Temas-livre 2: Psicoterapia: o contato e seus impasses
2.2. Reflexões sobre a depressão como qualidade da evitação de contato
Mabel Pereira e Raphael Moreira
Resumo
A depressão é um transtorno de grande prevalência na população
mundial. Este trabalho visa trazer o tema para uma reflexão à
luz dos pressupostos básicos da Gestalt-terapia, propondo uma discussão
sobre o psicodiagnóstico clássico do Transtorno Depressivo e uma
visão gestáltica das características comumente observadas
nos clientes com humor deprimido.
Proposta
Estudos da Associação Brasileira de Psiquiatria mostram que a
Depressão é um transtorno freqüente: mais de 10% da população
é diagnosticada como deprimida e estima-se que em 2020 ele será
a maior causa de incapacitação em países em desenvolvimento.
Esta temática é amplamente discutida no meio científico,
médico e pelo senso comum. Sua relevância para a Psicologia é
refletida quando, na procura por psicoterapia, muitos clientes se nomeiam a
partir deste diagnóstico, assim como os demais profissionais de saúde
com os quais é necessário um trabalho conjunto.
O presente trabalho visa
promover uma breve revisão do arcabouço teórico desenvolvido
na abordagem gestáltica, permitindo um embasamento para uma compreensão
diferente do fenômeno chamado Depressão. Nosso objetivo não
é criar mais uma categorização da doença, nem uma
classificação das pessoas deprimidas. Buscamos compreender, segundo
a teoria desenvolvida por Perls, Hefferline e Goodman, a depressão enquanto
quantidade de energia disposta pelo organismo para contatar o mundo a sua volta.
Na literatura existente na Gestalt-terapia, não há uma produção
consistente com uma discussão específica sobre
o tema¹.Acreditamos que esta reflexão é necessária
para ampliar os campos de atuação do gestalt-terapeuta, contribuindo
para sua divulgação no meio científico.
1. Cabe aqui uma ressalva para a obra de Müller Granzotto & Müller Granzotto (2008), que propõem a identificação depressiva como possibilidade de ajustamento na clínica da psicose. Trata-se de uma literatura fundamental sobre o tema, porém por demais específica e, portanto, não abordada nesta nossa proposta.
Segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID 10),
os Transtornos Depressivos caracterizam-se pela presença de episódios
onde o paciente pode apresentar humor deprimido, perda de interesse, fatigabilidade,
redução da concentração, da auto-estima e da autoconfiança,
idéias de culpa, visões pessimistas do futuro, idéias de
suicídio, sono e apetite alterados. São classificados como leves,
moderados ou graves (este último com ou sem sintomas psicóticos),
de acordo com o número de sintomas presentes e sua gravidade no episódio
atual.
Existem diferentes classificações
e critérios diagnósticos para a Depressão.
Cada compêndio ou manual de psicopatologia agrupa os sintomas observáveis
nas pessoas deprimidas de acordo com critérios próprios, cria
nomenclaturas e classifica a doença de formas diversas. Em comum, eles
têm o mesmo modelo de diagnóstico – baseado na visão
racionalista mecanicista. Nele, determinadas características do homem
são tomadas de forma isolada, destacadas do restante do organismo e de
seu contexto e, portanto, consideradas de forma apenas parcial. Os sintomas
são compreendidos a partir de um pensamento linear e causal e o sujeito
é reduzido a categorias psicopatológicas rígidas e limitadas,
que o sentenciam a ter um comportamento e um tratamento pré-determinados.
Em Gestalt-terapia, por outro lado, compreendemos o ser humano como uma totalidade única e indivisível. Cada organismo configura-se como uma unidade, resultado da interação entre as diversas partes que o constituem e da articulação destas com os demais componentes do meio no qual está inserido. Para além de suas características isoladas, o homem constitui-se como uma configuração total, com elementos que se articulam e influenciam mutuamente e que adquirem sentido a partir desta interação.
Os diferentes elementos que costumam ser analisados na literatura sobre Depressão como principais causas da doença (como a herança genética, a bioquímica cerebral, fatores ambientais ou sociais, etc.) são vistos pela teoria da Gestalt-terapia como parte de um todo, reflexos de diferentes formas de um organismo só e sua integração com o meio. A depressão é um fenômeno que deflagra a complexidade do ser humano, pois a polarização em um elemento causal como, por exemplo a reposição de serotonina, não resultou em uma terapêutica eficiente.
De acordo com Perls (1988,
p. 28), a mente e o corpo são uma unidade. Pensar é agir com um
menor gasto de energia. Sintomas físicos (como a prostração)
e sintomas mentais (como a confusão mental) da depressão são,
portanto, uma coisa só, diferentes formas de demonstrar um conflito interno.
O fato de um ser o reflexo do outro, e a observação desse fenômeno
como unidade se torna importante para um gestalt-terapeuta, pois permite trabalhar
a favor da integração dessas partes que se mostram como alienadas,
promovendo na intervenção terapêutica um trabalho que envolva
todas as polaridades expressas, e não tratando as mesmas como distintas.
A abordagem gestáltica utiliza-se de uma perspectiva de campo para compreender
o que se passa com o homem e com o mundo. O campo é uma totalidade, composta
de partes em relacionamento imediato, que reagem umas às outras e são
influenciadas pelo que acontece em qualquer outro lugar do campo.
Como proposto por Yontef
(1998), um indivíduo é definido, num dado momento, apenas pelo
campo do qual faz parte, assim como o campo só pode ser definido pela
experiência ou do ponto de vista de alguém.
O próprio conceito psicológico de “self”, comumente
associado a um “si” individual e intrasubjetivo, é reformulado
pelos autores da abordagem gestáltica. Afastando-se de uma compreensão
topológica e estrutural, o “self” gestáltico passa
a ser entendido processualmente, como “fronteira de contato em funcionamento”
(PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1951/1997, p. 85).
Para Perls, Hefferline e Goodman, falar de formas disfuncionais de existência não se trata, portanto, de investigar sobre as causas destas manifestações, mas sim de descrever e compreender como as disfunções se apresentam e de que forma estas contribuem para um funcionamento não saudável e insatisfatório do indivíduo como uma totalidade integrada. Robine (2006, p. 28) afirma que uma psicopatologia gestáltica só pode ser desenvolvida enquanto uma abordagem descritiva das flexões da experiência que ocorrem na fronteira de contato, uma vez que esta fronteira consiste no “fenômeno original”, que se atualiza posteriormente sob a forma de um “si-mesmo” e do mundo. O diagnóstico, segundo esta perspectiva, abrange uma compreensão mais ampla da organização das modalidades relacionais do cliente enquanto “ser-no-mundo” e não se limita a categorias de padronização do mesmo.
O ato de diagnosticar acontece momento a momento (PHG 1951/1997 p. 250), em Gestalt-terapia, compreendemos o diagnóstico através de seu caráter processual. Desta forma, o diagnóstico corresponde a uma tarefa que se configura ao longo de todo tratamento, como uma construção contínua (FRAZÃO, 1996, p. 29). Neste trabalho, propomos utilizar o termo depressão, não como uma categoria estrutural, e sim como uma descrição da qualidade do contato momentâneo.
A quantidade energia mobilizada para se fazer contato varia dependendo do ponto do processo de contato em que decidirmos focar. Apesar dessa variação, observamos que na depressão esta quantidade de energia se demonstra abaixo do necessário e o nível de tensão necessário para agir é inutilizado.
A partir da concepção do homem como relacional – considerando que há tensão e mobilização de menos por parte do organismo - seria necessário então um equilíbrio por parte do ambiente. Esta dinâmica aparece nas diversas relações que o cliente estabelece, inclusive na relação terapêutica.
De acordo com Ranger & Tyson (1981), uma pessoa com sintomas depressivos estabelece um jogo de “dominador-dominado” ora exigindo do ambiente uma postura ativa e apresentando uma conduta dependente e vitimizada, ora projetando essas características de maior mobilização de energia.
A diferença entre essa visão gestáltica e a clássica da depressão é que na primeira, as manifestações depressivas podem ocorrer em um momento a ser diagnosticado, necessitando de uma intervenção, e em outro momento o cliente pode apresentar uma qualidade completamente diferente de energia, que exigirá uma terapêutica de acordo. Já para a segunda ficará caracterizada a Depressão somente quando houver uma rigidez desta qualidade nos diversos ajustamentos evitativos e ocorrer um prejuízo social, e uma intervenção limitada a essa predominância.
Como apontado anteriormente, para a Gestalt-terapia qualquer manifestação do organismo é uma tentativa de ajustamento na busca por um equilíbrio possível entre as próprias necessidades e as do meio que o constitui no momento. Portanto, uma sensação desagradável é compreendida desta forma: quando o organismo fica em desequilíbrio por muito tempo deflagra a necessidade de ação através do desconforto. A tristeza, a dor, a infelicidade conclamam o organismo a criar um novo ajustamento mais satisfatório para uma situação frustrante. Mesmo que uma ação nova, transformadora esteja sendo evitada, esse sinal permanece presente.
Ao mesmo tempo em que impede o organismo de funcionar plenamente, também torna viável que uma modificação aconteça, pois mantém um direcionamento a ser seguido, não há esquecimento pleno.
A tentativa de extinguir
um sintoma depressivo através da medicação, como se estivesse
ocorrendo um mau funcionamento do corpo, tira do indivíduo o caminho
organísmico para encontrar a awareness e a satisfação inibida.
Em estados crônicos de insatisfação faz-se necessário
o tratamento com psicotrópicos de forma a atenuar os sintomas para que
estes se tornem toleráveis, e não para a sua exterminação.
A patologização do desconforto transforma em algo exterior ao
alcance do cliente uma busca para sua regulação, tira dele sua
responsabilidade na
formação do sintoma e na solução do mesmo, oferecendo
o que funciona somente como paliativo.
Referência bibliográfica
AMERICAN MEDICAL ASSOCIATION, Guia Essencial da Depressão. São Paulo: Aquariana, 2002.
CENTRO COLABORADOR DA OMS PARA A CLASSIFICAÇÃO DE DOENÇAS EM PORTUGUÊS, Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, Décima Revisão (CID 10). Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo/Organização Mundial de Saúde/Organização Pan-Americana de Saúde, 2008.
FLECK, M. P. et. al. Diretrizes da Associação Médica Brasileira para o tratamento da depressão. Rev. Bras. Psiquiatria [on line]. 2003, vol.25, pp. 114-122.
FRAZÃO, L.M. Pensamento Diagnóstico Processual: uma visão gestáltica do diagnóstico. Revista do II Encontro Goiano de Gestalt-terapia, n2, v.II, p. 27-31.
MULLER-GRANZOTTO, M.J; MULLER-GRANZOTTO R.L. Clínica dos ajustamentos psicóticos: uma proposta a partir da Gestalt-terapia. [on line] In Revista IGT na Rede Vol V 08, 2008.
PERLS, F. Abordagem Gestáltica
e Testemunha ocular da Terapia
. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
PERLS, F.; HEFFERLINE, R. GOODMAN, P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.
ROBINE, J. M. O self desdobrado: perspectiva de campo em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2006.
RANGE, L.M.; TYSON G.M. Depression: a comparison between gestalt and other views In The Gestalt Journal Vol IV 01. Nova York: The Gestalt Journal Press, Spring 1981, p. 57-64.
YONTEF, G. Processo, Diálogo e Awareness: ensaios em Gestalt-terapia São Paulo: Summus, 1998.