ARTIGO

A família negra e o desenvolvimento afetivo saudável


The black family and the healthful affective development

Paula Fernanda Fonsêca de Araújo Santos

Endereço para correspondência


Sarah Batista Leite de Lima

Endereço para correspondência


RESUMO

Este estudo traz uma compreensão acerca do fenômeno do preconceito racial interferindo na dinâmica familiar e social do sujeito negro. Aborda fatos históricos como elementos que estão presentes e que afetam na educação de pais e filhos negros. O artigo parte de um recorte histórico e transcorre no sentido de uma desconstrução e ressignificação da condição de ser negro.

Palavras-chave: preconceito racial; negro; família; desenvolvimento afetivo saudável.


ABSTRACT

This study brings a comprehension concerning of phenomenon of racial preconception interfering in familiar and social dynamic of black person, of negative form. It boards historicals facts as elements there are presents and affect on parents and black children education. Part of historical record and it elapse on direction of a desconstruction and resignification of be a black person condition.

Keywords: racial preconception; black; family; healthful affective development.


O preconceito racial ainda está presente nas relações intersubjetivas como algo que interrompe o processo natural do encontro entre duas ou mais pessoas e interfere nos conceitos que a pessoa negra tem ou passa a ter sobre si mesma. Na família, muitas vezes, a forma de manifestá-lo é velada, tornando-o invisível aos olhos de quem não sofre as humilhações.

Por mais que os pais eduquem seus filhos valorizando os seus atributos enquanto pessoa negra, esta criança é ser-no-mundo, e este meio em que ela (con)vive também contribui para a imagem que a criança faz de si mesma. É neste âmbito onde a maioria das vezes o preconceito racial está presente, distorcendo, assim, uma identidade positiva em construção. O fato de ser negro não diz respeito apenas à sua cor, aos seus traços ou costumes, mas também à construção de uma identidade que se constitui enquanto ser humano.

Conforme o sociólogo Hélio Santos (2001), o léxico de negro pode ter dois significados: identificar a pessoa desse grupo étnico racial, ou significar: lúgubre, maldito, triste e outras coisas ruins, segundo os dicionários. Desse modo, afirmar-se enquanto pessoa negra implica relacioná-la à violência contra si mesma, revelando um aspecto preocupante no que se refere à construção da identidade do sujeito negro.

Ao fazer um recorte acerca da História do negro no Brasil, Valente (1994) ressalta a importância do conhecimento acerca da colonização escravocrata dos negros como ponto de partida para entender, embora apenas isso não seja suficiente, a situação desses últimos no Brasil atual, além da reflexão sobre algumas visões históricas deturpadas, no que diz respeito à escrita, que mostra, muitas vezes, a realidade de quem ocupa posição de domínio e poder na sociedade, levando-nos a uma interpretação equivocada sobre o significado da escravidão negra no Brasil e da situação do negro hoje, assim como contribui para um sistema opressor, "fundamentado" em uma ideologia da brancura. Vejamos como esse autor se expressa:

A partir de "velhas" perspectivas históricas, muitos de nós aprendemos que os negros vieram para cá no período colonial trazidos pelos portugueses para trabalhar como escravos nas lavouras e nas minas, uma vez que os índios não se teriam adaptado ao trabalho fixo. Além da aptidão para o trabalho braçal, os negros teriam sido dóceis e passivos... Pesquisas históricas... mostraram que a “velha" história encobria uma riqueza de detalhes sobre o cotidiano dos povos dominados... Antes do negro, o índio foi um elemento importante na construção da colônia. Nos primeiros tempos de colonização, a mão-de-obra nativa foi predominante, e sua escravização chegou a despertar polêmicas entre os colonos e algumas autoridades eclesiásticas (sobretudo os jesuítas) que queriam proteger os índios.
Mais tarde, com o predomínio do escravo negro em todas as áreas da economia, passou a ser defendida uma pretensa superioridade do negro e uma suposta indisposição cultural do índio para o trabalho na lavoura. Muitos dos negros escravizados eram originários de povos africanos de cultura agrícola. Outros já sabiam como trabalhar o bronze, o cobre, o ouro e a madeira. E havia também os que eram tecelões, ferreiros e criavam animais domesticados. Essas qualificações tornaram os negros uma mão-de-obra bastante apreciada... Os portugueses, a partir do momento em que começaram a expandir seus domínios pela costa africana do século XV, iniciaram o tráfico e a escravização dos negros porque eram atividades bastante lucrativas.

Como justificativa da escravidão negro-africana, os países colonialistas alegaram que os negros pertenciam a uma raça inferior, possuíam costumes primitivos, e por isso era necessário que fossem "civilizados" e "cristianizados". A religião católica era imposta aos negros logo que eram embarcados na África ou quando pisavam a nova terra.
Na verdade, os africanos possuíam costumes diferentes. Sua cultura, seu modo de vida, tinha valores próprios. E diferença nunca deveria ser sinônimo de inferioridade. Mas infelizmente foi (e ainda é).

Também foi alegado que os negros já eram escravos em seu país de origem e que, portanto, não seria alterada a sua “condição natural” (Valente, 1994, p.22-23).

A História deve ser compreendida como um processo em que o ontem tem conseqüências no hoje e no amanhã. Valente (1994) afirma que "nem tudo é igual ao que era durante a escravatura, mas as formas de opressão que atuavam sobre os negros perduraram com novas roupagens ou, poderíamos dizer, o papel da opressão foi refuncionalizado” (p.19). Desse modo, o negro é tido como um fruto da história da escravidão. Sob esta perspectiva o negro é coisificado, uma vez que os fatos históricos sobrepõem-se à subjetividade. Da mesma forma, sujeitos negros vivenciam o seu ser de forma coisificada, visto que não é possível se separar do conceito que se tem de si mesmo. Sobre a distinção entre ser e ente para a fenomenologia, Critelli (2007) afirma que:

Para a fenomenologia, por não haver uma dicotomia prévia entre ser e ente, o ser não está por trás das aparências, mas nelas mesmas. O ente carrega em si seu ser, seu aparecer e desaparecer, seu estar à luz e estar no escuro. O ser não está na sombra do que está à luz, mas está no ente. Portanto, está naquilo que se mostra [...] o lugar de acontecimento do ser dos entes, desde a manifestação dos entes, é o próprio mundo, o ser-no-mundo (p.32).

Segundo André e Lelord (2003), o olhar que lançamos sobre nós mesmos diz respeito a como fomos vistos em nosso contexto familiar, e em especial, aos projetos que os pais idealizam para seus filhos. Muitas vezes a criança cresce com uma imagem distorcida sobre ela em função de expectativas depositadas nela pelos pais. Assim se expressam os autores:

Tais projetos são legítimos, desde que a pressão sobre os filhos não seja muito forte e leve em consideração seus desejos e capacidades. Do contrário, será uma tarefa impossível para a criança, que será vítima de sua incapacidade para realizar a grande visão que seus pais acariciavam para ela (André & Lelord, 2003, p. 21).

Segundo Perls (1977), quando o indivíduo tenta viver de acordo com idéias pré-concebidas, de como o mundo deveria ser, ele se afasta de seus próprios sentimentos e necessidades, distanciando-se de si mesmo, pois, "paradoxalmente, quanto mais a sociedade exige que o indivíduo corresponda aos seus conceitos e idéias, menos eficientemente ele consegue funcionar." (p.20). Esse olhar, porém, pode ser (re)significado, no social, a partir de novas experiências que lhe proporcionem sentir-se amado e aceito.

Os pais são a referência primeira de espelho para seus filhos, contribuindo, ou não, para que se sintam amados como são. Segundo Briggs (2002): "como pais, devemos ter sempre em mente que nossos reflexos têm um efeito poderoso sobre o avanço do senso de individualidade da criança” (p.18). Considerando esta afirmação, faz-se mister que os pais tenham amor por si mesmos.

Porém, os pais não são os únicos espelhos na vida dos seus filhos. Briggs (2002) enfatiza que

Qualquer pessoa que passe longos períodos com eles afeta a sua auto-imagem. Pouco importa se essa pessoa é parente, vizinho, babá ou empregada. Os professores contribuem muito para a imagem que a criança faz de si mesma, já que há um contato constante e também por exercerem acentuado poder sobre ela. Irmãos e irmãs são outros espelhos (p.18).

No social, as crianças podem ter o apoio de que precisam, resgatando então o potencial de amarem-se e aceitarem-se através do (re)conhecimento de si mesmas e da sua individualidade enquanto diferenças, e não desigualdades.

Melman (2001) traz como enfoque do seu trabalho a mudança dos padrões interativos no seio da família, sendo esta mudança decorrente da estratégia de ver a família como um sistema responsável por seu funcionamento e significados próprios. Dessa forma, a partir desse olhar poderá ser possível aos membros pertencentes a essa família o questionar-se acerca dos significados apreendidos no decorrer de sua formação. Para tal, faz necessária uma abertura subjetiva por parte dos familiares, para que sejam abordadas questões relativas a sua história de vida levando esse sistema a um processo progressivo de libertação e transformação. Schnitman (apud Melman, 2001) acrescenta:

Nessa perspectiva, o processo terapêutico passou a ser entendido como a construção de um espaço criativo, capaz de permitir aos membros da família interrogar-se sobre as diferentes versões de suas histórias de vida, saturadas de problemas e deficitárias — desafiando-as e, por vezes, desligando-se delas —, e trabalhar na geração e na recuperação de alternativas experimentadas como libertadoras e transformadoras (p.73-74).

As várias narrativas enredadas no contexto familiar tornam-se então um modo de expressão no qual se abre espaço para desconstrução e construção de novos sentidos. Essa experiência pode ser o início de um processo de transformação em que pais negros reconheçam e aceitem sua negritude a partir da ressignificação de fatos históricos e existenciais. Um novo olhar sobre si possibilita a estes oferecer uma educação pautada no reconhecimento de um ser: o ser negro. Dirce Bastos da Silva (In Franco, 1982), em reportagem referente à relação de pais e filhos na Revista Família Cristã, defende que o fato de sentir-se bem consigo mesma capacita a mãe a lidar com a criança. Conseqüentemente, contribui para um desenvolvimento afetivo saudável de seus filhos. Cardella (1994), na mesma linha, diz que: "Confirmar a si mesmo é reconhecer a própria existência, validar-se como um ser humano único, considerar as próprias potencialidades e compreender as limitações” (p. 23).

Melman (2001), por outro lado, evidencia que o horizonte não se esgota na experiência familiar: "Diferentes modos de abordar os problemas, diferentes protagonistas efetivando diferentes experiências convergem para a potencialidade dos atos criadores como veículo de mudança pessoal e de transformação da realidade externa por meio de processos coletivos" (p. 74). Dessa forma, acredita-se ser possível que as famílias sejam protagonistas de suas próprias histórias e, ainda que a História venha a se mostrar de algum modo depreciativa, que ela possa ser (re)vista de forma a ser escrita ou lida de forma diferente.

REFERÊNCIAS

ANDRÉ, C.; LELORD, F. Auto-estima: amar a si mesmo para conviver melhor com os outros. Rio de Janeiro: Record, 2003.

BRIGGS, D. C. A auto-estima do seu filho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

CARDELLA, B. H. P. A construção do psicoterapeuta: uma abordagem gestáltica. São Paulo: Summus, 2002.

CRITELLI, D. M. Analítica do sentido: uma aproximação e interpretação do real de orientação fenomenológica. São Paulo: Brasiliense, 2007.

FRANCO, S. (Julho de 1982). Diálogo dos pais com as crianças. In Revista Família Cristã. nÂș 559. (Ano 48): p. 28-31. São Paulo.

MELMAN, J. Família e doença mental: repensando a relação entre profissionais de saúde e familiares. São Paulo: Escrituras Editora, 2001.

PERLS, F. Isto é Gestalt. São Paulo: Summus, 1977.

SANTOS, H. A busca de um caminho para o Brasil: a trilha do ciclo vicioso. São Paulo: Ed. Senac, 2001.

VALENTE, A. L. E. F. Ser negro no Brasil hoje. São Paulo: Moderna, 1994.

Endereço para correspondência:

Paula Fernanda Fonsêca de Araújo Santos

E-mail:linhafonseca@hotmail.com

Sarah Batista Leite de Lima

E-mail:sarinha_lima@yahoo.com.br


Recebido em: 14 / 06/ 2008.
Aprovado em: 13 / 10/ 2008.