Palestrantes:
Alexandra Tsallis, Joana Mattos e Luciana Cavanellas.
Moderadora: Gladys D’Acri.
Resumo:
O desafio contemporâneo proposto para o corpo é escapar das concepções
puras, sejam elas, de um corpo natural, biológico, humano, para ser pensado
como expressão de limites e possibilidades. Pretendemos discutir o corpo,
virtualidade de múltiplos sentidos e de sentidos que se multiplicam,
como território de ajustamentos criativos - saudáveis ou nem tanto
- e sobretudo como experiência de um cotidiano encarnado.
5.1 Em-carnar o avesso do processo civilizatório
Alexandra Tsallis
“O real não está nem na saída nem na chegada. Ele se dispõe para gente é na travessia.” (GUIMARÃES ROSA, 1986, p. 52)
A idéia de travessia sugere o desenrolar de um processo, que não se esgota nem num ponto de chegada nem um ponto de partida. Nesse sentido, a travessia é impregnada de continuidade, plena de mistério, já que ela só se dá no devir, no por-vir. Estar em travessia não é tarefa fácil. A alternativa proposta Heidegger (2000) é assumir a serenidade dos pastores diante da situação de co-responder ao mundo, sabendo que a resposta não está nem em nós nem no mundo. Isso resulta em permanecermos na travessia, dispondo-nos de maneira indissolúvel em relação ao mundo.
Com efeito, essa proposição visa explicitar qual a trajetória que pretendo seguir para discutir os efeitos produzidos no ato refletinte quando este se propõe a trabalhar com o método fenomenológico (epoché), em particular, vislumbrar quais os contornos assumidos por um encontro em-carnado, vividos na carne.
Dessa forma, não se trata de defender o que vem a ser, de fato, a Fenomenologia em oposição a possíveis outras leituras, mas pensá-la, antes de tudo, como método. Isso acarreta considerá-la como um meio e não um fim em si mesma, cuja decorrência básica é que ela não tem nada a dizer previamente sobre o mundo.
Trata-se antes de tudo, de uma forma de deixar que o fenômeno se mostre ele mesmo – uma forma de colocar a essência na existência. Já de início esse princípio tem uma profundas implicaçãos, qual seja, abrir mão, suspender o juízo a priori, para debruçar-se novamente sobre o fenômeno, tal qual eles se apresentam. Essa atitude pode ser mantida infinitamente, o que significa tomar o fenômeno em sua dinâmica e não enquanto uma realidade estática. Afinal, como ensina Merleau-Ponty (1999) “O maior ensinamento da redução é impossibilidade de uma redução completa.” (p. 10)
O atual movimento da pragmática fenomenológica (DEPRAZ, VARELA, VERMERSCH, 2003) faz referência à retomada do método da redução. Ele destaca a importância do método da redução (epoché), mas adverte que Husserl nunca explicou muito bem como praticá-lo. Este é o desafio da pragmática fenomenológica: tomar a epoché como uma prática efetiva. O conceito, para que Husserl conceba a Fenomenologia, bem como o método fenomenológico, é o da intencionalidade da consciência. “A palavra intencionalidade nada significa senão essa particularidade fundamental e geral que a consciência tem de ser consciência de alguma coisa, de portar em sua qualidade de cogito, seu cogitatum nela mesma.” (HUSSERL Apud DEPRAZ, 2007, p. 35). Portanto, a consciência é sempre consciência de alguma coisa. Nesse sentido, não é possível falar em uma consciência pura, pelo contrário, trata-se de uma consciência lançada ao mundo, ao mesmo tempo em que permanece na carne. Com isso, a epoché constitui um método descritivo rigoroso que visa abordar as vivências, superando assim a dicotomia entre sujeito e objeto. Vale destacar o modo pelo qual se define vivência.
Segundo Depraz (2007), é possível dizer que o projeto fenomenológico proposto por Husserl se alicerça sobre essa concepção. “Nem conteúdos, nem estados, nem atos da consciência, as vivências de um sujeito formam a textura imanente de sua consciência, pela qual é capaz de se apropriar dos objetos do mundo, percebendo-os a princípio em sua qualidade sensorial, material e sensível.” (p. 27)
Para chegar
à descrição das vivências Husserl decalca seu método
com base na redução (epoché), onde o primeiro passo deve
ser aquele em que a consciência realiza uma conversão reflexiva
– que ela se volte sobre si mesma – não se encerrando de
maneira conclusiva (como no cogito cartesiano), mas sob a forma de um espiral,
uma mola que pulsa entre o que se percebe (noese) e o que é percebido
(noema). Desse modo, em se tratando da proposta fenomenológica, essa
própria dualidade se revela em sua volatilidade, já que o movimento
de “voltar às coisas mesmas” proposto por Husserl não
significa assumir uma posição realista.
Segundo Depraz (2007), a palavra por ele utilizada foi sache e não dinge,
sendo que a última se refere à coisa no sentido material, enquanto
a primeira designa questão, problema. Dessa forma, na conversão
reflexiva, a consciência retorna à questão, o que permite
escapar simultaneamente tanto do subjetivismo absoluto quanto do objetivismo
contingencial. “É o paradoxo segundo o qual eu posso voltar deliberadamente
minha atenção para o interior, não para ir buscar alguma
coisa, mas para acolher o que pode se manifestar, ou o que sou capaz de deixar-se
manifestar.” (DEPRAZ, VARELA E VERMESCH, 2006, p. 83)
É nesses
termos que se parte para a variação eidética, onde, em
primeira mão, não importa a apreensão de cada vivência
factual e sim descrever “essências de vivências que permanecem
singulares e concretas sem, entretanto, serem particulares.” (DEPRAZ,
2007, p. 37). Portanto, almeja-se o ultrapassamento de um ponto de vista relativo
e provisório para atingir a singularidade presente na “multiplicidade
concreta dos encontros contingentes.” (ibidem). Nesses termos, a variação
eidética não pretende uma indução capaz de generalizar
o dado fenômeno, que, pelo contrário, deve permanecer singular.
É possível falar da epoché como um gesto suspensivo que
já germina tanto na conversão reflexiva quanto na variação
eidética. Trata-se de suspender, colocar entre parênteses os juízos,
de modo a permitir que se possa retornar às coisas e abrir a possibilidade
para uma nova doação de sentido, para co-responder ininterruptamente.
Na concepção merleau-pontiana, seria operar uma dialética
sem síntese, uma vez que ela assegura o movimento, o permanecer em movimento.
Assim, entendendo o colocar entre parênteses como um ato suspensivo central
e passível de ser mantido ininterruptamente, coloca-se a questão
de como isso se opera do ponto de vista do encontro em ação, ou
nos termos da metáfora inicial: como entender esse movimento na travessia?
“O ato refletinte parte de uma relação “silenciosa”
ou no “vazio” no que se refere à experiência. É
mais da ordem do acolhimento, da escuta, da impregnação, da contemplação,
que da busca pré-determinada.” (DEPRAZ, VARELA, VERMERSCH, 2006,
p. 83). Abre-se uma fenda, estabelece-se um recuo diante do já sabido,
para ir em direção às novas possibilidades de doação
de sentido. Desta feita, a reflexão faz vislumbrar outros horizontes
de ser, o que significa a encarnação de um processo de escolha
vivencial.
Assim sendo, temos um encontro que vira arte, essa arte como expressão genuína, vivência última e primeira, única e principalmente intransferível, reservada ao mistério - a arte como experiência de estar no mundo, que anseia pelo “como”, pela em-carnação de cada um. A vida como travessia permite que o precedente seja re-criado a cada instante.
De acordo com isso, é importante para mim não somente pensar em civilizar (educar) as crianças, mas também me deixar civilizar por esse outro povo, que são elas. Dito isto passo ao vivido. Se pudesse intitulá-lo, seria: A outra face de civilizar crianças, ou O processo civilizatório ao contrário.
Em-carnando
o Vivido
Flora e eu caminhamos de mãos dadas na rua quando voltamos da escola,
alternamos períodos de silêncio e conversas. Em geral, ficamos
entregues às vontades daquele dia. Há sempre um momento em particular
que ela solta minha mão - quando passamos por um jasmim mangueira que
se encontra no jardim de um dos prédios próximos à nossa
residência. Não sei como, mas essa árvore tem flores o ano
todo. Flora sempre recolhe as que ainda permanecem belas no chão e as
entrega de presente pra mim. Eu agradeço com alegria, por vezes as colocando
no cabelo ou as levando na mão até chegarmos em casa, onde as
coloco em um vasinho. Enfim, assim é nosso retorno da escola para casa.
É bonito seu gesto, ela apenas as entrega a mim como se aquilo fosse
necessário: passar por flores no chão ao lado de alguém
significa dá-las de presente. Flora não o faz somente comigo,
mas igualmente com outras pessoas que ela gosta.
No domingo,
passamos por outra árvore, que também tinha entregado suas flores
ao chão. Flora novamente recolheu algumas e as deu de presente para mim.
Eu as recebia com alegria como sempre. Dessa vez, as coloquei nos meus cabelos.
Seguimos caminhando e ela subitamente me fez uma pergunta: “Mamãe
por que você nunca me deu uma flor?” Senti um silêncio indescritível
diante daquela pergunta. Eu já lhe dei flores em outras ocasiões,
mas não naquela. Ela tinha motivos para fazer aquela pergunta. O tempo
se dilatou e enquanto eu a olhava tinha uma cascata de questões na cabeça:
se fosse ela uma outra pessoa qualquer, que ao caminhar, ao meu lado, sempre
me desse flores? Se eu fosse uma antropóloga tentando entender uma cultura
desconhecida e, durante minhas caminhadas, ao lado dos nativos, eles tivessem
esse gesto, o que eu teria feito?
Suponho que teria retribuído o gesto. Que lugar é esse que damos
aos filhos, e as crianças, que toma sempre como referência a nós
mesmos enquanto centro?
Talvez, um adultocentrismo? A pergunta que ela tinha me feito possuía
um grau de simplicidade gigantesco. Claro, que de imediato me desculpei, mas
isso era muito pouco, pelo menos para mim, frente ao deslize que vinha cometendo.
Seguimos caminhando em silêncio, ela com a leveza de quem vive e eu com um nó na garganta por jamais ter percebido algo que me parecia, a partir daquela pergunta, tão trivial. Decidi parar, me abaixar e lhe dizer (claro que naquele momento meus olhos estavam cheios de lágrimas) desculpas novamente. “Flora, de fato, nunca tinha percebido o que isso queria dizer.” Mais uma vez, com um desprendimento característico desse povo, me respondeu: “Ah, tudo bem. Você não tinha percebido que eu gostava de flores”. Meu Deus, conviver com crianças é realmente viver-com, viver-com-a-vida. É preciso em-carnar, estar na carne, para que nova doação de sentido seja possível A falta de reciprocidade que ela, gentilmente, me ajudava a perceber era algo que me fazia pensar em quem civiliza quem. Passadas algumas semanas, na segunda-feira de carnaval, estávamos brincando na cama enquanto o despertar inicia o dia, ela faz com suas pequenas mãos dois elefantinhos, eu faço o mesmo. Brincamos de manada em língua de tromba. Subitamente, percebo que ela muda de forma os dedos. Pergunto: “O que houve com os elefantes?” Ela responde: “Nada, eles só estão fantasiados de formiga.” Claro, é carnaval...continuamos a brincar. Eu penso: que mundo maravilhoso é esse onde os elefantes se fantasiam de formigas! Eu vivo um mundo encantado, onde a realidade pode outra coisa quando é civilizada por crianças.
Para encerrar sem concluir, convido Mia Couto (2009). Ele discute como a linguagem se dá em um campo de trasbordamento, onde um para além de si é tangível à própria carne. “Todos nós aspiramos regressar a essa condição em que estivemos tão fora de um idioma que todas as línguas eram nossas.” (p. 14) Creio que isso se refira à possibilidade de um estado de inclusão do fora, em outras palavras, de integração de fronteiras. Ele segue “Às vezes, as línguas fazem-nos ser [...] elas fazem-nos deixar de ser.” E sintetiza: “O que me move é a vocação divina da palavra, que não apenas nomeia, mas que inventa e produz encantamento.” (ibidem) Pensar nessa maneira de entender a língua e articulá-la ao corpo, enquanto um território sensível a afetação, é estar pensando em um viver em-carnado.
Referência
bibliográfica
COUTO , M. E se Obama fosse africano? E outras interinvenções.
Lisboa: Caminho, 2009.
DEPRAZ. N. Compreender Husserl. Petrópolis: Vozes. 2007.
DEPRAZ, N.;
VARELA, F.J.; VERMERSCH, P. A redução à prova da experiência.
Em Arquivos Brasileiros de Psicologia. vol 58, nº 1, p. 75-86, 2006.
______________________________. On Becoming Aware: a pragmatic of experiencing.
Philadelphia – Amsterdam: Benjamin
Publishing. 2003.
HEIDEGGER, M. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1959.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. SãoPaulo: Martins Fontes. 1999.
ROSA, J. G. Grande sertão veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
5.2 Excesso de peso e o culto ao corpo na cultura contemporânea
Joana Martins de Mattos
Atualmente, nos encontramos num contexto marcado pelo capitalismo pós-industrial e por importantes avanços científicos e tecnológicos. Essas novas configurações contemporâneas, que envolvem a massificação do consumo de bens industrializados, os avanços da informática, dos meios de comunicação, assim como da medicina, contribuem para a emergência de novas formas de subjetivação e têm modificado sensivelmente a relação do sujeito com o seu corpo.
O corpo é
aqui entendido como uma realidade sócio-histórica, que se constrói
e é construído não somente por sua materialidade biológica,
mas pelos significados a ele atribuídos que trazem as marcas de uma cultura.
Longe de ser algo natural, o corpo é uma construção que
pertence de forma indissociável ao sujeito e à sociedade (STROZENBERG
In: NOVAES, 2006). Assim, falar do corpo implica em falar do sujeito e, portanto,
de subjetividade, da mesma forma, implica em falar do contexto sócio-histórico
no qual estamos inseridos.
Isso nos remete à perspectiva holística e dialética da
Gestalt-terapia, onde homem e meio são compreendidos como se constituindo
mutuamente, numa relação de interdependência. Considerando
o homem como um ser-no-mundo, um ser de relação, a Gestalt-terapia
procura focalizar a totalidade que a relação sujeito e meio representa
(RIBEIRO, 1985; GINGER e GINGER, 1995). Nessa perspectiva, não podemos
pensar corpo e subjetividade de forma isolada ou independente do contexto sócio-histórico,
e sim como partes que se relacionam e se constroem mutuamente.
Na sociedade contemporânea, o corpo adquiriu uma grande centralidade, tornando-se alvo de um enorme investimento simbólico e econômico. Por um lado, passou a ser valorizado e explorado, sobretudo, nas suas possibilidades de promover prazer e realização. Por outro, passou a ser visto como imperfeito, limitado e obsoleto, demandando ser ajustado, consertado, aperfeiçoado, trazendo a necessidade de superação dos limites de sua organicidade e de seu constante aperfeiçoamento (SIBILIA, 2003; ORTEGA, 2008).
Com isso, estamos vivenciando um aumento da atenção, do cuidado e do controle sobre o corpo, por meio das diversas práticas e técnicas de cuidado e modelagem corporais, ou práticas de ascese corporal. Essas práticas bioascéticas contribuem para a emergência de uma ideologia do culto ao corpo belo, jovem e magro que, a partir da segunda metade do século XX, atingiu a era das massas (GOLDENBERG, 2007).
A magreza, a saúde e a juventude tornaram-se, então, um ideal perseguido por um número cada vez maior de pessoas, sobretudo mulheres, estando fortemente associadas com atratividade sexual, competência, aceitação social, auto-controle e sucesso. A não adequação a esse modelo, como na obesidade, passou a significar inaptidão, irresponsabilidade, descontrole, incompetência ou fracasso pessoal, tornando-se, assim, um depreciativo moral que favorece a desvalorização, estigmatização, exclusão e aversão em relação aos que se encontram nessa condição (NOVAES, 2006).
Os novos significados sobre o excesso de peso inspiram, portanto, a emergência de uma lipofobia, um horror ou aversão à gordura e à obesidade que representam uma tentativa de afastar ou reprimir tudo aquilo que coloque em risco ou prejudique a conquista do ideal de saúde e perfeição corporal. Contudo, essa mesma sociedade que desqualifica e rejeita a gordura e o excesso de peso, também os produz, configurando um contexto bastante contraditório.
Pois, por um lado, vemos cada vez mais pessoas investindo na conquista do corpo perfeito e se envolvendo com comportamentos alimentares anormais e práticas inadequadas de controle de peso, o que tem contribuído para o aumento da incidência de transtornos alimentares na população em geral (ANDRADE e BOSI, 2004). Por outro lado, a fartura, variedade e disponibilidade de alimentos industrializados e o forte estímulo ao consumo desses alimentos têm contribuído, juntamente com o sedentarismo, para o aumento alarmante dos casos de obesidade no mundo.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), estamos diante de uma epidemia global de graves proporções e a expectativa, inclusive, é de que a incidência de obesidade no mundo continue crescendo (www.saude.gov.br, 2010).
Com isso,
a obesidade, que adquiriu um status de doença e está associada
ao risco de morte prematura pelo desenvolvimento de diversas patologias, como
diabetes, hipertensão, problemas cardíacos e hepáticos,
câncer e depressão, é considerada, atualmente, um dos mais
graves problemas de saúde pública.
É uma doença multifatorial e bastante complexa que está
relacionada a diversos fatores, genéticos, metabólicos, psicológicos,
familiares, e sócio-culturais, sendo os fatores externos ou ambientais,
como hábitos alimentares e sedentarismo, apontados como responsáveis
por cerca de 75% dos casos (FONSECA, SILVA e FÉLIX, 2001). A obesidade
não pode, portanto, ser pensada isoladamente do contexto sócio-histórico
do qual ela emerge, ou seja, separada dos padrões de comportamento, dos
valores, crenças e significados da sociedade contemporânea.
Da mesma forma,
o excesso de peso de uma pessoa não pode ser pensado de maneira separada
da sua vida como um todo e da relação única e particular
que ela estabelece com o meio.
Dentro dessa perspectiva e tomando como base as concepções de
saúde e doença da Gestalt-terapia, podemos compreender a obesidade
como um sintoma, um sinal de desequilíbrio ou desarmonia na relação
da pessoa com o meio no qual ela está inserida. Configura-se, então,
como uma forma de funcionamento não saudável, um sinal de que
a pessoa está enfrentando dificuldades para se auto-regular e satisfazer
as suas necessidades de forma plena, fluida, livre, criativa e espontânea
na relação com o mundo, envolvendo escolhas repetidas, crônicas,
cristalizadas e estereotipadas (TELLEGEN, 1984; PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN,
1997; MATTOS, 2000).
Contudo, a obesidade também pode ser vista como um ajustamento criativo, mesmo não estando de acordo com as necessidades reais e atuais da pessoa, mesmo que disfuncional (GASPAR, 1999). Pois, considerando essa visão relacional e processual de saúde e doença da Gestalt-terapia, que se baseia na crença no potencial humano e na sua capacidade de auto-regulação e crescimento, podemos pensá-la como resultado da sabedoria organísmica da pessoa para lidar com determinados conflitos e dificuldades que ela vivencia na sua relação com o mundo, é o melhor que ela está fazendo diante das condições disponíveis e das percepções que possui no momento ( TELLEGEN, 1984; MATTOS, 2000).
Representa, portanto, uma tentativa de se equilibrar diante de algo que o desequilibra, um ajustamento com uma função de preservação ou evitação, mas que acaba, muitas vezes, por impedir, inibir ou interromper formas diferentes e atuais de lidar com novas situações e contextos (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1997; MATTOS, 2000).
Segundo pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde, 43,3% da população brasileira adulta está com sobrepeso (quando o Índice de Massa Corporal é igual ou está acima de 25 kg/m²), sendo que 13% estão na faixa de obesidade (IMC igual ou acima de 30 kg/m²). Mais especificamente no Rio de Janeiro, há 45,4% das mulheres e 42,3% dos homens com excesso de peso, enquanto que 12,4% dessas mulheres e 13,3% desses homens sofrem de obesidade (www.saude.gov.br, 2010).
Assim, quase metade das mulheres adultas no Brasil convive hoje com o excesso de peso. Isso nos faz pensar em como essas mulheres, que se encontram fora do ideal atual de beleza e de corpo perfeito, se percebem e se sentem num contexto que supervaloriza a magreza e a boa forma física? Diante dessas considerações, estou desenvolvendo no Doutorado do Programa de Estudos Interdisciplinares de Comunidades e Ecologia Social (EICOS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) um estudo que tem como objetivo conhecer as vivências e percepções de mulheres com excesso de peso da classe média carioca em relação ao corpo e aos cuidados de si, visando identificar os significados sócio-culturais presentes nos seus processos de subjetivação. Este estudo se encontra atualmente em fase de coleta e análise de dados e parte desse material e das questões a ele relacionadas serão apresentadas nessa proposta de mesa redonda.
Meu interesse com esse estudo é abordar a dialética sujeito-cultura, buscando articular a produção contemporânea dos corpos e das subjetividades com os fenômenos e características que definem a nossa sociedade. Com isso, pretendo contribuir para uma reflexão crítica sobre a atual tirania estetizante e consumista do corpo, que escraviza o corpo feminino a padrões de beleza difíceis de serem alcançados, estigmatizando, excluindo e punindo aquelas que não se adequam a esses padrões.
Referência bibliográfica
ANDRADE, A.; BOSI, M. L. M. Opinião. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 12 (2), 2004, p. 197-202.
FONSECA, J.G.M.; SILVA M.K.S.; FÉLIX D.S. Obesidade – Uma visão geral – Parte A In: FONSECA, J.G.M. et al. Obesidade e outros distúrbios alimentares. Rio de Janeiro: MEDSI Editora Médica e Científica, 2001, p. 257-278.
GASPAR, F. M. P. A polaridade saudável do processo do adoecer. Disponível na internet em: www.fronteirasgestalticas.com.br/artigos, 1999. Arquivo consultado em 2010.
GINGER, S.; GINGER A. Gestalt: Uma Terapia do Contato. São Paulo: Summus, 1995.
GOLDENBERG, M. Introdução. In: GOLDENBERG, M. (org). O corpo como capital: estudos sobre gênero, sexualidade e moda na cultura brasileira. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores Editora, 2007b, p. 07-13.
MATTOS, J. A visão de saúde e doença da Gestalt-terapia na compreensão da compulsão alimentar. Monografia de Conclusão de Curso. Núcleo Dialógico de Gestalt-terapia, Rio de Janeiro: 2000.
NOVAES, J.V. O intolerável peso da feiúra: sobre as mulheres e seus corpos. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2006.
ORTEGA, F. O corpo incerto. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2008.
PERLS, F.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.
RIBEIRO, J.P.
Gestalt-terapia: Refazendo um Caminho. São Paulo:
Summus, 1985.
SIBILIA, P. O homem pós-orgânico – Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
STROZENBERG I. Apresentação. In: NOVAES, J.V. O intolerável peso da feiúra: sobre as mulheres e seus corpos. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2006, p. 15-21.
TELLEGEN, T.
A. Gestalt e Grupos: Uma Perspectiva Sistêmica. São Paulo: Summus,
1984.
Disponível na internet em: www. saude.gov.br. Arquivos consultados em
2010.
5.3 Conversando sobre a dimensão corporal...
Luciana Bicalho Cavanellas
“O corpo
não nos limita, mas, ao contrário, ele nos possibilita.”
(MATURANA,1999:53)
O corpo como limite e horizonte, lugar de experimentações e experiências, dor e prazer, significados e possibilidades, atravessa e é atravessado pelo mundo do trabalho.
Não mais simplesmente como máquina ou peça de engrenagem na fábrica, mas como organismo, ator, sujeito, mesmo submetido a um sistema de produção que ainda o quer como “força de trabalho”, “recurso humano”, mensurável e passível de exploração.
Na liquidez
do tempo atual, há o fluxo do próprio corpo-no-mundo, na relação,
desde sempre.
O trabalho assume lugar de centralidade na vida e no modo de ser contemporâneos
e é no corpo que ele se expressa como intensificação, sofrimento,
transgressão.
“É sempre o corpo que é envolvido em primeiro lugar. [...]
Não existe sofrimento sem um corpo para experimentá-lo”.
(DEJOURS, 2004, p. 29)
Para Lévinas, (In CAVANELLAS 1998), o sofrimento físico é
a própria impossibilidade de escapar do instante da existência.
É a falta de refúgio, impossibilidade de fuga, convite ao enfrentamento.
O corpo, organismo, palco de sensações, afetos e inteligência não se opõe à alma ou à subjetividade, porque nela habita e é habitado. Na vida e no trabalho, resiste e esta resistência é criativa, defensora de sua sobrevivência e superação.
“Em
vez de subjetividade, eu prefiro falar de ‘corpo’ e de ‘corpo-si’.[...]
O ‘corpo-si’, árbitro no mais íntimo da atividade,
não é um ‘sujeito’ delimitado,definido, mas uma entidade
enigmática que resiste às tentativas de ser objetivado.”
(SCHWARTZ, 2007, p. 199)
Lançam-se então novos olhares para o corpo e para a relação do corpo com o trabalho, reconhecendo a complexidade dessa relação e ampliando-a para a idéia de “atividade”.
A Psicodinâmica
do Trabalho, a Ergonomia da Atividade, a Ergologia surgem como abordagens clínicas
do trabalhar, comungando da idéia de que o trabalho é o que se
dá entre o prescrito e o real, entre a tarefa e a atividade, devolvendo
a ele e ao corpo sua dimensão misteriosa e criativa.
“Não há dúvida de que esse conhecimento íntimo
do trabalho, dos objetos técnicos, da maneira de trabalhar, é
muito difícil de simbolizar e, portanto, de por em palavras.O conhecimento
do trabalho e do ofício é um conhecimento de corpo.” (DEJOURS,2008,p.
48)
A sabedoria organísmica é um dos conceitos-chave da abordagem gestáltica, que ao considerar esse corpo-organismo como auto-regulador, pressupõe estratégias de defesa e crescimento nos mais adversos contextos.
É possível
pensá-la no mundo do trabalho, no bojo da competitividade, da flexibilização
máxima e da tecnologia como valor, que ameaçam as identidades?
Como provocar esse diálogo entre a Gestalt-terapia e o lugar da saúde
no trabalho?
O que ainda precisamos compreender e como podemos participar desse processo
de transformação?
É o que pretendemos tratar aqui.
Referência bibliográfica
ATHAYDE , M. Saúde Mental e Trabalho: Questões para discussão no campo da Saúde do Trabalhador. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2010 (aguardando publicação).
CAVANELLAS, L. A Gestalt terapia no Envio da Modernidade – Teoria e Técnica na Confrontação da Dor. Dissertação de Mestrado do IFCH da UERJ, Rio de Janeiro: 1998.
DEJOURS, C. Subjetividade, Trabalho e Ação Revista Produção, v.14,n.3, p. 27-34. 2004.
_________. Trabalho, Tecnologia e Avaliação. São Paulo: Ed. Blucher, 2008.
MATURANA, H. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Minas Gerais: Ed. UFMG, 1999.
PINTO, E.B.(org). Gestalt-terapia: Encontros. São Paulo: Instituto Gestalt de São Paulo: 2009.
SCHWARTZ,Y.;
Durrive, L. (org). Trabalho e Ergologia – Conversas sobre a Atividade
Humana. Rio de Janeiro: Ed. UFF, 2007.