Mesa 3: Fenomenologia em seus múltiplos recortes: conexões com a clínica gestáltica
Palestrantes: Cláudia
Távora, Elizabeth Ribeiro e Mônica Botelho Alvim.
Moderadora: Rosa Cristina Cavalcante.
Resumo:
A partir de nossas reflexões e diálogos com Martin Heidegger,
Maurice Merleau- Ponty e Edgar Morin, propomo-nos neste trabalho a explorar
e atualizar a compreensão do sentido fenomenológico da clínica
da Gestalt-terapia, assim como das tensões e contradições
– mais que harmonia – a que nos expomos na relação
com o homo complexus que nela emerge.
3.1 Desdobrando questões fenomenológicas na clínica contemporânea: amor, loucura e complexidade
Claudia Baptista Távora
A contemporaneidade nos lança em uma aventura a partir da dissipação do real, seja sob o olhar da microfísica ou pela multiplicação de referências culturais que faz perder força os outrora grandes valores que funcionavam como pilares (universais?).
O homem, o ser humano ao qual o ofício da psicoterapia se dedica, se encontra atravessado por esse deslocamento, assim como por um conjunto de aspectos polares e complementares, dos quais podemos destacar: a corporalidade físico-orgânica e o campo interpessoal-relacional; a interioridade e a exterioridade; a individualidade e a pertinência coletiva; a ordem estrutural e a ordem processual pelas quais se regula seu funcionamento; a espacialidade e a temporalidade.
Podemos considerar
ainda – ou sempre – um labirinto por explorar e atualizar: a compreensão
do sentido fenomenológico da clínica psicoterapêutica, assim
como das tensões e contradições – mais que harmonia
– a que nos expomos na relação com o homo complexus que
nela emerge.
Refiro-me à procura da compreensão sobre o delicado problema da
constituição e manifestação do campo subjetivo –
daquilo que permite a emergência de um senso de si, a sua compreensão
por um outro e, ao mesmo tempo, a sua transformação.
Considerando que a subjetividade é muito mais um fenômeno do que um fato ou dado – no sentido em que o “estar dado” das coisas é exibir-se de tal e tal modo em tais fenômenos (HUSSERL, 1990) – a perspectiva da complexidade, entendida como articulação de muitas partes, como inter-retro-relacionamento de diversos elementos, como totalidade feita de relações em rede e de processos de interação gerando um sistema dinâmico sempre aberto a novas sínteses e configurações (MORIN, 1990: OSTROWER, 1998) se coloca como uma competente parceira e interlocutora da perspectiva fenomenológica.
A complexidade não deve ser confundida com complicação, uma vez que se refere ao alto grau de organização de um fenômeno, seja ele físico, mental ou emocional, a configurações que apresentam um alto grau de integração coerente, a uma “realidade” em que os significados se compõem de forma mais sutil e diferenciada, constituindo formas abertas, não necessariamente dentro de contornos, mas sim de limites que permitem uma certa interpenetração de espaço interno e externo e de “eu” e “não-eu”.
A aplicação ou uso da fenomenologia na clínica psicoterapêutica está longe, ela própria, de ser uma forma fechada ou completa. Há temas e variações de linguagem e trajetória teórica entre aqueles de nós que pretendem trabalhar com o que foi descrito por Husserl como um método. Na forma como a compreendo a partir dessa orientação, destaca-se a proposta de trabalho sobre dois eixos principais: a processualidade, entendida como o acompanhamento do “sendo” (no gerúndio) de alguém no mundo; e a intencionalidade, compreendida como a criação contínua de significado e realidade, englobando a força contextual e a implicativa.
Então conhecer o paciente, fenomenologicamente, implica construí-lo no ato mesmo de conhecê-lo. Para isso é necessário descrever essa pessoa, elaborar a cena na qual ela se revela, permitir que se desenvolva na cena exterior o que acontece na cena interior, explicitando suas relações no campo dado. É preciso inventar um ponto de vista capaz de atingir o fenômeno em seu movimento; enfrentar o desconhecido tal como ele é, em sua irredutibilidade ao conhecido (o que inclui os absurdos e a dramaticidade do paciente); e, sobretudo, reinstalar a circularidade do diálogo, entre o paciente e o outro (terapeuta), assim como entre o paciente e o(s) outro(s) que, como ser complexo, homo complexus, ele abriga em si mesmo.
Na presente
apresentação, esse diálogo incluirá a abordagem
de (mais) um par de aspectos que integram a complexidade da subjetividade encarada
pela perspectiva fenomenológica. Este é proposto por Morin (2003)
em um conjunto de conferências nas quais aborda os temas do amor, da poesia
e da sabedoria.
Trata-se de que ser homo sapiens implica ser igualmente homo demens, ou seja,
a qualidade da racionalidade co-existe com a manifestação de uma
afetividade que pode ser extrema, com paixões e humores de todo tipo,
mas sem a qual poderia haver prejuízo da imaginação, da
criação e, até mesmo, do amor, aquele que une razão
e loucura e implica encontrar a verdade através da alteridade.
A abertura
para o mundo do vivido processualmente e intencionalmente pelo paciente, proposta
na clínica fenomenológica, será questionada ou provocada
pela perspectiva da complexidade. Esta, levada ao limite, pode propor questões
acerca da própria razão do psicoterapeuta, que será chamada
a se desracionalizar nos mesmos termos, ou seja, de abertura para a afetividade
que o caracteriza, também, como demens, além de
Sapiens. E a investir na dialogia, como caminho para ativação
da própria complexidade a serviço de seu trabalho clínico.
Aquele que visa, sempre, explorar as possibilidades do humano.
Referência bibliográfica
HUSSERL,E. A idéia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1990.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.
________. Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
OSTROWER,F. A sensibilidade do intelecto: visões paralelas do espaço e tempo na arte e na ciência. Rio de Janeiro: Elsevier/Campus, 1998.
TÁVORA,C.B.
Do self ao selfing: o estrutural e o processual na emergência da subjetividade.
Gestalt-terapia e contemporaneidade. Campinas: Livro Pleno, 2005.
________ Três ensaios sobre o self: intencionalidade, crise e mudança.
Gestalt-terapia: encontros. São Paulo: Instituto Gestalt de São
Paulo, 2009.
3.2 Fenomenologia e conexões com a Clínica Gestáltica
Elizabeth da Costa Ribeiro
Resumo
A Hermenêutica fenomenológica de Martin Heidegger mostra-se fecunda
para a clínica gestáltica, pois nos convida a suspensão
da busca por explicações causais e das teorizações
da realidade humana que caracterizam o modo científico tradicional. A
pessoa não poderá ser vista como uma subjetividade interiorizada
a ser analisada e, por conseguinte, explicada por certos fatores e causalidades
psíquicas. Assim o trabalho do Gestalt-terapeuta será compreender
a existência do cliente como fenômeno e não como fato a ser
explicado. O processo da psicoterapia gestáltica acontece a partir de
uma gama de recursos facilitadores que possibilitarão a compreensão
do processo existencial do cliente e a apropriação de sentidos,
gerando novas possibilidades de vida.
Proposta
Pensamos que podemos fazer uma aproximação entre a Gestalt-terapia
e a Fenomenologia de Martin Heidegger pois ambas desenvolveram-se num mesmo
contexto de mundo e afirmaram que a existência humana extrapola quaisquer
explicações reducionistas e por isto compartilham de uma perspectiva
de homem e de mundo que são semelhantes. Portanto iremos tomar o pensamento
deste filósofo, particularmente àqueles que estão nos Seminários
de Zollikon, articulado com alguns conceitos da Gestalt-terapia.
Os Seminários
de Zollikon consistem numa série de encontros ocorridos entre os anos
de 1959 e 1969, promovidos pelo psiquiatra Medard Boss nos quais o filósofo
Martin Heidegger fala a psiquiatras e psicanalistas. Estes seminários
tinham como objetivo articular a Fenomenologia com a clínica psicológica
fazendo uma crítica ao modelo científico aplicado à existência
humana. Lendo os Seminários podemos constatar que o filósofo além
de assinalar as diferenças entre a Fenomenologia e o Positivismo científico
vai, sobretudo, desconstruindo o modelo de causalidade através de um
exercício de tematização de questões relacionadas
à ciência e a Psicologia, em particular, colocando, desta forma,
a Fenomenologia em prática.
Heidegger toma a Fenomenologia como um modo de reflexão e Nos Seminários
faz uma crítica à ditadura do modelo científico aplicado
a existência humana. Para este filósofo a ciência, nos moldes
nos quais foi construída, dita parâmetros e faz com que se pense
dentro de modelos já previamente estabelecidos.
Heidegger fala da importância de se ver o fenômeno, torná-lo presente, contemplá-lo ao invés de representá-lo. “Devemos ficar na experiência cotidiana em que passamos a vida. Devemos nomear simplesmente aquilo que se mostra ao olhar o tornar presente.” (HEIDEGGER, 2006, p. 96). Entretanto o filósofo ressalta a dificuldade desta atitude em função de estarmos todos dominados pelo modo científico de ver as coisas, precisando de certezas que derivam de pressuposições e provas.
Isto que é apontado pelo filósofo é também a tônica da Gestalt-terapia o que a caracteriza como uma psicoterapia fenomenológica. Na Gestalt-terapia que é uma forma de focalizar a o psicoterapeuta trabalha com a awareness experiência presente do cliente através do dar-se conta do corpo, das sensações, das emoções e dos pensamentos. Isto também é uma forma de desconstrução das amarras do controle racionalista imposto pela ciência o que aproxima a Gestalt-terapia da arte do encontro e não uma psicoterapia explicativa de patologias.
A Fenomenologia gestáltica consiste num trabalho compreensivista por parte do psicoterapeuta baseado no que é óbvio ou revelado pela situação, e não numa interpretação. Os fenomenólogos referem-se a isto como ‘dado’ e na Gestalt-terapia dizemos que é um trabalho com a experiência vivida. Assim, o enfoque fenomenológico da Gestalt-terapia possibilita o suporte cognitivo-motor-sensorial e energético da pessoa na sua relação com o seu mundo. (YONTEF, 1998).
Fenomenologia é uma filosofia e uma metodologia que remonta ao termo fenômeno que significa mostrar-se, revelar-se por si mesmo e Fritz Perls já dizia que a Gestalt-terapia é uma abordagem fenomenológica (RIBEIRO, 1985).
A Gestalt-terapia é uma abordagem fenomenológica pois trabalha com a mobilidade interna do fenômeno acompanhando suas redes referenciais que partem da própria existência da pessoa. Isto significa dizer que o psicoterapeuta não parte da pergunta “Que emoção é esta, qual sua natureza, de onde vem?”
Quando o psicoterapeuta investiga desta forma transforma a emoção em objeto para uma racionalidade. Na fenomenologia gestáltica a pergunta é pelo “como da emoção”, para que assim, o campo existencial do cliente possa se ampliar. O psicoterapeuta facilita o processo de contato com as emoções, a awereness para que assim o cliente possa responsabilizar-se por sua existência, ganhando um amadurecimento emocional.
Para Heidegger
(1989) o ser humano é aquele que está presente no mundo de forma
peculiar. Ele é abertura de sentido, abertura para sua própria
experiência de existir. O homem não está no mundo da mesma
maneira que as coisas estão. Por isso não pode ser investigado
e compreendido da mesma maneira que os objetos. Encontramos-nos lançados-no-mundo,
sempre numa relação com o outro. Para a Fenomenologia há
uma insuficiência da metodologia cartesiana, pois objetiva o homem e assim
ele perde sua real dimensão. Num esforço de tornar o ser-homem
objeto de estudo, este modelo perde de vista o homem tal como se dá em
sua
existência no mundo.
Este filósofo chama a nossa atenção para o fato de que o modelo quantitativo transforma a questão da verdade, que o grego chama de alethéia e que se traduz como desvelamento, em uma busca da certeza segura e indubitável, que para ser alcançada deve ser investigada e registrada quantitativamente, eliminando tudo que for duvidoso, chegando a um fundamento absoluto e inabalável. Com esta metodologia, tudo que não apresente o caráter dos objetos passíveis de determinação matemática é eliminado como sendo incerto, inverídico e não verdadeiro. Assim o homem, do alto de sua racionalidade e do método científico, decide o que é verdadeiro ou não. Há, segundo este autor, uma ditadura racionalista que só deixa valer seu pensamento como um manipular de conceitos operativos e representações de modelos. Para este filósofo o modelo científico não dá conta da existencialidade do homem. Por isso, contrapõe o método mecanicista ao fenomenológico, ou seja, a objetivação científico-natural dos entes que existem no mundo em confronto com o desvelamento dos entes em sua fenomenologia.
Existe um abismo entre a metodologia quantitativa aplicada nas ciências físicas e a compreensão do homem. As ciências naturais não alcançam o ser-homem em sua totalidade mas apenas como objeto, como mais um ente presente na natureza. O método das ciências naturais não pode se aplicar ao humano por ser incompatível com a singularidade peculiar do ser-pessoa. Ocorre uma destruição do humano em sua humanidade, já que o modelo científico de mensuração implica em um tornar o homem um objeto que pode ser calculado, previsto, dominado.
Por isso podemos
entender melhor que, existencialmente, o fenômeno humano, em sua totalidade,
não pode ser apreendido estatisticamente. Mensurar o ser humano significa
descaracterizá-lo. O enfoque é, portanto, no mundo vivido.
Nos Seminários de Zollikon Heidegger propõe uma “fenomenologia
do encontro”. A alternativa metodológica de do filósofo
(2006) à visão pragmática do homem acontece em um envolvimento
significativo com a pessoa que é encontrada, ou seja, com a pessoa em
sua experiência aqui e agora. Nesta perspectiva, o ser humano não
pode ser entendido como um “em si” isolado ou compartimentalizado.
Heidegger (1989) toma o conceito de intencionalidade de Husserl (de que o homem está sempre remetido ao seu contexto e às pessoas com quem vive e encontra) e desenvolve o conceito de ser-com. O ser-com é um modo fundamental da pessoa-em-seu-mundo.
Também para a Abordagem Gestáltica a concepção de subjetividade implica em abordar a vida humana como “vida-em-relação”, como “viver-em-um-mundo”, daí o conceito da GT de “fronteira relacional de contato”. Para esta abordagem ocorre uma interdependência inalienável “eu-tu”, “eu-mundo”, “eu-sociedade”, “eu-cultura”, sendo que este “eu” não pode ser tomado ao modo da Psicologia clássica, como um “eu” em si mesmo, mas um “eu” aberto sempre referido ao outro e às suas condições. A pessoa é sempre em situação, em relação, portanto, se desvela nas situações concretas da vida, em seus encontros e desencontros existenciais. O Gestalt-terapeuta tenta compreender os modos relacionais nas situações concretas vividas pelo cliente. E, ainda, compreender os vários sistemas relacionais que se formam e, baseado nisto, dialogar com o seu cliente, considerando que entre terapeuta e cliente também se forma um sistema relacional (HYCNER, 1995).
Compreendendo
a subjetividade como um fenômeno de relação, entende-se,
da mesma forma, o âmbito psicoterapêutico como um encontro no qual
ocorre uma mútua afetação.
Heidegger não pensou o campo da psicoterapia mas, baseado em suas reflexões,
podemos haurir pontos que convergem com a Gestalt-terapia. O psicoterapeuta
tematiza a faticidade da vida cotidiana do cliente, seu aqui e agora. Visa compreender
os modos de existir do cliente, os modos pelos quais lida com situações
e convive com as pessoas, e ainda, as suas compreensões e interpretações
de mundo. Vemos portanto que há aproximações da compreensão
fenomenológico-existencial do filósofo com conceitos como os de
awareness e fronteira de contato da Gestalt-terapia.
Referência bibliográfica
HEIDEGGER, M. Seminários de Zollikon. Petrópolis: Vozes, 2006.
____________. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1989.
HYCNER, R. De pessoa a pessoa. Rio de Janeiro: Sumus, 1995.
RIBEIRO, J.
P. Gestalt-terapia refazendo um caminho. Rio de Janeiro:
Sumus, 1985.
YONTEF, G. Processo, diálogo e awereness. Rio de Janeiro: Summus, 1998.
3.3 Clínica como experiência de campo: da possibilidade de sentir com.
Mônica Botelho Alvim
Resumo
Sentir com o outro. Isso seria possível? Neste trabalho parto de um fragmento
de caso clínico e discuto as concepções de Merleau-Ponty
sobre o outro, o corpo e a intercorporeidade, recortadas a partir da noção
de fé perceptiva.
Proposta
Lara chega ao consultório. Rosto sofrido, olhos cansados, maquiagem forte.
Andar pouco equilibrado, corpo endurecido pela roupa apertada, sapato muito
alto, talvez demais. Olho para ela e me abro, busco um fio que nos conecte,
que ligue a chave do encontro. Diz que está ali porque não tem
mais para onde ir. Fez terapia por vários anos, sabe tudo sobre si. E
conta o enredo do filme que rodou em muitas versões ao longo de sua vida.
Repete que seu problema é a repetição de uma estória
de abandono. Chora, desesperada. Rebela-se por novamente ter que fazer terapia.
- Tudo o que fiz, não valeu de nada? Interroga. E repete a sinopse da
última versão.
Sinto-me estranha. Como se devesse algo a ela pelas terapias que “não funcionaram”. Mas espero e sigo escutando-a. Fala do pai, do ex-marido, da traição de ambos, da injustiça, de suas qualidades, solidariedade, dos sofrimentos, detalhes das situações que sofreu. Ao final de nosso primeiro encontro proponho abandonar um pouco o enredo dessa história para concentrarmo-nos nos diferentes roteiros e versões. Em pequenos detalhes de algumas cenas. Em imagens secundárias, pequenas percepções.
Lara me olha
ligeiramente surpresa. Algo incrédula. Parece duvidar, mas isso dura
poucos segundos. Logo volta a queixar-se e a dizer do seu desespero.
Como um motor, ela gira. E assim nos despedimos naquele primeiro encontro. Sem
conexão.
Outros encontros se sucedem. Semelhantes. Começo a sentir um incômodo.
Ela gira o motor e sofre muito. Sofre p elo que se passou, mas sofre ainda mais
de solidão. Sofre por que sabe demais. Sabe que tudo aquilo lhe faz mal,
mas não consegue deixar de desejar tudo aquilo. Por que todos que a amam
lhe dizem como ela é boba, como tem tudo para “virar a página”,
“fazer a fila andar”. Falam de como tem uma vida boa e como é
incapaz de superar uma relação tão maléfica e daninha.
Sofre porque sente demais. Sente-se incapaz de mudar, incompetente, burra.
Ao fim das
sessões sinto-me estranha, sem perceber sinais de uma conexão
que se anuncie. Ao mesmo tempo noto que ela está engajada. Vem a todas
as sessões, pontualmente. O motor gira sem cessar.
Aqui e ali busco encontrá-la. Seu olhar me atravessa. Convites para olhar
outras cenas não são aceitos. Tampouco para se demorar sobre elas.
As perspectivas são sempre as mesmas. Como em um filme hollywoodiano,
as cenas se sucedem rapidamente, sem qualquer espaço para a criação,
para o sonho, o devaneio. Tudo está pronto e acabado. Acabado.
Um dia ela fala mais uma vez das pessoas que a criticam por sofrer. Naquele dia, diferente de outros, ela diz isso olhando para mim. Sinto novamente a sensação de dever algo a ela. E compartilho isso. Lara desacelera, reduz a marcha e para. Olha- me mais uma vez nos olhos, quase demoradamente, e depois de alguns segundos, murmura:
– É.
Você não faz parte dessa estória.
Já ia dando a partida novamente, quando a interrompo:
– Tenho a sensação de que você não quer reescrever
essa estória. Mas se eu pudesse fazer algo nesse roteiro, deixaria você
sofrer bastante.
Digo emocionada e me sentindo muito conectada com Lara, que me olha
estupefata:
– O que?!?
– Deixaria você sofrer bastante. Acho seu sofrimento tão
legítimo!
– Mas e tudo o que a outra terapeuta me dizia?
– Olhando nos seus olhos, posso sentir seu sofrimento aqui no meu peito.
Lara desliga o motor e desce do carro. Estaciona, toma o elevador e entra em
meu consultório pela primeira vez.
Ao discutir
as relações com o mundo, Merleau-Ponty nos fala de uma “presença
perceptiva no mundo” como “a experiência de habitar o mundo
por meio de nosso corpo” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 37). Afirma a anterioridade
dessa experiência em relação à reflexão, “nossa
experiência que está aquém da afirmação e
da negação, aquém do juízo – opiniões
críticas, operações ulteriores -, é mais velha que
qualquer opinião”. (op cit)
Critica assim a filosofia reflexionante, aquela que busca compreender o nosso
vínculo natal com o mundo desfazendo-o para refazê-lo. Aquela que
acredita encontrar a clareza pela análise, nos elementos mais simples,
nas condições mais fundamentais, em premissas de onde ele resulta
como consequência, uma reflexão que recua sobre as pegadas de uma
constituição. (op cit , p. 41)
Lara era expert em analisar. Conhecia com clareza todos os elementos, condições fundamentais, premissas, causas e conseqüências. Através dos anos de terapia, havia recuado todas as pegadas da constituição de seu sentimento de abandono.
Orientada
pelas premissas da Gestalt-terapia e da fenomenologia, eu buscava uma conexão,
um fio que nos ligasse. No fundo de minha experiência, estavam as lições
de Merleau-Ponty:
“O segredo do mundo que procuramos é preciso, necessariamente,
que esteja contido em meu contato com ele. De tudo o que vivo, enquanto o vivo,
tenho diante de mim o sentido, sem o que não viveria e não posso
procurar nenhuma luz concernente ao mundo a não ser interrogando, explicando
minha frequentação do mundo, compreendendo-a de dentro.”
(op cit, p. 41)
Estou aderido ao mundo através de meu corpo, que me dá a verdade a partir da minha experiência de habitá-lo. É nesse a priori da minha relação de aderência ao mundo e à situação que está a base e a fundação da verdade. É no sentido que se produz no encontro com o mundo, ou seja, no campo e na situação, que está o fundamento da verdade. As tentativas de explicação através do pensamento reflexivo me fazem perder o mundo e o sentido.
Mas como transpor
a barreira da explicação e da verdade das teses? Lara buscava
explicações, e nelas buscava o sentido que não encontrava.
Os “anos de terapia” a encheram de significados, verdades que havia
tomado como si. Teses e enunciados que falhavam. E era justamente nesta falha
que estava a brecha para o corpo, para um movimento de habitação
e de partida para o trabalho de signific-ação existencial.
Recorro novamente a Merleau-Ponty e me apoio na fé perceptiva. Aquilo
que existe antes de qualquer juízo, tomada de posição,
uma fé animal, corporal, perceptiva. A fé perceptiva me dá
uma certeza inelutável e ao mesmo tempo inexplicável e obscura.
É “uma adesão que se sabe além das provas, não
necessária, tecida de incredulidade, a cada instante ameaçada
pela não-fé”. (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 21)
Ameaçada de um lado pela fragilidade da percepção, esta que nos dá um domínio da totalidade, porém circundado por uma visão lateral, por uma selva composta por uma “vegetação de fantasmas”, a percepção é dotada de movimento e instabilidade. Tais ameaças se apresentam a todo instante, quando examino o mundo com meu pensamento e recuo, saindo dessa habitação e me entrincheirando em algum fantasma-arbusto, seja ele imaginação, tese ou enunciado. “O mundo é o que percebo, mas sua proximidade absoluta, desde que examinada e expressa, transforma-se também, inexplicavelmente, em distância irremediável” (p. 20).
Lara estava perdida em uma floresta de fantasmas. Para ajudá-la a encontrar o caminho, eu precisava de um fio. Mas diferente de Ariadne, eu não tinha um fio pronto para oferecer a Lara. Precisávamos tecê-lo juntas. Ela estava sozinha e perdida. As explicações dela e dos outros os distanciavam irremediavelmente. Busca o remédio na terapia e ao mesmo tempo não sabe se aproximar.
O sentido e o significado da experiência são criados nessa relação que me envolve (terapeuta) e ao cliente. As lições da Gestalt-terapia nos ensinam como método concentrar-se na situação, “trabalhar a unidade e a desunidade dessa estrutura da experiência aqui e agora” (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1997, p. 46). Buscar a integração necessidade-figura-fundo a partir do campo, uma gestalt vigorosa, uma experiência integradora a partir da awareness, criando sentidos/significados para a experiência aqui-agora.
Lara não me vê. Não me escuta. Não sabe se aproximar. Está só em seu labirinto. Para resgatar sua fé perceptiva precisa perceber, presença, corpo. Encontrar-se aqui-agora comigo. Mas sente-se tão só feriorizada diante do outro que sabe. In o que é melhor para ela e a critica por não agir de acordo com as teses. Assim, gira como um motor, potência rotativa de uma força centrípeta que a mantém no centro, de pé, um si-mesmo. Ensimesmada, não deixa espaço para outrem, para ultrapassar a personagem.
Ao discutir
o tema da relação com o Outro, Merleau-Ponty pergunta-se o que
aconteceria se, além de minha visão sobre mim e sobre o mundo,
me fossem dadas também as visões de outrem sobre si, o mundo e
sobre mim. Refere-se à visão como sentido, experiência corporal.
Assim, encontramos o outro não no espaço objetivo, da reflexão,
mas no meio obscuro no qual a percepção irrefletida se move à
vontade. Encontramos o outro assim como encontramos nosso corpo, no campo, na
expressão. E é esse o espaço da psicoterapia.
Como me encontrar com Lara? Como conectar-me com ela, me perguntava através
do incômodo que sentia. Ou tra lição merleau-pontyana: o
diálogo genuíno é intercorporeidade. O vínculo com
a situação e com aquele mundo que o cliente sente como seu mundo,
aponta algo daquele (seu) campo, demonstra, reflete o seu v ínculo e
sua aderência a ele – qu e como que por um passe de mágica,
ele passa a notar.
O filósofo nos ensina que é quando surge o insólito na partição do diálogo, quando uma resposta do outro (aqui, o terapeuta) responde bem demais ao que eu pensava sem tê-lo dito inteiramente, ou quando um gesto sinaliza algo que sinto, irrompe a evidência de que lá a vida é vivida.
Isso é uma demonstração de aderência ao mundo, uma revelação de que aquilo que sinto e não explico, é vida passível de ser vivida, é digno de uma subjetividade, de um mundo próprio. Merleau-Ponty vai dizer: em algum lugar atrás desses olhos (que me olham), atrás desses gestos, diante, em torno, vindo de não sei que fundo falso do espaço, outro mundo privado transparece através do tecido do meu, e por um momento vivo nesse outro mundo privado – sou apenas aquele que responde à interpelação que me foi feita. (saio do meu centro, visível, me descentro, porque me vejo no outro – e isso não é projeção – sou arrastado com ele para o âmbito de outrem). Afirma: “a experiência que faço de minha conquista do mundo é que me torna capaz de reconhecer uma outra experiência e de perceber um outro eu mesmo, bastando que, no interior de meu mundo, se esboce um gesto (expressivo) semelhante ao meu”. (p. 171)
A intervenção realmente terapêutica acrescenta esse enigma da propagação no outro da minha vida mais secreta. Então é mesmo verdade que os “mundos privados” se comunicam entre si, que cada um deles se dá a seu titular como variante de um mundo comum, afirma Merleau-Ponty. A comunicação transforma-nos em testemunhas de um mundo único, como a sinergia de nossos olhos os detém numa única coisa. Dá-nos, por uma operação de reversibilidade, a experiência intercorporal.
Lara chega ao consultório quando nos conectamos ambas com a tristeza. Aí ela conquista o mundo e pode legitimar o que sente. É no âmbito da experiência intercorporal, compreendo, que fecunda o terapêutico como criação e ação de produção de sentidos. “A mordida do mundo tal como a sinto em meu corpo fere tudo o que está exposto como eu” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 171). O outro se insere, conclui o autor, na junção do mundo e de nós mesmos, ele é um eu generalizado. É assim que minha relação corporal com o mundo pode ser generalizada – e podemos falar de uma intercorporeidade como a possibilidade de um sentir com. Ponto de partida para nosso caminho. Vamos, Lara. Sigamos.
Referência bibliográfica
MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.
__________________. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
PERLS, F.;
HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.