespero e do sentimento de devastação diante das suas perdas que podem levá-lo a desistir de viver. Ainda assim, é extremamente relevante considerar a reflexão apresentada por Fukumitsu (2005): A palavra terapia vem do grego therapeia e significa “fazer o trabalho dos deuses”, ou “estar a serviço dos deuses”, ou ainda “a serviço do todo”. O fato é que nós, “simples humanos”, em nossa formação, somos preparados para lidar com as questões da vida; dificuldades, inquietações, distorções perceptivas, distúrbios de fronteira, e, mesmo que consideremos a poliformia da natureza humana, quase não dirigimos a atenção para situações-limites como a tentativa de suicídio, ou melhor, a “opção” pela desistência de viver. Então como ser um terapeuta competente diante da desistência de viver? Já que o profissional/aprendiz não é “treinado” para reconhecer os indícios, muitas vezes sutis, apresentados pelo cliente de que deseja suicidar-se e, muito menos para lidar com o impacto da tentativa real de suicídio.

Como já dissemos anteriormente suicídio, o tipo de construção do conhecimento desenvolvido nos cursos de graduação de Psicologia não tem se apresentado eficaz para levar o graduando a “perceber e intervir” em situação tão singular. Entendemos que é preciso muito mais do que “formar”. É preciso instigar e fortalecer o profissional/aprendiz a acreditar no seu próprio potencial de interação, de interlocução, de sensibilidade perceptiva. É fundamental que ele “aprenda” a estar presente na experiência como pessoa concreta, real, como um Ser que tem preferências, pensamentos e sentimentos. Desta forma compromissada, engajada, profundamente sentida e confiante, além de evitar possíveis projeções e idealizações sobre si e o lugar de confiabilidade, que lhe foi conferido, por quem o procurou, pode auxiliar sendo um suporte, no caminhar pela trilha tortuosa e sofrida da revivescência das perdas, tristezas, melancolias e depressões para então resgatar o sentido da vida. Tarefa por demais hercúlea, uma vez, que estas vivências interferem sobremaneira na capacidade de confiar, de ter esperança e acreditar na sabedoria da vida.

Neste ponto, poderíamos perguntar: o quê levou o indivíduo a tal estado de desespero-desesperança? Ou ainda: o quê pode levar o ser humano a “decidir” matar o que o incomoda, o que o aflige, o que não consegue aceitar matando a si próprio?

Para Camon (apud Fukumitsu, 2005) “[...] ainda são inúmeras as correntes que abordam o suicídio como um ato isolado e individual, apesar dos avanços teóricos que mostram o suicídio de um modo mais abrangente englobando a pessoa em todas as condições existenciais”.

Bem, categorizado por diferentes teóricos, este fenômeno apresenta dois pontos comuns em todas as definições: o desespero humano e a intencionalidade. Dias (1991 apud Cardella 2005), acerca dos mecanismos de risco suicida, nos alerta para a ambigüidade do fenômeno quando afirma que o suicídio “(...) é ambíguo. Ele deixa um enigma. Ele é uma recusa a uma situação dada, mas também, é um julgamento total sobre o valor da vida. Ele é um sintoma, mas também um ato na busca da finitude da vida pelo julgamento de que a mesma não tem mais sentido”.

Metodologia

Esta pesquisa, que se encontra em curso, constará de uma revisão bibliográfica dos diversos autores interessados no tema, levantamento dos prontuários dos clientes com queixa de depressão do ano 2002 a 2006, como também entrevistas aos clientes do SPA (Serviço de Psicologia Aplicada) FAMATH, que tenham apresentado ocorrência de tentativa de suicídio.

Justificativa

Considerando que os dados da OMS (Organização Mundial de Saúde) em relação ao suicídio revelam um crescimento significativo, julgo ser imprescindível o desenvolvimento de reflexões sobre este fenômeno, sua intencionalidade, implicações e procedimentos terapêuticos a serem utilizados, de forma que o profissional/aprendiz da Psicologia seja instrumentalizado para lidar de forma mais efetiva e competente com este ato imprevisível que busca a aniquilação de si próprio.

REFERÊNCIAS

ANGERAMI, Camon, V. A. (1986). Suicidio: uma alternativa à vida, uma visão clínica existencial. São Paulo: Traço.
BACHELARD, G. (1938). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto.
BUBER, M. (1982). Do diálogo e do diálogo. São Paulo: Perspectiva.
BUROW, O. e Scherpp, K. (1995). Gestalt-pedagogia. Um caminho para a escola e a educação. São Paulo: Summus.
CARDELLA, Beatriz H.P. (2002). A Construção do Psicoterapeuta: Uma Abordagem Gestáltica. São Paulo: Summus.
_____________________.(1994). O amor na relação terapêutica: uma visão gestáltica. São Paulo: Summus.
FORGHIERI, C. Y. (1984). Fenomenologia e psicologia. São Paulo: Cortez.
FRAZÃO, L. M. (1992). A importância de compreender o sentido do sintoma em gestalt-terapia: contribuições da teoria de relação objetal. In: Revista de gestalt. São Paulo: In Revista de Gestalt.
FUKUMITSU. O. K. (2005). Suicídio e Psicoterapia: Uma visão gestáltica. Campinas: Livro Pleno.
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HYCNER, R & JACOBS. L. (1997). Relação e cura em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus.