Dos Pés à Cabeça: por uma reconexão entre a afetividade adulta e a criança interior

Autores

  • Renata Escarlate

Palavras-chave:

AFETIVIDADE ADULTA E CRIANÇA INTERIOR

Resumo

O presente trabalho visa refletir sobre a forma como nós, adultos, compreendemos o mundo a nossa volta e como esta compreensão influencia na forma como nos relacionamos afetivamente, tanto com outras pessoas, com o próprio ambiente externo e conosco mesmos. “É difícil definir uma relação. Ela acontece por inteiro, no mundo do perceber, do sentir, do intuir, do pensar... Ao expressar a relação em palavras, se elas não forem bem escolhidas, corremos o risco de reduzi-la. Não raro, a linguagem se torna fonte de mal-entendidos.” Disse Norgren (2004, p. 199), e concordo com ela, mas pretendo tentar. Do ponto de vista da Gestalt-Terapia, o contato pleno acontece através da congruência entre pensamentos, sentimentos e ações. Sendo assim, nosso objetivo precisa ser refletir sobre se a forma como estamos interpretando o mundo nos auxilia a lidar com a vida de maneira afetiva, autêntica e direta (em contato pleno), como fazíamos quando éramos crianças, já que as crianças, em geral, têm este potencial. As crianças costumam se relacionar com as experiências com uma postura fenomenológica, ou seja, com a experiência conforme ela se apresenta, sem elaborações de significados ocultos, interpretações mirabolantes ou transposições de significados. Seu olhar é para o que de real está acontecendo: o fenômeno em si. É claro que, na infância, o desenvolvimento e maturação cognitivos ainda não estão completos, o que se torna um facilitador do processo de perceber o mundo mais literalmente, porém a proposta aqui é justamente buscar inspiração nesta forma mais pura de lidar consigo e com o mundo, visando uma postura mais fenomenológica. De acordo com Hycner, a postura fenomenológica refere-se a “um esforço para “ficar-próximo-da-experiência”, ou seja, compreender a situação (…) explicitamente a partir da experiência subjetiva (...)”, (1997, p. 155) correlacionando-se àquilo que aquela pessoa sente e percebe naquele momento. A priori, nos estágios iniciais de nossas vidas, aprendemos a nos relacionar fenomenologicamente, tanto com as coisas, como com as pessoas. Ao longo da vida vamos sendo “remoldados” por regras sociais, familiares, culturais e pelas experiências e seus resultados, positivos e negativos. A consequência disto é que vamos aprendendo “o que funciona” (resulta no objetivo) e “o que não funciona” ao nos relacionarmos, e vamos nos afastando gradualmente da forma crua, direta e fenomenológica através da qual nos relacionávamos antes. A cada “não” que ouvimos, cria-se uma nova marca em nossa afetividade. Vamos aprendendo a ver e perceber o mundo de novas formas, criando novos conceitos, novos valores, novas regras e uma nova abordagem expressiva daquilo que pensamos, sentimos, como percebemos o mundo ou reagimos a ele. Segundo Polster, “o percebedor não só estrutura o que ele percebe em unidades econômicas de experiência, mas também edita e censura aquilo que vê e ouve, harmonizando seletivamente suas percepções com suas necessidades interiores...” (2001, p.48) Assim, ao longo da vida, vamos distanciando nossa afetividade da postura fenomenológica que tínhamos diante de nossas percepções e nos tornando gradualmente mais próximos dos grupos de “regras interpretativas de aprendizagem relacional” que vamos formando enquanto crescemos. Na transição da adolescência para a vida adulta começamos a nos relacionar amorosamente, embora já venhamos aprendendo a nos relacionar afetivamente desde a infância e, como o afeto é um importante componente do amor, trazemos para as relações amorosas a forma como aprendemos a lidar com nossa afetividade. A forma poética com a qual Zinker descreve o amor serviu, em grande parte, de inspiração para este trabalho, uma vez que fala de como amávamos antes de a vida atrapalhar: “O amor autêntico por uma pessoa é experienciado como êxtase no ser do outro, como regozijo por sua existência. É não manipulador, não pegajoso, não exigente. Deixamos que o outro seja. Não queremos violar sua integridade humana ímpar. O tipo mais “puro” de amor (puro no sentido de expressar como condição prévia o regozijo pela existência do outro, e não no sentido puritano de ser limpo) envolve a experiência total da tensão ou energia interna que faz parte da reação da pessoa ao ser amado. Assim, podemos afirmar que o amor é uma espécie de tensão criativa. “Permanecer com” essa tensão – deixar que impregne todo o nosso ser – é uma tarefa extremamente difícil, em especial porque nossa sociedade está habituada a vender prazeres enlatados para satisfação e consumo imediatos.” (2007, p. 18). Nossa atual tarefa como gestalt terapeutas, no que concerne aos relacionamentos (amorosos ou não) jaz, justamente na recuperação desta forma pura de “saborear” as experiências relacionais, buscando na ingenuidade infantil – que um dia nos pertenceu a todos – um olhar mais “literal” daquilo que nos afeta. Por fim, com a plena autorização de seu compositor, Vinícius Castro, tomo para mim, e a estendo a todos os colegas gestalt terapeutas que a desejarem usar como inspiração, a canção “Dos Pés à Cabeça”, esperando que seus questionamentos e provocações nos levem mais para perto de quem somos em essência e da postura questionadora que sustentávamos quando crianças. Dos pés à cabeça (Vinicius Castro) Se o braço da poltrona nunca abraça Eu acho que a palavra perde graça Se a boca do fogão não sente fome Então por que o mesmo nome? Se a mão do violão não pega nada Eu acho que a palavra ta errada Se o fósforo tem algo na cabeça Alguém me diz o que ele pensa! Será que pé de planta tem chulé? Será igual ao da planta do pé? E se for pra plantar bananeira... Não porá os pés no chão! Se o alho tem um dente e não mastiga Eu acho que a palavra não se aplica Se o livro tem orelha e não escuta Mas que palavra mais maluca! Se o milho tem cabelo e não penteia Eu acho que a palavra é meio feia Se a perna tem batata e não frita Mas que palavra esquisita! Será que pé de planta tem chulé? Será igual ao da planta do pé? E se for pra plantar bananeira... Não porá os pés no chão! Se a gente não alcança, não importa Mas se cresce e enxerga não suporta E no fim a fantasia vai embora: O olho mágico da porta só vê o lado de fora... Referências Bibliográficas Norgren, Maria de Betânia Paes - in Ciornai, Selma (org.) – Percursos em Arteterapia: arteterapia gestáltica, arte em psicoterapia, supervisão em arteterapia – São Paulo: Summus, 2004. Hycner, Richard & Jacobs, Lynne – Relação e Cura em Gestalt-terapia – São Paulo: Summus, 1997. Polster, Erving & Polster, Miriam – Gestalt-terapia Integrada – São Paulo: Summus, 2001. Zinker, Joseph – Processo Criativo em Gestalt-terapia – São Paulo: Summus, 2007. Link: http://www.vagalume.com.br/vinicius-castro/dos-pes-acabeca. html#ixzz2YhQvkB00 Modalidade de apresentação: Workshop

Publicado

2015-12-01