ARTIGO

Considerações acerca do ajustamento egotista.

Considerations regarding the egotistic adjustment.

Cinthia D. Struchiner

cinthiastruchiner@dialogico.com.br


RESUMO

Neste artigo, o conceito de egotismo, freqüentemente negligenciado, é abordado à luz da literatura gestáltica, sendo caracterizadas as duas dimensões em que podem se apresentar quaisquer mecanismos de interrupção de contato, a saber: uma dimensão saudável, funcional e transitória, e uma dimensão não-saudável, disfuncional e cristalizada. Um caso clínico representativo desse tipo de ajustamento neurótico é apresentado e a posição do terapeuta na relação com um cliente de estilo predominantemente egotista é tematizada.

Palavras-chave: mecanismos de evitação de contato; egotismo; gestalt-terapia.



ABSTRACT

In this article the concept of egotism, frequently neglected, is regarded under the light of gestaltic literature, and both dimensions in which any mechanism of interruption of contact can appear are characterized: the healthy, functional and transitory dimension, and the unhealthy, disfunctional and stuck dimension. A clinical case representative of this kind of neurotic adjustment is presented and the therapist’s position in the relation with an egotistic client is also regarded.

Keywords: interruptions of contact; egotism; gestalt-therapy.


Todos os mecanismos de evitação de contato são estados temporários adequados do processo de formação e destruição de figuras, na fronteira de contato. Apenas quando perdem seu caráter temporário e sua função espontânea, cristalizando-se como estruturas rígidas, é que podemos falar deles como mecanismos disfuncionais.

O egotismo e a confluência se distinguem das outras formas de evitação de contato por uma característica comum: eles se referem ao “estado” da fronteira (embora designem situações antagônicas) (1). No caso da confluência, a fronteira é tão tênue que a pessoa se “mistura” ao ambiente; enquanto no caso do egotismo, ao contrário, a fronteira de contato se assemelha mais a uma barreira, onde a troca entre o organismo e o meio fica bastante limitada.

O egotismo é, sem dúvida, dos mecanismos de evitação de contato o menos explorado na literatura gestáltica. Robine (2006, p.131) sugere que este conceito, introduzido por Goodman, não tenha sido bem aceito pelos gestalt-terapeutas, sem, no entanto, se alongar sobre os possíveis motivos para tal rejeição. Vejamos, de forma resumida, o que nos dizem Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) a respeito do egotismo. O egotismo se refere ao momento do contato final: depois que a necessidade é satisfeita, é necessário um relaxamento, um momento de retirada, onde é possível a assimilação da experiência. Mas neste momento, há uma interrupção nesse processo de renúncia ao controle e à vigilância, um impedimento de se abandonar totalmente à experiência. Trata-se de uma parada natural, “uma redução da espontaneidade” em favor de uma “introspecção e circunspecção deliberadas adicionais para se assegurar de que as possibilidades do fundo estão realmente exauridas – não há ameaça de perigo ou surpresa – antes de se comprometer” (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997, p. 257).

Tomemos um exemplo. Imagine que eu quero muito comprar um carro. Dedico grande parte do meu tempo e energia a pesquisar preços, escolher o modelo, a cor, a ponderar se é melhor comprar um carro zero quilômetro ou usado, de que forma eu quero ou posso pagá-lo etc. E imagine que finalmente eu chego a uma escolha. É natural que neste momento, antes do contato final, antes de me comprometer, relaxar e usufruir a minha escolha, eu dê uma parada e me volte para mim mesma (awareness reflexiva) e me pergunte mais uma (última) vez se realmente esta é a melhor escolha. O egotismo é um momento necessário de preocupação com as próprias fronteiras antes de se comprometer com a assimilação e o crescimento. Segundo Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997, p.257), “o egotismo normal é hesitante, cético, arredio, obtuso, mas se compromete” (grifo nosso). Ou seja, para que o contato final ocorra, a espontaneidade deve poder suceder à deliberação: é preciso se permitir relaxar o controle, se soltar e ter a coragem de se comprometer. Mas, segundo Robine (2006), o problema desse controle é quando ele não é controlado (ver p.131).

Retomando o exemplo da compra do carro, imagine então que eu, no momento da “parada” (quando me questiono se a escolha que fiz de comprar um carro, e de comprar esse carro e não outro, é a mais satisfatória para mim), me enredo nas minhas próprias racionalizações e não avanço. Perco a capacidade de abrir mão do controle sobre a experiência e de me comprometer com a decisão de comprar – ou de não comprar – o carro. Quando há uma fixação nesse processo, nesse comportamento controlado e deliberado, pode-se falar de egotismo enquanto um mecanismo neurótico, passando a existir uma espécie de “confluência com a awareness deliberada” (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997, p.257). A pessoa se isola do ambiente para tentar se proteger das surpresas, do incontrolável, em uma palavra: dos riscos. O ambiente deixa de ser uma fonte de nutrição e trocas possíveis e passa a ser algo a ser dominado: o foco do egotista não é mais contatar para crescer, mas conhecer para controlar. A pessoa se coloca numa posição do tipo: “nada que venha do ambiente me serve”, e vive constantemente isolada: não existe mais um Tu com o qual se encontrar, e suas relações se estabelecem na base do “Eu-Isso”, descrito por Martin Buber. Como o processo do self é obstruído, o contato não finaliza e não se obtém a satisfação no meio, mas em si mesmo. A satisfação possível do estilo egotista, portanto, está na vaidade, na autonomia e na auto-suficiência.

No verbete “Egotismo” do “Dicionário de Gestalt-Terapia (Gestaltês)”, a autora afirma que Robine (2006) “aponta para um paradoxo quando Goodman refere-se ao egotismo como perdas das funções do ego e, no entanto, define-o como um ‘excesso’ de ego” (D’Acry, 2007, p. 81). Uma leitura mais acurada dessa passagem no texto de Robine revela, no entanto, que o autor não “aponta para um paradoxo”; ele na realidade alerta que o conceito de egotismo “pode [grifo nosso] parecer um pouco paradoxal” (Robine, 2006, p.131), levantando a questão sobre se, afinal, trata-se de “excesso ou perda das funções de ego” (id.). Mas ele continua logo adiante, mostrando que o paradoxo é apenas aparente, ao explicar que o que acontece no egotismo é que “o controle não é controlado”. Diz ele: “Excesso de ego envolvido nessa fase do self, certamente, mas sem que o ego possa optar por terminar seu controle. O controle está fora de controle. [Portanto,] Excesso e perda da função ego” (Robine, 2006, p. 131-2).

Não obstante a possibilidade de se fixar como um mecanismo neurótico, o egotismo é saudável e mesmo “indispensável em todo processo de complexidade elaborada e de maturação prolongada” (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997 p.257), basta pensarmos no próprio desenvolvimento infantil. Por volta dos 2-3 anos de idade, a criança passa por um período de individuação que pode ser visto como um egotismo primário, com um exagero das características de onipotência e auto-referência, mas esta é uma etapa fundamental para o reconhecimento do EU separado do OUTRO. É neste período que se criam as bases para a aquisição do auto-suporte, da autoconfiança e do sentimento de auto-estima. De forma semelhante, é importante também, em determinada fase do processo terapêutico, que o cliente desacostumado a discriminar suas próprias necessidades e deliberar em favor de satisfazê-las, possa estar mais centrado em si mesmo e escolher de forma mais consciente o que quer e o que não quer absorver em suas trocas com o meio, inclusive em sua relação com o terapeuta. Portanto, o egotismo pode ser uma etapa necessária e até desejável no processo terapêutico, uma etapa de fortalecimento do auto-suporte, em direção a um hetero-suporte saudável.

Quando um cliente que se ajusta de forma predominantemente egotista chega à clínica, encontramos alguém que se perde em abstrações infindáveis, explicações e argumentos muito bem construídos que abarcam todos os assuntos, num controle “perfeito” de tudo (Granzotto e Granzotto, 2004). O cliente está fixado no “falar sobre”, construindo um mundo inteiro fictício (racionalizado) que substitui o contato verdadeiro (vivo). Assim, o cliente de estilo egotista não traz para o consultório experiências, traz “problemas” – já equacionados – uma vez que não “vive” sua vida: “pensa” sobre ela. Esta postura poderia nos levar a questionar para que, afinal, ele precisa de nós, terapeutas. O que nos permite escapar desse questionamento é a nossa forma gestáltica de olhar o campo: não vemos o indivíduo como um problema a ser resolvido, não assumimos o papel de quem conhece métodos ou técnicas milagrosas. Uma postura onipotente na relação com esse cliente poderia estabelecer um modelo de competição que acabaria por reforçar o isolamento dele, ou, por outro lado, nos faria assumir, no final do “embate”, o papel que ele reserva para todas as pessoas em sua vida: o de mero coadjuvante que na verdade não tem nada de “útil” para lhe oferecer. Mas o nosso olhar gestáltico sobre o cliente nos permite estabelecer a relação sobre outros pilares: sabemos que o nosso objetivo não é resolver problemas, mas sim buscar a possibilidade de ajudá-lo a experienciar “como” ele vive a sua vida – e não “por que” o faz desta ou daquela maneira – e quais são as conseqüências disso para ele.

Letícia, uma adolescente de 15 anos, costuma trazer suas questões para terapia da seguinte maneira: “O meu problema com relação ao fulano não tem jeito. Olha só: eu tenho duas opções: se eu fizer isso (...) ele vai dizer isso (...) e aí eu vou ficar chateada. Se eu fizer aquilo (...), ele vai se sentir assim (...) e não vai mais querer falar comigo. Conclusão: não tem jeito!”. Qualquer “sugestão” que as pessoas ao seu redor costumam lhe oferecer é sempre recebida com argumentos do tipo: “não, eu já pensei nisso, e sei que não daria certo porque (... blá, blá, blá...)”, ou: “não, você está dizendo isso porque não conhece ele como eu conheço” e outras tantas formas possíveis de mostrar que nada que venha do outro pode ser de qualquer utilidade para ela. É fácil perceber o que acontece nas suas relações. Algo característico da fronteira de contato desaparece: justamente o intercâmbio organismo/meio, que faz com que o contato se processe. O olhar do outro, a voz do outro, a opinião do outro são bloqueados; o foco permanece apenas sobre as suas próprias ações, pensamentos e sentimentos, de forma que ela se fixa na posição de sustentar suas “razões” acima que qualquer coisa.

Essa cliente tem uma história de isolamento e desconfiança em relação aos outros desde a infância. Ainda criança, ela chega ao consultório com a queixa (dos pais) de que ela não consegue se relacionar com as outras crianças na escola porque tem muito ciúme das suas coisas, não empresta nada para ninguém, não aceita as opiniões dos outros e é muito “fechada”. Esse termo se referia, conforme eu verifiquei com os pais, ao fato de ela não ter amigos (o que pode ser entendido como isolamento), e a uma timidez excessiva, que fazia com que muitas pessoas jamais a tivessem visto sorrindo. Ao longo de quase dois anos de terapia, conseguimos construir uma relação de muitas trocas significativas, e ela chegou a flexibilizar alguns de seus padrões de relacionamento com os colegas, embora, na realidade, não se importasse muito com o isolamento. Quando havia alguma discordância com algum amigo, ela dizia freqüentemente: “Não faz mal: quem não me aceita como eu sou não serve para ser meu amigo”. Nessa época, sua grande satisfação vinha através da sua competência intelectual, sempre destacada na turma. Ela era uma menina bem gordinha, meio “emburrada”, incapaz de dar “bom dia”, ou mesmo um leve sorriso ao cruzar com alguém (conhecido ou desconhecido) pela rua. Quando a mãe dizia que ela podia parecer mal-educada, ela sempre respondia que não tinha que sorrir para agradar ninguém e que os outros que a aceitassem como ela era.

Aos 11 anos, Letícia abandonou a terapia. Embora os pais tenham alegado dificuldades financeiras, estava claro que ela tinha atingido um grau de equilíbrio que lhe era satisfatório naquele momento. Aos 14 anos ela retorna, com uma configuração diferente: a chegada da adolescência havia trazido novas necessidades e a competência intelectual já não lhe dava mais satisfação suficiente. Se antes ela não se importava com a precariedade das suas relações de amizade, agora ela se importava – e muito – com a rejeição dos meninos. Determinada, ela perdeu mais de 10 quilos e passou a ser também, além de a mais inteligente, a menina mais bonita da turma. Ainda não era suficiente. Ela começou exercitar seu poder de sedução, estabelecendo uma espécie de comportamento recursivo: se interessa por um menino, se aproxima dele sempre através de uma conversa interessante e envolvente, em pouco tempo o menino já faz declarações de amor, ela “fica” com ele, e poucos dias depois, já totalmente desinteressada (e o menino totalmente apaixonado), ela já começa a articular seus contatos para atrair o próximo “alvo”. Sua energia, então, se divide entre conquistar esse novo alvo e manter a legião de fãs que, fiéis, continuam suplicando sua atenção. O tom utilizado aqui nessa descrição pode parecer um tanto jocoso, mas ela mesma usa expressões do tipo: “colocar o fulano na prateleira”, “mantê-lo por perto” etc., além de ter toda uma explicação já preparada sobre o quanto isso tudo é, em grande parte, uma “compensação” pelo fato de ela ter sido gorda e por esse motivo ter ficado “encalhada” por algum tempo.

Letícia tem uma auto-imagem tão grandiosa (reforçada por essas experiências de conquista sempre bem-sucedidas), que de fato não lhe importa muito quem é esse outro no encontro. Ela não se permite, na realidade, se encontrar com ninguém, apenas com ela mesma e sua infindável necessidade de ser admirada, sem se permitir, no entanto, amar e ser amada de fato por outra pessoa. Ela não se compromete. O contato final não se realiza.

A respeito do egotismo, Robine (2006) acrescenta que:

 

 

Ele será manifesto e de grande amplitude nos indivíduos que apresentam perturbações narcisistas de sua experiência. Ansiosos diante do soltar-se, ansiosos diante da perda do controle, ansiosos ao se abrirem para o outro, ansiosos diante de uma possível aniquilação no Nós do encontro, ou ansiosos diante de um possível abandono posterior, tais indivíduos se isolam do ambiente e o reduzem a conhecimentos que possam ampliar seu controle e seu poder. (p.132)

 

 

Segundo Spangenberg (2006), “considerar nossa maravilhosa fragilidade – portal para nossa humanidade – como uma deficiência ou uma falta, é um dos introjetos fundamentais nesses pacientes”. E ele segue fazendo uma descrição da atuação dos outros mecanismos de evitação de contato no estilo egotista:

 

 

Apesar de parecerem não utilizar a retroflexão, pois sempre culminam suas ações dirigindo sua energia para o meio – ou para dizer de forma mais apropriada – ao objetivo que traçaram, retrofletem suas mais íntimas necessidades para não se sentirem expostos em sua vulnerabilidade. Não são confluentes mais do que como uma concessão momentânea na busca de suas metas. Projetam suas fragilidades nos outros com a mesma atitude impiedosa com a qual se relacionam – nessa área – consigo mesmos. O egotista sente como uma ameaça terrível mostrar seu ‘lado incompetente’ e cada vez se apóia mais em suas habilidades, centrando seu mundo de relações na competência e na luta pelo poder. (...) Alguns (...), aferrados até o final às suas ‘razões’, se despedem da vida sem jamais terem-se deixado tocar pela ternura e pelo amor. (p.65)

 

 

No caso de Letícia, a retroflexão básica parece ser a da necessidade de receber amor: é mais seguro voltar essa necessidade para si mesma, desenvolvendo uma postura extremamente narcisista, do que arriscar dirigi-la ao outro. De fato, Robine considera que o egotismo seja um tipo específico de retroflexão, pois corresponde a uma das definições oferecidas por Perls, Hefferline e Goodman para a mesma: “Qualquer ato de autocontrole deliberado durante um envolvimento difícil é uma retroflexão” (1951, apud Robine, 2006, p.132).

Na relação terapêutica com o cliente de estilo egotista, experimentamos uma dificuldade de perceber claramente qual o nosso lugar e corremos o risco de “‘atuar’ na sessão o que certamente fora dela as pessoas que convivem com ele devem fazer: expulsá-lo de suas vidas” (Spangenberg, 2006, p. 80). Ou, pelo contrário, o terapeuta pode se sentir intimidado e acabar projetando sobre o cliente suas próprias necessidades de aprovação, caindo na armadilha dos círculos de racionalização do cliente, que terminam sempre no mesmo lugar: ele tem razão. Conforme Spangenberg, “em ambos os casos a terapia fica inutilizada” (Spangenberg, 2006, p. 80). Compartilho da opinião desse autor de que as barreiras construídas pela pessoa predominantemente egotista, a soberba e arrogância com que lidam com os outros, produzem tanto rechaço social que fica difícil perceber a fragilidade e o medo da exposição que escondem. Se estivermos atentos a isso, e se mantivermos o foco no “como” o cliente constrói seus vínculos, e nas conseqüências que isso traz para ele, teremos chance de ajudá-lo. Se ele permitir.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

D’ACRI, G.; LIMA, P.; ORGLER, S. (2007) Dicionário de Gestalt-Terapia: “Gestaltês”. São Paulo: Summus.

GRANZOTTO, R. L.; GRANZOTTO, M. J. (2004) Self e Temporalidade. Disponível na internet em http://www.igt.psc.br/ojs/viewissue.php?id=2, Consulta efetuada em fev. 2008.

PERLS F., HEFFERLINE, R. E GOODMAN, P. (1997) Gestalt-Terapia. São Paulo: Summus.

ROBINE, J-M. (2006). O Self Desdobrado: perspectiva de campo em Gestalt terapia. Summus: São Paulo.

SPANGENBERG, A. (2006). Terapia Gestalt: Un Camino de Vuelta a Casa. Montevidéu: Psicolibros-Universidad.


(1) Os outros mecanismos de evitação de contato se referem aos processos que ocorrem na fronteira.