Mini-curso 7: Filha de minha mãe: Como as introjeções desta relação dão forma à mulher que sua cliente é.

 

Juliana Wallig

 

Resumo
A proposta deste mini-curso é apresentar a importância de se explorar em terapia a relação mãe-filha. Uma vez que as introjeções desta relação influenciam o desenvolvimento da identidade da mulher e, consequentemente, nas suas relações consigo mesma e com o mundo.

Proposta
Para compreendermos como a influência das introjeções da relação mãe-filha dão forma à mulher, faz-se mister compreendermos o conceito de self na Gestalt- terapia.

Self
A Gestalt-terapia considera o self como um processo fluido e não como uma estrutura estática, na qual a pessoa é isso ou aquilo. Saudável é a variação em suas qualidades, características e capacidades que dependem tanto de demandas do ambiente quanto das próprias particularidades do organismo. O self só existe e só pode ser compreendido quando em contato e na relação com o ambiente.

O self tem a seu serviço ações e capacidades especializadas, ou seja, o sistema de funções de contato. “O self e as funções de contato são um e o mesmo para a visão gestáltica” (KEPNER, 2001, p. 10).

As funções de contato descrevem a forma básica pela qual interagimos com o ambiente com vistas à satisfação de nossas necessidades e ajustamentos a mudanças. É por meio dessas funções que percebemos nossas necessidades, nos organizamos para satisfazê-las na relação com o ambiente. Pela manipulação no ambiente agimos à serviço da necessidade. Pela identificação assimilamos o que pode ser assimilado e pela alienação, rejeitamos o que não pode ser assimilado. (KEPNER, 2001).

Para que nosso funcionamento seja integral e adaptativo, é necessário que as funções de contato estejam totalmente disponíveis para que a pessoa encontre as variadas formas de interação com o ambiente. Se as funções não estão disponíveis à awareness, a pessoa não consegue adaptar-se de forma fluida em seu mundo.

Esses aspectos das funções que não estão totalmente disponíveis e que, não são experienciados como self, limitam as capacidades de contato.
Quanto mais limitadas forem essas capacidades, mais fragmentadas, desorganizadas e sujeitas à resistencia estarão as experiências de self e do mundo.

Polster (2005) propõe uma população de selves ao afirmar que “o self refere-se a influência mútua entre quaisquer aspectos da pessoa que entrem em foco, cruzando a linha entre superfície da experiência e profundidade. Essa mutualidade considera a superfície da experiência pelo que se apresenta e não como um simples substituto para aquilo que está obscurecido. Na linguagem do self, isso significa que não existe um self real, escondido pela experiência imediata, mas preferencialmente como uma comunidade de selves que rivalizam entre si por ascendência.” (POLSTER, 2005, p. 5)

A introjecão é o processo vital pelo qual as pessoas criam versões de si mesmas. Essas versões podem ser “reais”, conguruentes e até mesmo errôneas. As pessoas desenvolvem visões “tortas” de si mesmas pela sobrecarga de requerimentos com os quais defrontam-se ao relacionar-se com um mundo embebido de experiências, assim sendo, as introjeções podem ser fontes erradas para a formação de selves; “assim como a introjeção abre o paciente à organizacao dessas mensagens enganosas sobre si, ela também pode, em terapia, abrí-lo a novas mensagens e a uma reorganização de selves antigos”. (POLSTER, 2005, p. 29-30).

Isto posto, sobrevem a pergunta: como as introjecões da relação mãe-filha dão forma à mulher e por conseguinte, sua população de selves?

A Relação Mãe-Filha
Ser mulher é um conceito existencial que começa a ser desenvolvido primeiramente através da relação com a mãe e se desenvolve ao longo da vida.
A relação mãe-filha é uma das relações mais intensas que a mulher vivencia em sua vida e tem um efeito poderoso na forma com que ela se relaciona consigo mesma e com o mundo. Portanto, muito do senso de si da mulher evolui a partir da relação com sua mãe (PILL & ZABIN, 1997). A relação mãe-filha é, portanto o ponto de partida para o desenvolvimento da mulher. Esta díade relacional distingue-se das demais díades familiares por caracterizar-se como um poderoso processo mútuo e bi-direcional. Mãe e filha empreendem um crescimento em conexão a qual servirá de paradigma para todas as outras relações.

Ao descobrir-se grávida, a mulher vivencia um dos momentos mais significativos em sua vida, que é tornar-se mãe. Todos seus anseios, desejos, expectativas e temores em relação à maternidade e à futura criança participarão nessa interação.
É necessário destacar que grande parte do que essa nova mãe define, espera e fantasia sobre maternidade foi construído na relação com sua própria mãe. E assim, tudo o que foi vivenciado com sua mãe servirá como pano de fundo para esta nova relação. Firman & Firman tornam claro o que estamos discutindo, quando afirmam que “Há uma longa e complicada história por trás de uma menina. Ela não só inclui o histórico pessoal da mãe, mas os papéis sociais, regras, tradições e expectativas que a mãe passa para filha como parte da tarefa que ela tem.” (FIRMAN & FIRMAN, 2005, p. 27)

Ao experimentar uma identificação maior com a filha, a mãe projeta-se na menina. Isto significa que ao olhar para a filha, a mãe vê a si mesma. Ao reproduzir-se, sentimentos acerca de si mesma que foram experimentados na relação com a sua mãe são projetados na menina. Ao relacionar-se com seu “self filha” e não com sua filha real, a mãe acaba por experimentar a filha como extensão e continuidade de si mesma (CHODOROW, 1978). Desta forma, a relação é marcada por confluência, pois as fronteiras entre mãe e filha não ficam claras e “em confluência, a pessoa demanda semelhança e se recusa a tolerar quaisquer diferenças” (PERLS, 1973, p. 39). Desta forma, a mãe se vê na menina e espera que
a filha seja como ela. A filha, por seu lado, vive a dupla função da mãe: aquela que cuida e é a base de seu crescimento e o principal exemplo a ser seguido. A filha vê na mãe sua iminente condição de mulher (FIRMAN & FIRMAN, 2005).

A menina, ainda bebê, começa a aprender coisas sobre si mesma e seu ambiente por meio da relação com a mãe. Nesse primeiro momento cabe à mãe descobrir e atender as necessidades da filha, como também é a mãe quem diz à essa menina quem ela é. Ou seja, o desenvolvimento inicia-se através de introjeções totais “[...]

A imagem é incorporada mais ou menos in toto” (PERLS, 2002, p. 195).

O processo de introjeção é, no início, fundamental para a menina em função de sua dependência e de seus parcos recursos para lidar com suas necessidades e com o mundo. É, por conseguinte, a base na qual a bebê construirá seu conhecimentoa respeito de si e do mundo. Conforme a menina cresce, seus recursos emocionais, físicos, sociais e cognitivos ampliam-se, o que leva a uma maior inserção social e uma maior independência e diferenciação.

Como todo o desenvolvimento se dá em um campo sócio-cultural, este sofre as influências de seu meio. Assim sendo, as meninas experimentarão uma menor pressão social para separarem-se de suas mães, uma vez que ainda existem expectativas sociais para a mulher, tais como aquela que cuida, ajuda, cria (DIETRICH et al., 1999). E neste processo de separação e individuação, que é influenciado por fatores sócio-culturais, as meninas experimentam-se menos separadas de suas mães.

Mãe e filha mantêm, então, essa relação próxima enquanto a filha desenvolve sua identidade. Em função dessa identificação prolongada, as filhas se percebem mais como suas mães e irão, também, lutar ao longo da vida para se separarem de suas mães; o que gera períodos de conflitos, confluência e ambivalência.

Inicialmente, aos pés e no colo de nossas mães, muitas lições são aprendidas: formas de ser e não ser, o que é certo, o que é errado, permissões e proibições são dadas. Ao longo da vida, a filha empreenderá um contínuo processo de desenvolvimento de identidade e precisará através de ajustamentos criativos, assimilar e rejeitar características, habilidades, competências do que é ser mulher. Durante sua vida, a filha precisará experimentar e desenvolver a sua boa forma de ser mulher e tudo o que isso representa, ou seja, ela poderá assimilar e rejeitar aquilo que foi apreendido com sua mãe e aquilo que é sua vivência no mundo.

As introjeções podem nos ajudar a desenvolver nosso potencial e viver em autenticidade, mas podem também nos parasalisar em regulações deverísticas.

A importância de se explorar as introjeções da relação mãe-filha na terapia Como já colocado, a relação mãe-filha - uma das mais intensas e íntimas na vida da mulher- serve como paradigma para outras relações bem como interfere na forma com a qual a mulher se relaciona consigo mesma, com os outros e com o mundo.

Dessa forma, é necessário estar atento, pois as mais diversas questões podem envolver a relação mãe-filha ainda que essa relação não apareça como figura.

Isto posto, fica claro que a importância de se explorar essa relação não é a de apenas resolver situações inacabadas com a mãe, transformar a relação dessa diade, mas, também, através da exploração compreender como essas influências dão forma a mulher que ela é hoje. É atuar no campo em busca de uma boa forma; a proposta não é aniquilar partes dela, mas sim trazer a proposta de Polster quando afirma “o que estou propondo é que os selves que estão no fundo são vozes contrapontísticas, talvez não ouvidas, pelos selves ascendentes; o alvo da totalidade é ouvir essas vozes simultaneamente” (POLSTER, 2005, p. 6). A chave para o equilíbrio não é se introjetamos ou não, mas sim o quão essas experiências estão bem integradas na mulher.

Bibliografia

CHODOROW, N. The reproduction of Mothering. Berkeley: University Press of California, 1978.

DIETRICH, P. J.; McWilliam, C.L.; Ralyea, S.F.; Schweitzer, A.T. Mother-loss: Recreating relationship and meaning. Canadian Journal of Nursing Research, 31 (2), 77-101, 1999.

FIRMAN, J.; Firman, D. Filhas e mães: fazendo dar certo. São Paulo: Editora Landscape, 2005.

KEPNER, J.I. Body Process: A gestalt approach to working with the body in psychotherapy. Santa Cruz: Gestalt Press, 2001.

PERLS, F. The Gestalt approach & eye witness to therapy. Science &
Behavior Books, 1973.

_______. Ego, fome e agressão: uma revisão da teoria e do método de Freud. São Paulo: Summus, 2002.

PILL, C.J.; ZABIN, J.L. Lifelong legacy of early maternal loss: a women’s group. Clinical Social Work Journal, 25 (2), 179-195, 1997.

POLSTER, E. A population of selves: A therapeutic exploration of personal diversity. Maine: Gestalt Journal Press, 2005.