Mini curso 4: Entrevista com crianças suspeitas de serem vítimas de abuso sexual à luz da Gestalt-terapia

 

Gilberto Fernandes da Silva

 

Resumo
O mini-curso se propõe a abordar de forma prática as entrevistas com crianças suspeitas de serem vítimas de abuso sexual tendo como referencial teórico a Gestalt-terapia. Para tanto discutirá questões sobre o que, como, quando perguntar e também quando parar a entrevista. Buscará também discutir o lugar
da criança e da família em todo o processo, levando em conta seus sentimentos em relação a si, ao suspeito e a todo processo de apuração e proteção.

Proposta
A sexualidade de nossa sociedade judaico cristã foi construída e vivenciada dentro de um forte aparato repressivo e castrador, sobre forte vigilância e influencia dos dogmas e ensinamentos da igreja católica, que atribuiu as práticas sexuais todos os males da humanidade.

Entretanto por não haver outro jeito de reprodução, há época, permitiu desde que fossem dentro do sagrado casamento, as práticas sexuais com fins apenas reprodutivos, excluindo assim o prazer sexual, bem como todas as variáveis de práticas sexuais com fins não reprodutivos.

Segundo Foucault, “A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal legitimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo; o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções.” (FOUCAULT, 1985)

Para garantir que o pecado do prazer não se manifestaria ou se o fizesse seria punido, a igreja se valeu da confissão pormenorizada dos fiéis, com objetivo de punição e doutrinamento. Onde o menor desejo, o mais suave pensamento sexualizado, o gesto mesmo que sutil denotando algum prazer deveria ser relatado.
Desde então a confissão passa a validar o homem através do discurso aceito por um terceiro.

Entretanto o prazer sexual nunca esteve ausente da vida do ser humano ocidental. Seja escondido ou não, continuou vivenciando sua sexualidade da melhor forma possível. Práticas sexuais, condenadas pela igreja cristã, guardiã e carrasco de quem contra Deus atentasse, ao buscar o prazer sexual, continuaram e continuam existindo até hoje. Algumas são aceitas outras condenadas e passíveis de punição. Essa postura punitiva e castradora exercida sobre a sexualidade do Homem ocidental, gerou ou facilitou a criação e manutenção de preconceitos e tabus que até os dias atuais atuam de alguma forma e em vários graus na vivencia de nossa sexualidade.

O presente trabalho se propõe a discutir a luz da Gestalt terapia a atuação do psicólogo em aspectos “proibidos” da sexualidade humana, mais especificamente na abordagem e condução de entrevistas psicológicas com crianças suspeitas de serem vítimas de abuso sexual.

Constantemente a mídia veicula matérias jornalísticas ou reportagens, onde crianças são vítimas de abusos sexuais por pessoas adultas, muitas delas com obrigações legais de proteção e cuidado das mesmas (pai, mãe, padrasto, tios, avôs, etc). O conteúdo das matérias causa revolta e indignação a todas as pessoas que as assiste ou apenas delas tomam conhecimento. De um modo geral, tomar ciência da ocorrência de tais fatos acaba gerando em todos um sentimento de justiça que as vezes mais se assemelha a um desejo de vingança. O mais grave de tudo isso é que não há uma tendência a redução desse tipo de crime, pelo contrário a cada dia mais e mais pais ou responsáveis se dirigem as delegacias de polícia do Rio de Janeiro ou aos Conselhos Tutelares para notificar novos casos de abusos sexuais, onde crianças das mais variadas idades e classes sociais são vítimas ou suspeitas de serem vítimas desse crime bárbaro. Esse aumento com certeza se reflete nos consultórios e clinicas psicológicas, exigindo do profissional uma capacitação para lidar com esse tipo de caso que em muito se diferencia dos atendimentos comuns a consultório, uma vez que além dos atendimentos psicológicos, na maioria dos casos, esse profissional de psicologia é intimado a comparecer diante de um juiz para sustentar seu relatório ou apresentar seu parecer sobre as entrevistas realizadas com a criança.

Há cerca de 9 anos realizo, em unidades especializadas da polícia civil do estado do Rio de Janeiro, entrevistas psicológicas com crianças e adolescentes suspeitas de serem vítimas de abuso sexual e há aproximadamente 5 anos utilizo conceitos e fundamentos teóricos filosóficos da Gestalt terapia na realização desse trabalho. Esta área da experiência humana não é foco de estudo da Gestalt-terapia, entretanto sua prática voltada para o homem numa posição humanista existencial e sua postura fenomenológica permite uma intervenção profissional com esse viés na qual não se busca apenas ouvir a vítima, mas pelo contrário, escutar a criança, que naquele momento está numa posição de vítima e testemunha, onde o acusado ou suspeito é uma pessoa importante para ela, ou uma pessoa com quem manteve um vinculo afetivo anterior que muitas das vezes, por ela, era percebido como positivo.

Esse encontro onde o profissional percebe a criança como um ser responsável e capaz de se auto-regular ou quando não apenas se auto-ajustar, possibilita a criação de um respeito mútuo, onde a criança sabe que está ali para falar sobre suas vivencias, porém quando, como, e de que forma for para ela possível se expressar.

Permite respeitar seus limites e insegurança. Permite estar atento aos seus sentimentos e pontuá-los em momento oportuno dando a ela a opção de mudar de assunto ou até mesmo parar a entrevista se assim o desejar.

O abuso sexual é um crime que afeta diretamente nossos valores morais e religiosos, e que dentro de uma sociedade judaico cristão é visto como um tabu, mobilizando emocionalmente todos que com ele lidam. Desde a família até os profissionais (psicólogos, policiais, promotores, juízes, etc), passando pela sociedade. Em geral isso acaba criando uma postura tendenciosa com um forte viés punitivo contra o suspeito que em nada ajuda a criança, pois para que tal tendência se confirme se faz necessário um relato bem claro e coerente por parte da vítima, induzindo o profissional a desrespeitar o tempo e o limite da criança, “forçando-a a falar para o próprio bem dela”.

Na prática, o presente trabalho visa abordar as entrevistas com crianças suspeitas de serem vítimas de abuso sexual tendo como base os fundamentos teóricos filosóficos da Gestalt-terapia, discutir o posicionamento da criança em quanto sujeito existencial na relação abusiva e abordar o papel da família nesse processo.

Para tanto, num primeiro momento será traçado um panorama histórico de práticas sexuais envolvendo adultos e crianças pertencentes às várias culturas, chegando até o nosso momento histórico onde as denominamos e conceituamos como abuso sexual. Devo frisar que tal olhar não tem juízo de valor, no sentido de hierarquizar uma cultura em detrimento de outra. Na verdade tal abordagem pode e deve ser entendida com um olhar antropológico.

Num segundo momento abordaremos a utilização dos conceitos teóricos filosóficos da Gestalt-terapia nas entrevistas com crianças suspeitas de serem vítimas de abuso sexual e suas famílias. Esse ponto tem uma proposta mais prática onde pretendo demonstrar como conduzir uma entrevista com criança suspeita de ser vítima de abuso sexual a luz da Gestalt-terapia. (O que perguntar, como perguntar, quando parar, etc). Também será abordado dentro da Teoria de Campo a entrevista com o responsável pela criança, momento em que será buscado perceber como a família está lidando com a situação e sua percepção da participação da criança em todo o processo desde a descoberta até o momento da entrevista.

Por ultimo discutiremos as implicações legais de todo esse processo, desde o trabalho na delegacia até a fase de processo na justiça, bem como a fundamental importância do atuar do profissional de psicologia nesta área do comportamento humano e as possibilidades de diálogo do saber psicológico com o saber jurídico.

Bibliografia

FURLANI, J. Mitos e tabus da sexualidade humana:subsídios ao trabalho em educação sexual. Belo Horizonte: Autêntica, 2003

FURNISS, T. Abuso Sexual da Criança: Uma Abordagem Multidisciplinar, Manejo, Terapia e intervenção Legal Integrados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

PERLS, F; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus,1997.

PIMENTEL, A. Psicodiagnóstico em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2003.

RIBEIRO, J.P. Gestalt-terapia:Refazendo um Caminho. São Paulo: Summus. 1985.

___________. Gestalt-terapia de Curta Duração. São Paulo; Summus. 1999.

SILVA, G.F. Entrevistando crianças... . In: Psicologia na Prática Jurídica: A criança em Foco. Niterói: Editora Impetus, 2009.