Fórum 2: Sobre amar e brincar: o contato na psicoterapia com crianças.

 

Maria das Graças Gouvêa e Bianca Lopes de Souza

 

Resumo
Partindo de uma concepção do ser que postula que todo homem se constitui na co-existência e re-conhecimento mútuo com outros, destacamos as noções sobre o brincar e o re-conhecimento mútuo como experiências fundamentais na constituição de si-mesmo, da experiência de eticidade e o papel do psicoterapeuta infantil. Fazemos um paralelo entre as noções de brincar em Maturana e Verden-Zoller (2004) com a noção de contato da Gestalt-terapia.

 

Proposta

I. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O Brincar
Segundo Matura e Verden-Zoller (2004), a cultura ocidental atual se caracteriza enquanto uma cultura patriarcal que ainda vive as conseqüências do cogito cartesiano. Nela, valores como obediência, autoridade, controle e disputa ganham destaque na dinâmica das relações que são construídas socialmente, em detrimento de outros, como compreensão, autonomia, amizade, espontaneidade e cooperação. Esta intensa busca por controle, a permanente e progressiva orientação para a produção e apropriação de nossas ações, somadas ainda a constante desvalorização de nossa corporeidade, vem contribuindo enormemente para a promoção de uma fragmentação da experiência e do vivido. Uma existência na qual não vemos nosso presente como seres humanos, já que sempre olhamos para além dele, com o objetivo de encontrar nossa identidade nos produtos da atividade intencional. Acabamos por instrumentalizar nossas relações em prol desta produtividade.

Com isto, experimentamos a constante desconfiança em nós mesmos, nos outros e especialmente nos processos naturais. Desconfiamos do que sentimos, do que precisamos, do que nos é necessário. Fazemos isto com nossos companheiros, com o mundo e também com nossas crianças. Os pais modernos comumente não têm consciência de sua corporeidade, tampouco reconhecem que instrumentalizam as relações com seus filhos, embora os ensinem, os eduquem e os guiem para o seu futuro ser social. E com freqüência vêem fracassados os seus projetos de criarem filhos íntegros, capazes de serem cidadãos felizes e responsáveis. Porque isto só é possível quando se estabelece com o outro uma relação de mútua aceitação, no amor, na confiança e no respeito por cada um. E esta relação focada na produtividade, inviabiliza o encontro autêntico entre as pessoas.

Para Maturana e Verden-Zoller (2004) é o viver no conversar, no entrelaçamento do linguagear com o emocionar, que constitui o humano. A auto-aceitação e o auto-respeito surgem como características da ontogenia da criança na relação materno-infantil na mútua e total aceitação corporal implícita na operacionalidade das interações não-intencionais da brincadeira. No que estes autores definem como sendo,
“uma relação de total aceitação e confiança no encontro corporal de uma pessoa com outra; com a atenção posta no encontro (...) no simples fluxo da relação (...) essencial para o crescimento do sujeito como um ser que pode viver em dignidade e respeito por si mesmo, em consciência individual e social. Toda atividade realizada com a atenção dirigida para ela própria se dá no brincar, num presente que não confunde processo com resultado.” (p. 230)

Para eles, tudo isto ocorre de modo tão fundamental que o crescimento normal de uma criança humana requer esta dinâmica relacional. E a maioria de nossas doenças e sofrimentos surge de alguma interferência em nosso operar na biologia do amor. Em síntese, o que fica claro é que a cultura ocidental atual vai de encontro com nossa biologia humana. Interferindo não só na qualidade das relações que construímos conosco e com o mundo, mas especialmente na forma como temos cuidado de nossos filhos.

Compreendemos neste estudo que a definição de brincar de Maturana e Verden-Zoller (2004) está bastante próxima da definição de contato da Gestalt-terapia.

Segundo Perls, Hefferline e Goodman (1997), o termo contato refere-se a awareness da novidade assimilável e comportamento com relação a esta novidade; além da rejeição da novidade inassimilável. O que destaca o caráter dinâmico e seletivo do contato. Em Ribeiro (2007a): “Contato é uma palavra mágica, é sinônimo de encontro pleno, de mudança, de vida. É convite ao encontro, ao entregar-se. É um processo cujo sinônimo é cuidado, a alma do contato. Sem ele, o contato, simplesmente, não existe” (p. 27). Contato é o “processo de se encontrar com o outro no outro, uma relação de total inter, intra e transdependência, na qual tudo está incluído amorosamente” (id., p. 44). Assim, no contatar estão a experiência consciente do aqui-agora, a sensação clara de estar em, de estar com, de estar para, e a criação de algo diferente do sujeito e do objeto (pessoa ou coisa) com a qual se está em relação. E mais, tem o corpo como sua morada. O espaço que oferece os seus limites subjetiva e objetivamente.

Dessa forma, sem conhecer o corpo, pouco se pode fazer para que um contato seja nutritivo e transformador. Pois, são as leis do corpo que proporcionam um contato de maior ou menor qualidade.

“O corpo-pessoa é o lugar onde tudo acontece. O corpo é o espaço-tempo por intermédio do qual recapitulamos nosso ser como uma história viva, vivente e vivificante. E nele, nosso self, propriedade estruturante de nossa personalidade, é o lugar do encontro marcado do tempo com o espaço, e do espaço com o tempo, do igual com o diferente, é o lugar do hoje que se abre continuamente para o horizonte do amanhã.” (RIBEIRO, 2007a, p. 44)

Sendo assim, para um contato pleno as funções sensitivas, motoras e cognitivas se juntam, num movimento dinâmico dentro... fora...dentro, para, através de uma consciência emocionada, produzir no sujeito um bem-estar, uma escolha, uma opção real por si mesmo. Para Ribeiro (2007b) “o contato pleno precisa destes quatro momentos: abertura, reciprocidade, presença e responsabilidade” (p. 54).

Isto é, os requisitos para o contato são os mesmos para que aconteça o diálogo autêntico Buberiano, e acredito que também os mesmos para que uma relação lúdica possa ser estabelecida entre pessoas: abertura (visão inocente do outro, na qual o conhecimento não ponha barreiras ao encontro); reciprocidade (entrega descompromissada e confiante na realidade do outro); presença (entrega à experiência imediata na aceitação da totalidade do outro, coisa ou pessoa, deixando-se acontecer); responsabilidade (visão do outro como veja a mim, uma entrega e uma resposta espontânea na certeza de quem eu sou e na crença de quem o outro é).

Nesse sentido, podemos entender que o brincar é uma forma privilegiada de contato, fundamental no encontro com crianças. O brincar nos leva diretamente para a fronteira de contato “o ponto em que o indivíduo experiência o “eu” em relação ao que é não-eu e, por esse contato, ambos são experimentados mais claramente.” (POLSTER & POLSTER 2001, p. 115).

Ou ainda, como define Ribeiro (2007b) “o lugar privilegiado do encontro das diferenças” (p. 51). O brincar faz isso, pois exige espontaneidade e presença. Ele necessita da permanência focada dos brincantes no aqui-e-agora da relação. E o faz, incluindo o toque e o movimento. Assim ele também mobiliza a organização psicomotora da pessoa, isto é, o meio pelo qual ela estrutura suas estratégias de ser e agir no mundo, a partir dos registros tônicos de experiências anteriores vividas, bem como seu corpo-pessoa.

O brincar possibilita um contato direto com estes registros corporais. O que é improvável ser conseguido de forma tão intensa quando se usam apenas as palavras. Pois, como nos diz Winnicott (1975) “É no brincar (...) que o indivíduo (...) pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self).” (p. 80)

Nunca recebemos tantas crianças com diagnósticos de hiperatividade, fobias, depressões. Nem nunca vivemos uma época em que a infância fosse tão medicalizada como é hoje. Diante disto, a questão que se insere é justamente qual o papel do terapeuta neste contexto?

Cardella (1994) nos lembra que as raízes e origens do termo “terapeuta” (do grego servir, cuidar, servidores de deus) revelam desde sempre nosso compromisso com o amor ao próximo. Em suas palavras (p. 56), “Dedicamos nosso trabalho aos que buscam amor, harmonia e alívio para seus sofrimentos. Acreditamos que o homem seja capaz de crescer e se auto-realizar. Procuramos aprender, conhecer e criar instrumentos
e atitudes capazes de amenizar os conflitos humanos e acompanhamos o outro na sua busca de um sentido para a sua vida. Confiamos nas potencialidades de cada um mesmo que estejam ocultas sob o desespero, as dificuldades e a dor.”

Assim como Cardella (1994), defendemos que o trabalho psicoterapêutico é uma prática do amor. É através do estado de ser amoroso que o terapeuta cria condições para que o cliente possa ouvir, ver, compreender, aceitar e amar a si mesmo.

 

O processo psicoterapêutico com crianças
A importância da relação entre pais e filhos na constituição ética do sujeito contemporâneo e o papel do psicoterapeuta infantil Axel Honneth (2003) é um autor contemporâneo que se baseia no estudo da Teoria Crítica (Escola de Frankfurt) para buscar compreender os conflitos sociais do mundo contemporâneo. Segundo ele, a noção de eticidade se inicia através das primeiras relações sociais, a relação entre pais e filhos, “uma relação de ação recíproca, universal, e de formação dos homens” (id).

A formação desta eticidade se inicia afastando gradativamente os sujeitos das determinações naturais e deve ir de encontro a uma confirmação prática da identidade pessoal e coletiva, numa experiência de reconhecimento social de cada sujeito em particular. São as confirmações às carências concretas do indivíduo vividas no seio da família que formam a base da constituição de um reconhecimento e validação de si mesmo.

Dentre as teorias psicanalíticas algumas se aproximaram desta compreensão e falaram da relação amorosa como um reconhecimento recíproco, por exemplo, ao estudarem a díade mãe-bebê, como Donald Winnicott (1975) ou ainda no estudo das personalidades narcísicas e borderlines, como Fairbairn. Assim entendendo que, nestes casos, as dificuldades já não podiam mais ser atribuídas a conflitos intrapsíquicos entre os componentes do Ego e do Id, mas particularmente a distúrbios interpessoais no processo de separação e confirmação da criança na relação com seus pais, conforme já referido em trabalho anterior (SILVA, 2009).

Contemporaneamente alguns fenômenos podem ser observados que colocam em cheque nossa “capacidade” ou “habilidade” de criar nossos filhos. Indícios de que os pais estão em uma busca frenética de um saber como educar, e às vezes, totalmente incapazes ou indiferentes, terceirizando, sempre que possível este tipo de cuidado.

Esta busca frenética gera publicações recordes de livros e programas de televisão, entre outros serviços diretos de terceirização, como a escola, as terapias etc. Se tomarmos como verdade que o reconhecimento através da experiência de amor é fundamental para a constituição da ética e de uma personalidade mais íntegra, e ainda que a terceirização dos cuidados da infância é uma forte característica de nosso tempo. De que forma o papel do psicoterapeuta infantil se coloca neste contexto?

Para Walter Benjamin (1984 e 1996), estamos às voltas com uma barbárie moderna que resulta do empobrecimento da experiência e da intensificação das vivências de choque, fenômenos estimulados pela cultura contemporânea. Ele destaca a importância da narrativa como forma de permitir a assimilação das experiências e para possibilitar que as impressões vividas sejam incorporadas à memória, sem o que as vivências desaparecem de forma instantânea, o que torna muito difícil ao Homem pensar a respeito do sentido de seus vividos.

Pais e filhos de hoje parecem muitas vezes enredados nesta barbárie, ora com muita violência física, verbal, e por vezes, sexual; ora por total ausência de atenção, de contato e uma impressão geral de que não há regras ou limites, e que ninguém se importa ou que somente um “outro” é capaz de cuidar de seu filho, seja uma babá, uma professora, um médico ou um terapeuta.

O papel do psicoterapeuta infantil, em especial do gestalt-terapeuta, se refere a uma possibilidade de encontro e de restabelecimento das narrativas entre pais e filhos, de cada um consigo mesmo e com o outro, favorecendo que um reconhecimento mútuo possa acontecer.

Tomando como princípio, como Zinker (2007) propõe, que a Gestalt-terapia traz consigo uma permissão para ser criativo, assim vemos a postura do gestalt-terapeuta como de alguém que deve reconhecer e respeitar a natureza estética do contato, seja no brincar, no linguagear, no olhar, poder estar presente na relação com o outro consciente desta orientação estética.

Também tomamos como princípio que o amor é uma qualidade da presença criativa e que deve ser reconhecido como fundamento da relação terapêutica e de toda relação que vise promover o desenvolvimento humano, como a relação entre pais e filhos. Entendendo como amor a possibilidade de apreciação e reconhecimento estético do mundo do outro. Como diz Zinker (2007, p. 34): “Olhem para as pessoas do mesmo jeito que vocês contemplariam as montanhas ou o pôr-do-sol.. (...) Dificilmente vocês diriam ‘esse pôr-do-sol deveria ter mais roxo’ ou ‘essas montanhas ficariam melhor com a mais alta no meio’.

Na verdade, defendemos que o brincar é uma função de auto-regulação da saúde emocional e das relações interpessoais de uma forma geral e tem especial significado na relação entre pais e filhos, constituindo possibilidades éticas de reconhecimento e respeito, de expressão amorosa e atenção genuína.


II. PROPOSTA DE DINAMIZAÇÃO

Num primeiro momento as coordenadoras proporão uma atividade de sensibilização através do brincar, se utilizando de jogos psicomotores a fim de integrar os participantes e lhes permitir uma qualidade de contato com a experiência lúdica. Após esta sensibilização em grupo, cada um individualmente produzirá uma representação por escrito ou desenhada que sintetize o sentido do seu vivido. Serão disponibilizados diferentes materiais para a expressão plástica: lápis de cor, giz de cera, tinta, papéis coloridos e de diferentes tipos, cola, tesoura.

Após a apresentação de conceitos teóricos, as autoras discutirão as relações entre a experiência vivida no grupo e algumas considerações teóricas levantadas, tais como: a importância e o significado do brincar; a noção de “ser-com”; a experiência de reconhecimento e o brincar; a formação ética da criança; a cultura contemporânea em sua relação com o empobrecimento da experiência lúdica, a noção de contato e a neurose; o papel do psicoterapeuta com crianças em Gestalt-terapia.


Referência bibliográfica

BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus Editora,1984.

____________. Obras Escolhidas – Magia e Técnica. Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1996.

CARDELLA, B.H.P. O amor na relação terapêutica: uma visão gestáltica. São Paulo: Summus Editora, 1994.

HONNETH, A. Luta por Reconhecimento – A Gramática Moral dos Conflitos Sociais. São Paulo: Editora Trinta e Quatro, 2003.

MATURANA H.; GERDA V. Amar e Brincar. São Paulo: Palas Athena, 2004.

PERLS, F.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.

POLSTER, E., POLSTER, M. Gestalt-terapia Integrada. São Paulo: Summus, 2001.

RIBEIRO, W.P. O ciclo do contato: temas básicos na abordagem gestáltica. São Paulo: Summus, 2007a.

____________. Ciclo de contato (verbete) . In.: D’ACRI, G., LIMA, P., ORGLER, S. (org.). São Paulo: Dicionário de Gestalt-terapia: Gestaltês Summus, 2007b.

SILVA, M.G.G.N. A insustentável leveza do ser: reflexões de uma gestalt-terapeuta no acompanhamento de pessoas com transtorno Trabalho apresentado no IX Congresso Nacional e XII “borderline”. Encontro Nacional de Gestalt-terapia. Espírito Santo: Vitória, 2009.

WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

ZINKER, J. Processo Criativo em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2007.