ARTIGO

Gestalt-Terapia: Uma incômoda versão de mundo e de relação

Gestalt Therapy: An uncomfortable version of world and relationship

 

Hermes Azevedo*

Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE), Boa Vista, Recife – PE.

Endereço para correspondência

 

A tentação de Santo Antônio (Salvador Dalí)

 


RESUMO

Este artigo pretende apresentar um olhar na relação entre terapeuta – cliente, dentro da proposta da Gestalt-terapia, tentando mergulhar na relação ‘de pessoa para pessoa' sem garantias ou "aprioris" e mesmo assim manter a terapêutica da relação. Construindo uma relação onde as ideologias ficam em segundo plano ao priorizar o cliente e suas dores no existir em relação. Refere-se também ao conflito vivido por qualquer investigador na relação que estabelece com o mundo o qual observa, interage, vive, constrói sua versão de realidade e se constrói quando se lança em direção ao seu "objeto" de estudo. Finalmente, pretende revisitar didaticamente algumas das vertentes que norteiam a prática da Gestalt-Terapia.

Palavras-Chave: Intencionalidade; Relação dialógica; Teoria organísmica; Teoria de campo; Auto-regulação; Gestalt-Terapia.


ABSTRACT

This article intends to present a look at the therapist - client relationship, within the Gestalt Therapy proposal, trying to dive into the 'person to person' relationship without guarantees or 'aprioris' and still maintain the therapy of the relationship. Building a relationship where ideologies take a back seat to prioritizing the client and their pains in existing in relationship. It also refers to the conflict experienced by any researcher in the relationship he establishes with the world, which observes, interacts, lives, builds his version of reality, and builds himself when he launches toward his "object" of study. Finally, it intends to didactically revisit some of the aspects that guide the practice of Gestalt Therapy.

Keywords: Intentionality; Dialogical relationship; Organismic theory; Field theory; Self-regulation; Gestalt Therapy.

 

"Reduzir uma coisa desconhecida a outra conhecida alivia, tranqüiliza e satisfaz o espírito, dando-nos ademais um sentimento de poder. O desconhecido leva consigo o perigo, a inquietude, o cuidado. (...) Uma explicação qualquer é preferível à falta de explicação. Como, na realidade trata-se apenas de se livrar de representações angustiosas, não se olha bem de perto. Cria-se então uma causa, dependente do sentimento do medo. O por que não solicita a indicação de uma causa por amor a ela, mas sim busca certa espécie de causa, uma causa que não precise ser verdadeira mas que tranqüilize, que livre do perigo, que alivie. A primeira conseqüência dessa necessidade é que toma como causa algo conhecido já e vivido, algo que está inscrito na memória. O novo, o imprevisto, o estranho está excluído das causas possíveis. Não se busca somente descobrir uma explicação da causa, mas sim se elege e se prefere uma classe particular de explicações, aquela que dissipa mais rapidamente e em maior número de casos a impressão do estranho, do novo, do imprevisto. Opta-se pelas explicações menos incômodas, mais comuns" (NIETZSCHE, 1984 - p.63-64).

Essas palavras revelam o medo profundo do ser humano em mergulhar no desconhecido, no imensurável, de abrir mão do poder e controle que o pré-saber, o previsível, supostamente garante sobre as coisas. Qualquer verdade é mais suportável do que o reconhecimento da solidão existencial e abandono proporcionado pelo absurdo que a vida nos impõe. Viver é trilhar em um caminho de incertezas, cujo sentido é o inevitável caminhar (revoltoso ou resignado) em direção à morte. Seguimos vivendo em direção ao fim, nos agarrando em verdades, muitas delas ilusórias, paliativos para dor de ter de existir em eterna dúvida. Ao mesmo tempo, as palavras acima, desvelam o processo de desencadeamento das verdades científicas cujas bases são fincadas neste terreno. O terreno do pavor da constatação de insegurança e solidão do indivíduo humano em sua trajetória pela vida.

Comprometido com as ideias de libertação, auto-gestão a partir da experiência e perspectivismo na relação do indivíduo com o mundo, o filósofo e/ou literário Friedrich Wilhelm Netzsche assombrou e ainda assombra sem comparações a visão de Psicologia humana e práticas psicoterapêuticas. Dentre elas a Gestalt-terapia, abordagem foco deste artigo.

De origem alemã, a palavra "Gestalt" surgiu no início do séc. XX, trazendo um conjunto de princípios que servem de base a um sistema religioso, político, filosófico, militar, pedagógico, entre outros; que ficou conhecida como as Leis da "Gestalt" e defende que, para se compreender as partes, é preciso, antes, se compreender o todo; pois, o "todo", é outro que não a soma das partes que o compõe (um bolo, uma orquestra sinfônica, um homem, uma mulher). Qualquer todo é maior do que a soma de suas partes. O importante para a Psicologia da "Gestalt", baseada no princípio da pregnância da forma, é perceber a forma por ela mesma, como "todos" estruturados, muito mais percebidos como resultados das interações de seus subsistemas do que como produto das partes que os compõem.

Esse todo ao qual a "Gestalt" se refere pretende indicar uma entidade concreta, singular e possuidora de características próprias, que existe como algo destacado, embora em relação a figura e fundo, que tem uma forma ou configuração como um de seus atributos. Uma "Gestalt" é produto de uma organização, e essa organização é o processo que leva a uma "Gestalt". Dizer que um processo, ou o produto de um processo é uma "Gestalt" significa dizer que não pode ser explicado pelo mero caos, uma mera combinação cega de causas essencialmente desconexas, mas que sua essência se revela em sua existência.

Influenciada diretamente pelos conceitos da Psicologia da "Gestalt", a Gestalt-terapia caracteriza-se por ser uma abordagem inacabada por vocação e essência, incentiva a formação flexível de "gestalten" sucessivas, adaptadas à relação sempre flutuante do organismo com o meio, num ajustamento criativo permanente, em busca da homeostase. Assim sendo, a Gestalt-terapia poderia ser definida como a arte da formação da boa forma.

A Gestalt-terapia foi criada por Frederick Perls tendo como cofundadora Laura Posner Perls (YONTEF, 1998); sua esposa e importante colaboradora. Ao imigrarem para a América nessa mesma época, o casal Perls integra-se a um grupo de intelectuais inconformados com o sistema político e ideológico vigente, entre eles o anarquista Paul Goodman, a Isadore From e Paul Weisz.

Influenciada pelo anarquismo, a Gestalt-terapia busca promover um "campo interacional" entre terapeuta e cliente, livre do poder autoritário e subjugo das intenções ideológicas repassadas através das "verdades" das ciências positivistas, comparativas, generalistas ou pré-julgadoras do comportamento humano. O Gestalt-terapeuta não se comportará como um servil representante dessa forma de autoritarismo, mas, antes, buscará estabelecer uma atitude dialógica, cuja finalidade principal é a de permitir ao cliente sua fluência ou emergência de figuras, num ambiente o mais livre e seguro possível ao seu desenvolvimento pessoal, e facilitar o seu encontro com a autenticidade da sua existência, de forma a assumi-la e afirmá-la em seu mundo; usar seu próprio sistema de crenças e valores no ato de escolher, trocando o apoio externo pelo auto-apoio, usando-se como referência, sem prescindir do outro no exercício de sua liberdade. Nesse tipo de Abordagem, o centro do processo passa a ser o ser – com, e não a perturbação mental ou a psicopatologia do cliente. Quando presentes, seus "distúrbios" são encarados como resultados de dificuldades ou fracassos do sistema pessoa-mundo, dessa interação que se apresenta pela dificuldade do cliente em fazer escolhas auto-reguladoras e significativas, geradoras do sentimento de prazer e felicidade, fundados em suas necessidades autênticas de resolver problemas, fechar "gestalten", estabilizar e promover o equilíbrio organísmico no mundo.

 

TEORIA DA PERSONALIDADE DA GESTALT-TERAPIA

Ninguém é auto-suficiente; o indivíduo só pode existir num campo circundante. É inevitavelmente, a cada momento, parte de algum campo. Seu comportamento é uma função do campo total, que inclui a ambos: Ele e seu meio. (Perls, 1998 p.31).

"A teoria da personalidade da Gestalt-terapia desenvolveu-se primeiramente, a partir da experiência clínica. O foco tem sido uma teoria de personalidade que dá suporte à nossa tarefa como psicoterapeutas, ao invés de uma teoria geral de personalidade. As construções teóricas da Gestalt-terapia são teorias de campo, e não genéticas, fenomenológicas, em vez de conceituais" (YONTEF, 1998, p. 33).

A Gestalt-terapia evita propor uma teoria da personalidade "fechada", acabada e que se aplique a todos os seres humanos. Utiliza-se de parte de cada teoria como fonte inspiradora, são igualmente válidas. Já que são todas elas, teorias propostas por seres humanos para definirem-se.

Nessa abordagem, não se constroem verdades destruindo outras. Busca-se integrá-las num todo coerente. Aliás, a coerência desta Abordagem está justamente no ponto de interseção das diversas teorias de personalidade. Compõe em seu bojo teorias aparentemente heterogêneas, mas que se fundem num todo coerente na prática do Gestalt-terapêuta. Busca-se a integração dos opostos – também chamados de polaridades. Segundo Yontef, 1998: "A auto regulação organísmica leva à integração das partes umas com as outras, numa totalidade que contém as partes. O campo é frequentemente diferenciado em ‘polaridades' – partes que são opostas, que se complementam ou explicam" (p. 34). Se destruímos uma polaridade, seu oposto complementar também desaparecerá.

Na prática, o Gestalt-terapeuta possibilita o fluir, na relação terapeuta-cliente, os temas que emergem no "setting" terapêutico, não generalizando pessoas, nem  perdendo de vista o compromisso e o respeito da abordagem para com a forma singular com que cada ser humano se define, se constrói, constrói seu próprio mundo de significados e flui pela vida.

Em qualquer situação, a Gestalt-terapia recomenda aos seus praticantes intervir baseados no conceito de liberdade intencional de escolha da consciência, para selecionar aquilo que acha importante em seu projeto de realizar uma essência e se definir nessas escolhas, buscará não se utilizar de quaisquer instrumentos ou modelos normatizadores, comparativistas e apriorísticos do comportamento humano.

Sem deixar de priorizar a forma como cada indivíduo escolhe e define sua própria essência, a Gestalt-terapia baseia-se numa visão sistêmica do ser humano. Propõe que qualquer sistema aberto necessita do meio externo para se auto-regular e sobreviver, dentre eles o indivíduo humano, que nasce frágil e incapaz de se cuidar sozinho. Até as necessidades essenciais à manutenção de sua própria vida são providas de fora, por algum cuidador externo. Acredita que, na perspectiva do bebê, seu cuidador precisa ser convencido a cumprir o papel de responsável e preservar sua vida (a do próprio bebê). A fim de sentir-se saciado e conseguir o que quer de seus cuidadores, o bebê humano se utilizará de jogos de manipulação, testará seus responsáveis utilizando-se das mais variadas técnicas, até encontrar a melhor forma de atingir seus objetivos (a que mais rapidamente e melhor saciará sua necessidade).

Concebido desta maneira, cuidadores e fatos da história do indivíduo deixam de ser os culpados por seus fracassos e passam a ser vistos como seus primeiros depositários, os que mais comumente serão utilizados intencionalmente como vitimadores e impedidores do crescimento do sujeito quando adulto.

Evidentemente que as técnicas de manipulação do outro pelo bebê não se apresentarão tão eficazes, pois ele nasce inserido num sistema pré-existente a si próprio, que ele não escolheu e com um lugar já determinado pelo outro para ele ocupar. Desse sistema receberá uma espécie de "script", um personagem com um papel a ser desempenhado que ele resistirá atuar mais ou menos fielmente. Esse "script" é passado por meio de mensagens implícitas e explícitas de que, para ser saciado em suas necessidades fisiológicas e confirmado pelo amor, segurança e aceitação, precisará primeiro assumir seu lugar no sistema pré-determinado pelos seus precedentes. Ele deve atuar este "script" o mais plenamente possível, não frustrar seus cuidadores, ou gerará tensões, retaliações e rejeições no e do sistema familiar. O produto da tensão gerada diante da resistência do indivíduo em atuar o personagem pré-determinado pelo sistema familiar (ou similar) irá proporcionar experiências únicas que influenciarão profundamente sua visão de mundo, a forma como estabelecerá trocas com o ambiente e o sistema de atitudes que adotará nas relações interpessoais futuras (o "como" do cliente).

Esta experiência de ser-com-os-outros desde muito cedo vai possibilitar ao indivíduo humano sua sobrevivência ou morte, e a síntese ou produto dessas relações é o que chamamos de "Self" dentro do conceito de funcionamento saudável na Gestalt-terapia, compreendendo assim o ajustamento criativo.

Segundo Yontef:

"Uma pessoa que se autorregula organismicamente assume a responsabilidade do que está acontecendo com o 'self' e o que está sendo feito pelos outros para o 'self'. A pessoa realiza trocas com o ambiente, mas o suporte básico para a regulação da própria existência é o 'self'. Quando o indivíduo não sabe disso, o suporte externo, em vez de ser a fonte de nutrição do 'self', acaba substituindo o autossuporte" (YONTEF, 1998, p.36).

O "Self" é individual e solitário, sua história, seu percurso de vida e seu mundo de significados é intransferível, somente parcialmente compartilhado, mas o êxito ou fracasso desse "self" vai depender das habilidades de trocas que estabelece com o meio externo e do organismo social ao qual pertence. Seu destino individual está profundamente ligado ao destino da comunidade da qual faz parte (assim como o destino de um coração, que depende do equilíbrio das relações entre os demais órgãos internos do corpo no qual vive e bate, e das trocas que esse corpo estabelece com o meio externo). O eu realiza-se apenas como possibilidade, e os fatores sociais serão tão indissociáveis de sua singularidade que sequer pode destacá-los de sua experiência de si - mesmo. O eu e seu mundo formam uma unidade simbiótica inseparável onde  a pessoa perde a capacidade de diferenciar o que é seu do que é do outro, passando a diluir-se no meio; se constrói mutua e dialeticamente num eterno ciclo de ingestão, digestão e integração1 ao "self", dos fenômenos e variáveis que se inserem em seu campo perceptual a partir das tensões geradas pelas "gestalten" abertas e ofertas do meio.

Com ressalvas e sem pretender propor um mesmo modelo para todos, o indivíduo é - nessa abordagem - visto como um sistema aberto, inserido sempre em outros sistemas maiores, em eterno intercâmbio e interdependência ecológica entre os sistemas, formando o campo organismo / ambiente. A homeostase organísmica se dá por meio de ajustamentos criativos, abertura e fechamento de "gestalten" - dominâncias de necessidades da pessoa originárias de qualquer âmbito ou dimensão (afetiva-e-cognitiva-e-fisiológica-e-simbólica-e-etc) que tornam-se figuras de "awareness" cujo objetivo é o de restabelecer o funcionamento ótimo do organismo.

Devido ao fato de dependência do meio para sua nutrição e crescimento, as figuras emergirão no consciente do indivíduo mobilizando suas forças organísmicas a fim de obter êxito e se auto-regular através das funções de contato (instrumentos de ligação entre o organismo e o meio) responsável pela identificação da necessidade do organismo, avaliação dos recursos do meio e seleção daquilo que supostamente lhe restabelecerá o equilíbrio.

Baseada na visão acima, as intervenções terapêuticas privilegiarão a eco-consciência (eu-no-mundo), a eco-compreensão (meu lugar no mundo) e a eco-determinação (reverberação ou conseqüências de minhas escolhas e atos) no momento da tomada de atitude, e no contexto trazido ao consultório pelo cliente.

O encontro existencial entre terapeuta e cliente cria um "campo-de-eventos" (um ecossistema) onde os fenômenos ocorrem e devem ser trazidos à compreensão do próprio campo e das consciências nele contidas (fenômeno que poderia ser denominado homeostase do campo).

Sobre o existencialismo, Ginger (1987, p.36) observa que:

"Pode ser considerado 'existencial' tudo que diz respeito à forma como o homem experimenta sua existência, a assume, a orienta, a dirige. A noção de responsabilidade de cada pessoa que participa ativamente da construção de seu projeto existencial em sua relativa liberdade".

Próximo da Fenomenologia, a Gestalt-terapia fundamenta-se no Existencialismo principalmente porque, assim como Heidegger (1989), concebe o homem como um ser que não possui uma essência determinada a "priori", que nunca está pronto, mas que seu ser está sempre em jogo no seu existir, nas suas escolhas e atos. Além do mais, a Gestalt-Terapia absorveu o que a maioria das terapias existenciais considera importante: o diálogo existencial interpessoal ou busca pela desafiadora horizontalização do poder autoritário (representado por alguém que sabe mais do cliente do que ele mesmo) na relação terapeuta – cliente, sem esquecer das diferentes responsabilidades e o objetivo da relação terapêutica.

A ética da relação terapêutica em Gestalt-terapia e o termômetro dessa relação baseia-se unicamente na conscientização das diferentes responsabilidades dos envolvidos nela. Por ser existencial, não pode ser imposta de fora dessa e deve ser sustentada pela ação livre e consciente do terapeuta e seu(s) cliente(s). Sabendo-se que só pode ser considerado livre um ato intencional, contextualizado sistemicamente e assumido; ou será considerado um ato irresponsável, covarde, não – anárquico, fruto da utilização indevida e execrável do poder autoritário conferido apenas por um diploma. Desprovido de dignidade e consciência, reprodutor dos mesmos poderes autoritários que adoeceram e confundiram terapeuta e cliente no ato de reconhecer limites, fazer escolhas e auto-regular-se.

 

A FENOMENOLOGIA NA GESTALT-TERAPIA

O terapeuta utilizar de sua própria percepção para trabalhar com o cliente é algo muito rico. Mas, quando não são tomados os cuidados necessários - quanto ao terapeuta ter um prévio trabalho psicoterápico profundo e saber se diferenciar do cliente - podem ocorrer profundos erros de avaliação sobre o que é a demanda que está óbvia para ser trabalhada – a do terapeuta ou do cliente. Penso ser um problema que ocorre com todas as abordagens, pois implica em um profundo senso de diferenciação entre o ‘eu' e o ‘outro' (RODRIGUES, 2000).

O Gestalt-terapeuta busca intervir principalmente descrevendo o que percebe em sua relação com o cliente, o que lhe é colocado diante dos olhos, exposto ao seu olhar, mas intervém também a partir do que se torna figura em sua própria consciência a partir de sua própria subjetividade. Utiliza-se como instrumento, e quer saber o sentido que faz para a relação aquilo que percebe. Embora saiba que descrever, nessa abordagem, é mais importante do que explicar e relatar o que percebe mais importante do que nomear para o cliente, o Gestalt-terapeuta tem consciência de que sua percepção estará sempre atrelada ao seu próprio mundo de significados.

O como ou "modus operandi" do cliente precede e é mais enfatizado do que o "por que", por se acreditar que a atitude de questionar o porquê do cliente insere a ideia de erro, obriga-o a migrar para um tempo e lugar cindidos, a fim de se justificar e desvalorizar o que está acontecendo no presente, enfraquecer seu poder de mudança, acusar os outros pelas suas desgraças, além de desencadear o que Perls chamou de "dissociação livre" (lembrança de fatos que não ocorreram e episódios fantásticos, cada vez melhor elaborados em sua história contada, cujo objetivo é de apenas gratificar o terapeuta e aprisionar os dois num círculo lógico, justificável e inescapável da dor: "Sou assim porque.......e esses são os meus motivos para continuar assim, a culpa não é minha mas de minha história". Cada vez mais rebuscada e colorida). Relevante para o criador da Gestalt-terapia era o processo que estava se desenvolvendo no aqui-e-agora do cliente, sua versão intencional, sua realidade e suas potencialidades.

Nessa perspectiva, tempo presente é ao mesmo tempo versão intencional do passado, versão intencional do presente vivido e projeto intencional do futuro, tudo no aqui-e-agora do cliente. Nesse momento estão suas experiências, seu "self", seus projetos. O passado está aqui-e-agora, atualizado nele, em sua fala, em sua respiração, em seus movimentos e na sua expressão. Sua versão do passado, seu presente intencional e projetos futuros são reestruturados e ressignificados em cada instante do seu existir e dos contatos no aqui e agora que estabelece com o outro. Passado, presente e futuro não são tempos estanques, mudam de acordo com a intencionalidade da consciência de seu criador, estão muito mais vinculados à intencionalidade desse do que causadores de traumas, recalques, fobias. Grande parte dos psicoterapeutas já testemunhou o quanto a mudança de perspectiva do cliente em relação a si mesmo, a pessoas de sua rede afetiva e fatos significativos no presente provocam a imediata mudança de sua versão do passado e projetos futuros trazidos até então à relação terapêutica como verdades inabaláveis.

Essa mudança de perspectiva ou ampliação da consciência em relação aos fenômenos antes considerados estanques pelo cliente provocam mudanças significativas em sua atitude perante a vida e perante os outros. O cliente, Geralmente passa de um discurso impotente e auto-vitimizador, enraizado e comprometido com pessoas e episódios trágicos pinçados intencionalmente de seu passado "forjado" (ou versão do presente vivido), para um discurso realístico em relação ao seu poder de fazer escolhas e se dirigir no tempo presente, mesmo consciente de suas tragédias pessoais e das dificuldades de ter de assumi-las em sua história de vida, estejam onde estiverem localizadas no tempo. Afinal, o que de fato mudou foi a relação do cliente com ele mesmo e seu compromisso com seu aqui-e-agora. Ele sabe que só carrega no tempo presente aquilo que lhe convém.

Para a Gestalt-terapia, sem a consciência não há mundo e a intencionalidade é o que dá significado aos fenômenos da consciência. A subjetividade vai se constituir a partir do que a consciência do sujeito (que é ele mesmo) percebe como fenômeno e o significado que ele dá, inclusive seu si - mesmo, sua história, seu momento presente, seus projetos. A história que ele conta é a história que intencionalmente ele quer contar e a história ouvida pelo terapeuta é a história que intencionalmente ele quer ouvir. A intencionalidade aqui tratada se refere às tendências da consciência em se dirigir para um ou outro objeto, priorizando o que considera relevante, definido a partir de suas "gestalten" abertas ou necessidades inacabadas, e não à utilização da má-fé na construção de si mesma e manipulação do meio.

A grande novidade da fenomenologia na Gestalt-terapia, herdada da Psicologia da "Gestalt" e reforçada pela Física Quântica, é a idéia da inescapável influência da intencionalidade do Gestalt-terapeuta em suas intervenções. Ele sabe que suas funções cognitivas e afetivas estão e precisam estar funcionando para perceber o mundo e que sua percepção é intencional. Naturalmente - explicitamente ou não - a partir de seu inescapável narcisismo, julga o cliente, interpreta-o, coloca-se perante as falas e atitudes dele, polariza-se diante da temática trazida (afeta e é afetado pelo cliente e seus temas). Inevitavelmente, tenciona intencionalmente o campo, podendo muitas vezes utilizar-se dos fenômenos que se presentificam em sua consciência a serviço da relação (Lembranças de sua própria história de vida, trechos de música, imagens, contos infantis, etc). Quanto mais disponível à relação estiver (esvaziado), mais poderá utilizar-se dos fenômenos emergentes em sua própria consciência como instrumento de intervenção. Afinal, foram despertados a partir da relação com a pessoa do cliente e suas temáticas. Posto dessa forma, o cliente é co-responsável pelo que acontece com o terapeuta e vice-versa.

Enquanto alguém que percebe, o Gestalt-terapeuta também se constitui enquanto intencionalidade na relação, e só intervém naquilo que se torna fenômeno de sua consciência a partir de sua intencionalidade. Ele sabe que não existe nada de humano totalmente alheio a ele, e que é portador de sua própria versão em relação à temática trazida ao espaço terapêutico pelo seu cliente. É claro, como qualquer ser humano, acredita muito mais em sua própria versão do que em qualquer outra... Eis o perigo!.... e também o grande desafio: saber que sua versão de mundo só é útil e válida para si mesmo, que o outro tem o direito à sua própria realidade. Podemos até compartilhar nossa perspectiva de mundo com o cliente, mas é só. A novidade, como citado acima, alicerçada pelas pesquisas da Psicologia da "Gestalt" e da Física Quântica2, é a interferência da subjetividade do psicoterapeuta no campo, e a permissão para afirmar-se como portador de uma perspectiva diferente e própria quanto à temática trazida à relação pelo cliente, desde que a terapêutica da relação não seja secundarizada.

Para a Gestalt-terapia, como afirmado anteriormente, a essência da relação não está nas verdades científicas vigentes a respeito dos fenômenos humanos, nem centrada apenas nos fenômenos do cliente, pois nem o cliente, nem suas temáticas existem alheios à consciência. Não existe cliente se não existe terapeuta para percebê-lo, e o cliente percebido pelo terapeuta é sempre a própria versão do cliente que se lhe apresenta à consciência do terapeuta, assim como a imagem da namorada projetada na retina do olho de seu namorado não é a mesma interpretada pelo cérebro dele. O Gestalt-terapêuta, portanto, interessa-se pela unidade indissociável do "campo fenomenal" criado por si mesmo e pelo cliente (um-para-o-outro) - organizado pelas necessidades e papéis de cada um -  pelos fenômenos que ocorrem dentro desse campo e todas as forças e vetores presentes do qual ele mesmo (terapeuta) é parte importante. Aceita e observa  a fluência das figuras que emergem nessa relação, consciente da influência de sua própria intencionalidade no ato de perceber e intervir; sabe que não existe "o que é meu e o que é do cliente" pois, neste sentido, tudo é da relação, emergiu da mutualidade entre os envolvidos. Se assim não fosse, qualquer terapeuta desencadearia o mesmo conteúdo, velocidade do processo e grau de aprofundamento num mesmo cliente e o terapeuta seria o mesmo para diferentes clientes ou para o mesmo cliente em diferentes situações. No entanto, bem sabemos a diferença que faz cada terapeuta em diferentes momentos e o "setting" que disponibiliza para cada cliente.

A fenomenologia da Gestalt-Terapia implica reconhecimento profundo de que tudo é relação, e só se define a partir dessa, das tensões e vetores invisíveis produzidos pelas intencionalidades das consciências envolvidas num determinado campo. Ao escutar o cliente e seus fenômenos, o Gestalt-terapeuta – consciente de sua própria singularidade - não busca negar ou afirmar seus valores, pré-juízos ou opiniões; procura estar aberto ao mundo do cliente, movendo-se numa dialética entre a pré compreensão e a compreensão do momento, construindo verdades, usando-se como instrumento de intervenção. Sabe que está, assim como seu cliente, aprisionado em seu mundo narcísico de saberes, em seu próprio mundo de significados, mas consciente de que só por meio do reconhecimento desse mundo, enquanto diferente do seu, pode amenizar as dores dessa prisão onde ambos vivem. Buscará o diálogo na relação que, se bem-sucedida, a vivência de transcendência e libertação acontecerá, muitas vezes em ambos.

A verdade vivida no campo da psicoterapia deve ser encarada como verdade estabelecida dentro das condições humanas da subjetividade, representação, do discurso, da linguagem, dos sentimentos, contextual e criada na relação por duas pessoas existencialmente aprisionadas na mesma condição (humana), não devendo ser tratada como verdade absoluta. Aliás, toda verdade em Gestalt-terapia é contextual e relativa à perspectiva e intencionalidade da consciência que a revela. Precisamos lembrar que terapeuta e cliente estão sendo confrontados o tempo todo, um pelo outro e os dois pelo momento histórico vivido por ambos, inseridos em uma cultura. As verdades construídas são produtos de um mundo vivido, resultado de experiências do encontro entre duas pessoas aprisionadas no mesmo contexto histórico, mas com versões e perspectivas diferentes para os mesmos fenômenos, resultado da experiência do mundo em eterno dinamismo de cada um.

A Psicoterapia, nesse contexto, deve levar à percepção do cliente sobre si mesmo como um ser de e em relação o tempo todo, responsável e construtor do seu mundo e do mundo a sua volta, comprometido com a verdade do momento. Querendo ou não, profundamente ligado com os outros mundos que o cercam, com a sociedade que constrói e vive, em que base ética escolhe e constrói sua existência.

É evidente que a Gestalt-terapia não é uma terapia de enquadramento, sequer deve ser chamada de Psicoterapia no sentido curativo do termo. É mais o testemunho de um processo de ajustamento criativo, do devir, da auto-realização, auto-afirmação da diferença e da versão individual de mundo partilhado de uma pessoa (Cliente) por outra (Terapeuta), a partir da busca de compreensão da intencionalidade de sua própria conscientização, de seu sentido de mundo e da relação "awareness". Para tanto, o indicativo de crescimento, é a conscientização e empoderamento pelo cliente de seus próprios recursos, dons e talentos especiais, que só ele os possui....sua versão individual de mundo, aceitação e responsabilidade pelo que percebe, suas escolhas no  mundo.

 

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NOTAS

* Hermes Azevedo - Psicólogo Clínico, Gestalt-terapeuta, professor na Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE), supervisor de Estágio em Psicologia Clínica na Abordagem gestáltica; Especialista em Metodologia do Ensino Superior para Área da Saúde (UPE/PE); Mestre em Psicologia Social e da Personalidade (PUCRS/RS).
1 A referência aos processos fisiológicos é proposital e inevitável em Gestalt-terapia. Compreende-se que os processos mentais se dão de forma similar aos processos biológicos do organismo.
2 Uma das mais importantes constatações da Física Quântica se refere à influência da subjetividade ou consciência do pesquisador nos resultados de sua pesquisa levando à intuição de que o mundo que construímos é o mundo em que acreditamos.

 

Endereço para correspondência
Hermes Azevedo
Endereço eletrônico:hermesazevedo@terra.com.br

 

Recebido em: 07/07/2008
Aprovado em: 07/07/2009