MC 8: COMPREENDENDO A CONFLUÊNCIA NAS RELAÇÕES FAMILIARES: UM TRABALHO NA SITUAÇÃO TERAPÊUTICA COM CRIANÇAS
Resumo
MC 8 COMPREENDENDO A CONFLUÊNCIA NAS RELAÇÕES FAMILIARES: UM TRABALHO NA SITUAÇÃO TERAPÊUTICA COM CRIANÇAS Mabel Pereira Romero RESUMO Este trabalho tem como objetivo discutir a confluência nas relações parentais a partir da dificuldade de algumas crianças em entrar sozinhas nas primeiras sessões psicoterapêuticas. Esta é uma situação muito comum na prática clínica e aflige os psicólogos que iniciam sua carreira como terapeutas infantis. Entendemos essa questão como um ajustamento confluente entre criança e responsável e propomos uma discussão com base na teoria da Gestalt-terapia para compreender essa dinâmica. Apresentamos também um relato de caso que ilustra o trabalho a ser realizado pelo psicoterapeuta neste processo. Palavras-chave: criança, confluência, família PROPOSTA A cena se repete em vários consultórios de psicoterapeutas infantis: após um convite para entrar na sala com o profissional, Cecília de 3 anos e meio recusa-se a ir adiante e agarra-se à mãe como se tentasse voltar para sua barriga. Lá permanece muda, ignorando as intervenções da terapeuta e as tentativas de persuasão por parte da mãe para que entre sozinha no atendimento. Nada parece dar resultado e a terapeuta se vê em um impasse, não sabe como resolver essa situação e dar continuidade a sessão. Por se tratar de uma situação comum na clínica com crianças e que, para ser manejada corretamente, deve ser compreendida segundo um referencial teórico, propomos o presente trabalho. Segundo a visão holística da Gestalt-terapia, a dificuldade de separação que emerge no momento em que a criança é convocada para a sala de atendimento é um retrato de um padrão relacional dela e, provavelmente, ocorre em outros ambientes que frequenta. Nomeamos essa situação como um ajustamento confluente entre a criança e o responsável que a traz para a terapia e a compreensão desta dinâmica se torna fundamental para o acompanhamento do caso. A confluência é um ajustamento criativo descrito pela Gestalt-terapia como a “não-existência ou a não-consciência de fronteiras” (PERLS, 1977). Trata-se de um estágio primordial no desenvolvimento humano, onde o bebê não se reconhece como um ser separado da sua mãe, não reconhece suas necessidades, seus limites corporais e emocionais. Pouco a pouco, o processo de desenvolvimento saudável caminha para uma maior discriminação, com a construção de uma fronteira de contato que permite uma diferenciação da criança em relação ao meio que a cerca. A situação inicial, de total dependência e simbiose, dá lugar à autonomia e auto-suporte. A família tem um papel primordial neste processo pois, ao mesmo tempo que dá a criança suporte e cuidado, fornece as introjeções sobre ela e sobre o mundo necessárias para que ela tenha uma noção de quem é, quem são as pessoas que a cercam e o que são as coisas que conhece. Além disso, cabe aos familiares confirmar essa criança como uma pessoa única e singular, auxiliando-a a acreditar nas suas capacidades. Dessa forma, ela pode desenvolver as fronteiras que a delimitam, discriminar aquilo que recebe do outro e construir a autonomia necessária para enfrentar o mundo e as situações novas. (Aguiar, 2005, p.95). Algumas vezes, por questões nesta dinâmica familiar, o padrão confluente perdura. Nas famílias confluentes, as fronteiras entre o eu e o outro/ambiente são pouco consistentes e não há espaço para diferenças. Em nome da manutenção de uma unidade, seus membros não podem discordar, desagradar ou não atender as necessidades do outro. As crianças não costumam ser olhadas e aceitas como pessoas com vontades e características próprias. São comparadas à idealização do “filho perfeito” e acabam não sendo confirmadas em seus sentimentos, frustrações e dificuldades. Como consequência, a criança não reconhece suas próprias necessidades, ela apenas conhece as necessidades do outro. E não desenvolve o suporte necessário para enfrentar o mundo sozinha, principalmente as situações novas, como as primeiras visitas a um psicoterapeuta. De acordo com Aguiar (2005), essas crianças podem mostrar-se “caladas, tímidas, medrosas, com comportamentos típicos de bebê, dificuldade de escolher e de emitir opiniões, dificuldades de adaptação escolar, de dormir e brincar sozinhas e dificuldade de separação física dos familiares” (p.97). Em muitos casos a dificuldade de separação também é do responsável, que acredita que a única forma de se dar amor é estar sempre juntos. Daí a necessidade de se realizar um trabalho com criança e família. Em outros, é a presença incompreensiva dos responsáveis que gera uma criança insegura e confluente. A mãe de Cecília havia relatado em uma entrevista inicial com a terapeuta que nunca desejou ter filhos, o fez para atender um desejo do marido. Ambos idealizavam que ao ter o bebê, seriam como as famílias de “capa de revista”, felizes e com filhos sorridentes. Porém desde o nascimento da filha se depararam com uma criança totalmente diferente desta idealização: Cecília era um bebê que chorava muito e só queria ficar no colo. Foi trazida para a terapia por ser definida como uma criança “complicada”, vivia fazendo exigências e demandando atenção. Quando contrariada tinha “ataques” que muitas vezes ficam incontroláveis. Cecília costumava entrar em embate com os pais, dizendo não a tudo que eles propõem. A mãe dizia que ela tomava conta de toda a casa, queria que tudo fosse feito do jeito dela e que não parava um minuto. Este quadro acontecia mais na presença da mãe e se tornou mais frequente depois do nascimento da irmã, na época com um ano. Desde o início, fica claro que a idealização dos pais não permitia que Cecília fosse aceita como realmente era. Sua mãe tinha uma lista de queixas a fazer da filha – tentava encaixá-la em vários diagnósticos como TOC e hiperatividade – e pouca disponibilidade para estar com ela. Com isso, Cecília não era confirmada em suas necessidades e sentimentos. Os “ataques” relatados eram uma forma de conseguir atenção da mãe, ainda que de forma distorcida, pela repreensão. Além disso, Cecília sentia-se sempre ameaçada em perder o espaço na relação com a mãe, principalmente após a chegada da irmã. Vivenciava um dilema entre crescer e ir para o mundo e permanecer ocupando o lugar de um bebê. Compreendemos a recusa de Cecília – uma menina falante e articulada – a acompanhar a terapeuta, como um reflexo desta dinâmica e é exatamente com isso que começamos o trabalho. A Gestalt-terapia nos traz como ferramenta a metodologia fenomenológica e o trabalho no aqui agora. Trabalhar com o fenômeno, neste caso, é acolher a dificuldade de Cecília e iniciar o atendimento com a dupla mãe e criança. Compreendemos que essa é a única forma que elas podem estar ali, na situação terapêutica, e a insistência para romper esta unidade relacional prematuramente pode significar um término precoce da terapia. O objetivo da psicoterapeuta neste momento é compreender a dinâmica dessa “dupla”, perceber o que está em jogo na dificuldade de ambos estarem ali como pessoas distintas. Nesse caso, a presença do responsável e da criança na sala de atendimento nos dá a chance de observar os padrões cristalizados em pleno funcionamento e possibilita que, aos poucos, realizemos intervenções terapêuticas facilitadoras no processo de diferenciação. A partir de uma proposta da terapeuta, Cecília aceita entrar na sala de atendimento junto com sua mãe, porém continua muda em seu colo. Esta parece não dar muita atenção à filha e permanece lendo alguns livros que encontrou na estante. Não percebe que Cecília começa a mostrar interesse por outros brinquedos da sala, mas não consegue alcança-los sem sair de seu colo. A terapeuta descreve o que está acontecendo e propõe que Cecília convide a mãe para explorar junto com ela os brinquedos. Ela acompanha a filha até a estante, então Cecília consegue se “desprender” da mãe e propor a ela uma brincadeira de fantoches. Sua mãe aceita o convite para brincar, porém não aceita as propostas da filha, sempre tentando corrigi-la e mudar a história dos fantoches proposta por Cecília. Ao longo das sessões seguintes, este padrão de Cecília se repete: recusa-se a entrar sozinha e, uma vez na sala de atendimento junto com a mãe, ignora a presença da terapeuta. Aos poucos, começa a brincar sem solicitar a mãe, fato que descrito e questionado pela terapeuta. Cecília responde que precisava da mãe ali para olhá-la brincar. Esta, por sua vez, mostrava-se entediada e pouco atenta ao que a filha fazia nas sessões. Na sessão com os responsáveis, a terapeuta mostrou o quanto sua filha sentia-se pouco vista e acompanhada, como era importante que ela fosse reconhecida. A mãe sabia da sua dificuldade em estar com Cecília, ela mesma havia sido uma criança que não recebera muito afeto e atenção. Assumiu que não tinha nenhuma paciência e tolerância, ressentia-se diante de seus “ataques” como se esta fosse uma questão pessoal – a filha fazia “de propósito”, para irritá-la e magoá-la. Não percebia que para uma criança pequena a frustração é algo muito difícil de lidar e que ela precisava da ajuda de um adulto para compreendê-la e confirmá-la nos seus sentimentos. Ao se deparar com uma relação confluente como esta, o psicoterapeuta possui duas principais frentes de trabalho. Com a criança, suas intervenções objetivam questionar as introjeções que ela tenha sobre quem “deve ser” e auxiliá-la na construção de um forte “senso de eu”, possibilitando que esta comece a se ver como alguém separada, que pode ter necessidades e expressá-las. O trabalho também se dá com a família, na tentativa de fazê-los refletir sobre a dificuldade em lidar com a diferença, visando promover esta diferenciação. “O objetivo é que possam se manter unidos, mesmo sendo diferentes, se amando em alguns momentos e se zangando em outros.” (Aguiar, 2005, p.98). Com essa mãe mais presente nas sessões, Cecília foi se tornando cada vez mais independente e começou a incluir a terapeuta nas suas brincadeiras. Depois de algumas semanas, pôde entrar sozinha na sala de atendimento. Dali em diante, ricas sessões aconteceram, nas quais Cecília trazia seus conflitos na forma de encenações como a troca da babá ou a dificuldade em dividir a atenção da mãe com a irmã bebê. Sabemos que os seres humanos são únicos em suas formas de estar no mundo, ainda que possuam regularidades. Duas famílias confluentes apresentam como semelhança a dificuldade de lidar com a diferença e com a separação, porém em cada caso vemos uma dinâmica envolvida. Cabe ao psicoterapeuta compreender o que está em jogo em cada caso e auxiliar cada família em seu processo rumo à autonomia e discriminação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS AGUIAR, L. Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. Campinas: Livro Pleno, 2005. D’ACRI, S. LIMA, P, &ORGLER, S.(orgs) Dicionário de Gestalt-terapia: Gestaltês. São Paulo: Summus, 2007. PERLS, F. Gestalt-terapia explicada. São Paulo: Summus, 1977. PERLS, F. , HEFFERLINE R. & GOODMAN, P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1951. ZINKER, J.C. A busca da elegância em psicoterapia, uma abordagem gestáltica com casais, famílias e sistemas íntimos. São Paulo: Summus, 2001Publicado
2014-07-29
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