Tema-livres 5: Existência como possibilidade de abertura


5.2 Espiritualidade e Gestalt-terapia – a legitimação da experiência espiritual no processo terapêutico

 

Lívia Maria Bione da Silva

 

Resumo

O objetivo desse trabalho é refletir como a gestalt lida com a experiência
espiritual dos clientes, a legitimação e implicações da espiritualidade na
relação terapêutica. Observamos conceitos como contato e fronteira de contato relacionados à vida espiritual e a espontaneidade e autenticidade implicadas nesta.

Entendemos que se a espiritualidade é parte das experiências de nossos clientes ela também é campo de exploração, também é possibilidade em setting.

Proposta

Este trabalho reflete uma perspectiva acerca do tema “espiritualidade” no campo científico, especificamente, na Psicologia, tendo como fundamento a abordagem gestáltica. Um dos objetivos é desenvolver um enfoque sobre como a Gestalt-terapia lida e trabalha com a dimensão espiritual. Aqui o conceito de espiritualidade é definido como um transcender à lógica racional, como atribuição de potencialidade pelo sujeito à sua experiência de fé e de contato com um Deus em sobreposição à demais experiências em sua vida. Ao gestalt-terapeuta fica o entendimento da experiência espiritual de seus clientes como possibilidade e não como entrave no processo terapêutico.

A ciência, nos últimos anos, diferenciou transcendência, como sendo algo que está fora da realidade apreendida pelos sentidos, fora do mundo material, de imanência, que é entendida como algo que está na ordem do concreto, real. Nesse sentido, mundo espiritual e mundo material estão dissociados. Porém, não parece existir uma impossibilidade de existência de transcendência na imanência, ou seja, do homem transcender em sua vida concreta, em sua realidade empírica. Segundo Vasconcelos (2006, p. 31):

Historicamente o ser humano tem-se mostrado um ser de protest-ação, de ação de protesto. Recusa-se sempre a aceitar a realidade na qual está mergulhado, seja ela a mais adocicada ou a mais violenta. Ele não se encaixa em nenhum sistema social, seja ele repleto de consumos inebriantes ou de requintados mecanismos de coerção intelectual. Nos momentos mais difíceis, seu humor relativiza todas as coisas e delas ri, mostrando que não está definitivamente encurralado. Esta dimensão de abertura e força do ser humano (nem sempre percebida e valorizada) de romper barreiras, de superar proibições e de ir além de todos os limites é a sua transcendência. Transcendência é essa abertura e atração pelo infinito em seres tão marcados pela limitação.

Tal qual em Vasconcelos, a idéia de transcendência desse projeto está no potencial humano presente no agir criativo, no ir além, na capacidade humana de ampliar horizontes e reconsiderar fronteiras a cada experiência. Isto é transcender.

No que tange a espiritualidade, entendemos que o contato humano com suas divindades o mantém próximo do sentimento de transcendência onde o sujeito se percebe mais forte, mais pleno e mais competente para lidar com as adversidades da sua rotina. Acreditamos na existência de mais de um “veículo” onde essa transcendência é possível. Para uns ela é acessada pela arte, música, poesia; em outros, ela é acessada através de práticas religiosas diversas, rituais, drogas psicoativas, experiências de transe e êxtase espiritual dependente da estratégia. Inescolhida pelos indivíduos, tais experiências parecem permitir contato com dimensões da sua subjetividade e podem, inclusive, relativizar outras dimensões da vida.

Não falaremos aqui em poesia, música ou história da arte como sendo esse veículo possível para a experiência de transcendência. Escolhemos falar em espiritualidade.

Há poucos trabalhos no campo da Gestalt que reflitam a questão da espiritualidade sendo, a maior parte destes, uma explanação acerca da aproximação de Perls à práticas orientais bem como possivéis influências destas práticas no desenvolvimento dos projetos do autor. Talvez, Perls (1973) nos dê sutilmente algumas pistas como, por exemplo, em Testemunha Ocular da Terapia, ao falar sobre o terapeuta:

Idealmente o terapeuta deveria agir em cumplicidade com as exigências dos sábios orientais: “Torne-se vazio para que você possa ser preenchido.

Alguns autores, no entanto, refletem a aproximação de Perls ao Zen-budismo.

Segundo Ribeiro (1985): “do meu ponto de vista, a postura gestáltica de vida tem muito a ver com um sentido religioso existencial, facilitando uma concepção de Deus, enquanto um ser totalmente presente na existência e, não obstante isto, totalmente respeitador da individualidade de cada um. A postura gestáltica me faz lembrar um abrir de portas para o encontro existencial do sentido espiritual do ser humano, tal como o zen promove
e proclama.” (p. 125)

Nesse momento, podemos refletir conceitos da Gestalt e a forma como o conceito é tratado na prática clínica para, em seguida, iniciarmos uma interlocução com a questão da espiritualidade. Escolhemos refletir conceitos centrais na abordagem gestáltica, as noções de contato e de fronteira de contato. Em ambas a Gestalt reflete a forma como entende o sujeito em sua relação com o mundo e com seus próprios conteúdos; o movimento do sujeito para dentro e para fora e sua competência para lidar com conteúdos novos e antigos, internos e externos etc.

Entendemos que a espiritualidade é uma das muitas experiências de contato do sujeito. Como todas as outras experiências também a partir da vida espiritual, como dito por Perls, o indivíduo constitui seu ego e limita seu campo pessoal, define o que é dele e o que não é dele.

Aspecto importante a ser considerado, é o movimento que se segue após ou durante o contato com a experiência espiritual. É habitual que devotos relatem uma espécie de mergulho profundo em si mesmo, um contato intenso com seus conteúdos internos diante práticas espirituais diversas. Seja uma reunião de cantos devocionais, práticas de oração coletiva ou individual, meditação etc. são freqüentes os relatos que apontam para um contato “intenso” com conteúdos internos, uma mobilização de sentimentos e emoções muito forte capazes de despertar surpreendentes desejos de transformação interior e de enfrentamento da realidade exterior. Há relatos de grandes insights nessas experiências de retraimento do contato para si mesmo que ocorre seja logo após uma prática, seja durante a realização da mesma.

A Gestalt-terapia permite a inclusão da experiência espiritual conforme sua teoria indica: como mais um campo de possibilidade. Na terapia não há porque se distanciar da autenticidade dessa vivência nem mesmo da espontaneidade com que ela é vivida pelos nossos clientes. Para isso precisaremos, tal como a abordagem gestáltica nos estimula, ser terapeutas mais criativos, mais atentos, mais autênticos e espontâneos e mais sensíveis.

Incluir a dimensão espiritual envolve alguma ousadia mas também aponta uma necessidade, pois nessa vertente teórica, trabalhamos com a noção de totalidade integrada que vai além do “corpo-mente”. Mesmo que tenhamos tido uma vida acadêmica em moldes cartesianos como dificultador tivemos também com a gestalt o estímulo para uma abertura e para uma ampliação de nossos conceitos e avaliações. Na relação terapêutica em si, pode acontecer do terapeuta acreditar que não deve considerar a experiência espiritual que se apresenta no discurso dos clientes como uma “pista”, como um campo de investigação ou de trabalho por motivos diversos, talvez, implicados nas experiências do próprio terapeuta. Acreditamos, porém, que terapia e vida espiritual, bem como as demais experiências do indivíduo, seguem em paralelo, num benefício mútuo.

Não raro terapeutas ouvem em consultório como uma missa, um ritual etc foram satisfatórios emocionalmente para seus clientes e, ainda, como a terapia colaborou para que esses clientes estivessem mais “inteiros”, mais “entregues” em sua fé, em suas crenças.

Entedemos, portanto, que quando clientes referem em seus discursos suas experiências espirituais, sua fé, suas práticas, quando estamos frente esse tipo de demanda em consultório, estamos diante de um conteúdo que tem valor para aquele sujeito e também pode ser devidamente avaliado, investigado e trabalhado na relação terapêutica. Acreditamos que esse projeto também nos conduz, nessa reflexão, a uma ampliação de nosso campo, uma revisão das nossas possibilidades e uma aproximação individual para a nossa própria espiritualidade, para a espiritualidade que habita em cada um de nós e que nos torna divinos, como visto por Hycner, pelo simples encantamento pela vida em si mesma.

 

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