Tema-livres 5: Existência como possibilidade de abertura
5.1 Um olhar gestáltico sobre o fazer teatral
Renata Cristin de Sá Oliveira e Felipe Fonseca de Freitas
Resumo
Trabalho realizado a partir da experiência profissional dos autores, que
estabelece o diálogo entre a ONG Espaço Artaud e a Gestalt-terapia,
tendo o grupo teatral. Os Nômades como ponte de reflexão, que,
ao enfatizar as potencialidades dos sujeitos, atua na produção
de saúde e favorece a inclusão de pacientes psiquiátricos.
Proposta
“É preciso acreditar num sentido da vida renovado pelo teatro, onde o homem impavidamente torna-se o senhor daquilo que ainda não é, e o faz nascer. E tudo o que não nasceu pode vir a nascer contanto que não nos contentemos em permanecer simples órgãos de registro” (ARTAUD, 1993, p. 7).
Diferente da maioria das propostas que trabalham com arte no âmbito da saúde mental, cuja finalidade finca-se como um meio de tratamento, a Companhia de Teatro Amador Os Nômades, projeto realizado pela Organização não governamental Espaço Artaud, apresenta-se como um espaço de aperfeiçoamento das habilidades artísticas, favorecendo a inclusão dos usuários em atividades de reconhecido valor social, dando voz à sujeitos por muito sentenciados ao silêncio de um diagnóstico por si adoecedor. Neste sentido, enfatiza a potencialidade do ser humano, independente dos ‘acometimentos’ psíquicos.
Entretanto, é evidente
que seu fazer teatral não fica totalmente neutro,
destituído de qualquer qualidade terapêutica. Todas as relações
e criações coletivas que se realizam nos ensaios e aulas semanais
são “encharcadas” de suas reconstruções, de
reinvenções dos sujeitos que se abrem no tempo e no espaço
para encontrar-se e desencontrar-se com suas possibilidades de ser e estar no
mundo.
“Teatro é encontro. Todas as vezes que eu vou para o ensaio, todas as vezes que a gente tem apresentação, é o encontro com o outro, é o encontro comigo, é o encontro com as minhas emoções.” (Tânia de Oliveira, atriz da Companhia, apud PONTO CEGO, 2007)
O teatro é tomado como um aspecto vital da sociedade, uma vez que sua natureza pressupõe a comunicação. É considerada a linguagem artística mais completa, pois “implica uma centralidade artística em relação a todas as outras formas de arte: é fonte de música, dança, artes visuais e literatura” (COURTNEY, 2003, p. 162).
É, ainda, uma invenção humana na medida em que “possibilita e promove todas as outras invenções e todas as outras descobertas” (BOAL, 2002, p. 27). Trata-se, portanto, de um espaço estético com dimensões múltiplas (afetos, memórias e imaginação estão presentes), criado na relação com o outro (espectador ou ator).
É neste tom que o Espaço Artaud aproxima-se da Gestalt-terapia. Apesar da ONG não ter se estruturado nesta abordagem, nos autorizamos a construir no presente artigo este diálogo, possibilitando uma visão do Espaço como um ambiente com possíveis características fenomenológicas e existenciais na produção de saúde.
Saúde não referente a normatividade biológica, rica em juízo de valor ao transformar um caráter comum (normal) em valor ideal, e em contrapartida, o inabitual ou anormal, receber a desqualificação do valor de inaptidão do peso da doença. (JASPER apud CANGUILHEM, 1995)
Segundo Lima (2006), Goldstein recebe influência de Jasper ao defender que a doença é muito mais um valor social do que um conceito médico. Compreende o funcionamento do ser humano por um aspecto holístico, questionando procedimentos reducionistas que muito contribuíram para a visão capaz x incapaz.
É com esta compreensão que a Gestalt-terapia se ergue, abandonando visões sectárias que criam ideais de normalidade e estigmas da anormalidade. A fenomenologia ‘empresta’ a Gestalt-terapia a visão da saúde não limitada a causas, ampliando a percepção do campo da saúde a partir de uma perspectiva multifacetada por diferentes fatores através da experiência direta de cada um (GOMES et al., 2008).
“A investigação fenomenológica busca compreender o que acontece com o sujeito na sua interação com o mundo, como a sua consciência é afetada pelos acontecimentos, lançando mão das descrições, dos depoimentos, dos discursos, das maneiras pelas quais são expressos os pensamentos e os sentimentos dos sujeitos [...].” (GOMES et al., 2008)
Inserido no contexto da reforma psiquiátrica, a riqueza do trabalho da Cia. De teatro está em seu próprio exercício, ao proporcionar um espaço, no caso artístico, que valoriza o humano, na sua capacidade de criação/ transformação, lidando com aspectos saudáveis, permitindo que seus membros experimentem suas próprias potencialidades.
Em uma de suas peças, intitulada Ponto Cego, o grupo atua a partir da sua própria demanda, co-construindo aquilo que representa. A temática é o próprio existir em uma sociedade padronizadora, com inúmeras regras de conduta, gerando cidadãos, ditos por eles, robóticos.
“A sociedade exige conformidade através da educação; enfatiza e recompensa o desenvolvimento intelectual do indivíduo. [...] Cada cultura e os indivíduos que a compõem criaram certos conceitos e imagens do comportamento social ideal, ou formas como o indivíduo ‘deveria’ funcionar dentro desta estrutura de referência.” (PERLS, 1977, p. 20)
Desta forma, ao mesmo tempo que observamos uma prática médica predominantemente focada na doença, no reducionismo biológico, que fragmenta o ser humano e valoriza um padrão ideal de bem-estar, o Espaço Artaud aproxima-se do diálogo proposto por Ludmila Vieira no artigo “Reflexões acerca da esquizofrenia na abordagem gestáltica”, entre as atuais políticas de saúde e a Gestalt-terapia. Sua forma: o teatro.
A abordagem gestáltica aponta para a importância de reconhecer o sujeito como um ser em relação e como tal afetado por estas. O sujeito-ator, sendo autor de sua própria vida, toma consciência deste processo de construção pessoal a partir da experimentação de si na relação com outro. Isto significa que ele amplia a sua auto-percepção propiciando o desenvolvimento de sua awareness. É atuando que estes cidadãos-atores vão respondendo criativamente as suas necessidades, desenvolvendo outras formas de estar no mundo.
A experimentação artística permite a expressão por meio de uma linguagem sensorial e intuitiva, o que possibilita que a vida se manifeste na “emergência da afirmação de si-mesmo-no-mundo, na integridade de sua multiplicidade e na processualidade de seu devir” (FONSECA, 1989, p. 9). A criação, portanto, emerge de uma necessidade vital do sujeito:
“Criar não
representa um relaxamento ou esvaziamento pessoal, nem uma substituição
imaginativa da realidade, criar representa uma intensificação
do viver, um vivenciar-se no fazer[...]. Daí o sentimento
do essencial e necessário no criar: o sentimento de um crescimento interior,
em que nos ampliamos em nossa abertura para vida.” (OSTROWER apud CIORNAI,
2004, p. 69)
A vivência da representação é, portanto, uma experiência estritamente relacional e uma experimentação dicotômica de si, na medida em que o sujeito vivencia diversas relações antitéticas no mesmo momento: “Em cena, o ator é quem é, e é quem parece ser. Está agora aqui, diante de nós, e está distante, em outro lugar, em outro tempo, onde se passa a história sendo contada e vivida: é Sérgio Cardoso e é Hamlet” (BOAL, 2002, p. 36).
Numa visão sistêmica, a Gestalt-terapia compreende que qualquer tentativa de separação para uma compreensão ou distinção do sujeito é virtual e sem validade. Isto porque o sujeito é compreendido como parte de um sistema de relações e, portanto, sofre e provoca interferências. Sendo assim, é preciso compreender o sujeito nestas afetações, nestes limites, nestas fronteiras. Interessa-se, portanto, pelo trabalho com o sujeito no “entre”, num movimento contínuo com o que há em sua volta.
Ao pensar no exercício do teatro podemos entender nitidamente a relação dialógica “eu-tu”, onde cada pessoa é impactada e, ao mesmo tempo, respondente deste impacto.
Farah (2009) nos lembra da característica do ser humano como um ser social, inserido em grupo desde o seu nascimento, sendo o contato a “matéria prima da relação humana”.
Pensando o grupo, e mais especificamente o grupo de teatro, e o entendendo como um organismo, apresentando as mesmas características dos outros organismos, notamos nitidamente sua busca pela totalidade e auto-regulação, o que vai de encontro com a idéia central de Goldstein (RIBEIRO apud FARAH, 2009).
O grupo interage de maneira própria, relacionando-se como uma grande engrenagem, comprometendo cada integrante com o todo. Desta forma, respondem as situações apresentadas, como algum integrante que é internado ou chega mais agitado para o ensaio, não individualmente, mas coletivamente, dando conta, saudavelmente ou não, do que os tirou do estado de possível equilíbrio.
Alem disso, a atividade artística, aponta para uma pluralidade de conteúdos possíveis entre aquele que produz e aquele que recebe a comunicação. Por conta disso, a relação entre os envolvidos é facilitada e ampliada, já que ao olhar do observador o sentido construído pelo artista se transforma.
Por outro lado, a mudança também se apresenta naqueles que assistem – os espectadores. Ela ocorre, principamente, sobre o etiquetamento que a Psiquiatria institui nas pessoas que apresentam sofrimento psíquico.
Certa vez, um paciente de um CAPS, após uma apresentação do grupo improvisou uma paródia em agradecimento e concluiu sua canção com um refrão emocionado: “Eu quero ser normal igual a vocês, eu quero ser normal igual a vocês...”. Outro exemplo disso foi o relato de uma médica, que após assistir a apresentação, disse que ficara impressionada com o trabalho, pois o “público” (segundo ela) ficava esperando um erro e era surpreendido pelos atores que desempenham muito bem o seu papel.
No teatro, cada encontro entre ator e observador representa uma transformação e uma reinvenção da relação, mediada pela produção artística, que adquire novo significado de acordo com a interpretação e afetação produzida.
Não tornando invisível a dificuldade de contato presente na psicose, o que vemos com a realização deste trabalho teatral, por valorizar o aqui agora, a percepção e o sentimento de cada um, incentiva gradativamente o próprio contato, ampliando as relações com as pessoas do próprio grupo e dos espaços que se apresentam, experienciando-se em seus limites, suas fronteiras. Desta forma, a cia de teatro torna-se o espaço ideal para o desenvolvimento das potencialidades de cada um.
Referência bibliográfica
ARTAUD, A.. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BOAL, A. O arco-íris do desejo – método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
CANGUILHEM, G.. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
COURTNEY, R. Jogo, teatro e pensamento. São Paulo: Perspectiva, 2003.
FARAH, A.B. Psicoterapia
de grupo: reflexões sobre as mudanças no contato entre os membros
do grupo durante o processo terapêutico. Revista IGT na Rede, v.6, nº.
11, 2009, p. 302-328. Disponível em:
< http://www.igt.psc.br/ojs/ISSN 1807 – 2526>
FONSECA, A.H. Psicoterapia
& Arte: considerações sobre um nexo
desencontrado. Maceió: mimeo, 1989.
CIORNAI, S. (org.) Percursos em Arteterapia: Arteterapia Gestaltica, Arte em Psicoterapia, Supervisão em Arteterapia. São Paulo: Summus, 2004.
GOMES, A.M.; et al.Fenomenologia, humanização e promoção da saúde: uma proposta de articulação. Saude soc. São Paulo, vol. 17, nº 1, Mar. 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902008000100013
PERLS, F.S.; et al. Isto é Gestalt. São Paulo: Summus, 1977.
PONTO CEGO. Produção de Will Pantaleão e Júlia Spadaccinni. Rio de Janeiro, 2007. DVD (14 min). Documentário sobre a Companhia de Teatro Amador Os Nômades, com depoimentos dos atores da Cia. Disponível (trecho) em: http://www.youtube.com/watch?v=B8KPqwuYZeA
VIEIRA, L.a. Reflexões
Acerca da Esquizofrenia na Abordagem Gestaltica. Revista IGT na Rede, vol. 7,
nº 12, 2010, p. 78-80. Disponível em < http://www.igt.psc.br/ojs
ISSN 1807-2526>