Temas-livre 1: Gestalt e questões da educação contemporânea.
1.2. O bullyingna escola contemporânea: uma análise do fenômeno
sob a perspectiva de campo e apoiada por outros construtos gestálticos
Eduardo de Sequeira Cremer
Resumo
Hoje o bullying é motivo de preocupação pelo aumento dos
casos graves que, não raro, terminam de forma trágica. Observo
a questão à luz da Gestalt-terapia enfocando o estilo de relação
que se estabelece nesses casos, tentando demonstrar que a escola é mais
um dos lugares contemporâneos desse modelo relacional.
Proposta
Tenho como objetivo na apresentação desse trabalho a exploração
de um tema bem atual no que concerne a realidade brasileira, o bullying nas
escolas.
Muitos estudantes que sofrem essa violência podem limitar suas possibilidades ou até mesmo causar sua desistência em se educar , em manter relacionamentos e, nos casos mais graves, em viver. Fante (2005) diz que bullying é uma forma de violência v elada, que ocorre por meio de comportamentos cruéis, intimidadores e repetitivos, prolongadamente contra uma mesma vítima.
Lopes Neto e Saavedra (2003) ainda completam que este ocorre sem motivação evidente e é adotado por um ou mais estudantes contra outro(s), causando dor e angústia. É executada dentro de uma relação desigual de poder , tornando possível a intimidação da vítima.
É importante notar que sempre há uma assimetria de poder entre agressor e vítima, o primeiro tem mais possibilidades de estar no mundo, tem uma boa autoestima, é mais forte, extrovertido, tem muitos amigos e é admirado. Já o segundo, encontra-se limitado no espaço escolar, com uma autoestima baixa, de forma geral é tímido, tem poucos amigos e vergonha de si mesmo. Outra característica importante é que a vítima de tal ato sofre repetidas vezes o assédio, de pessoas diferentes e não se acha em condições de responder ou se defender.
Não raro se acha
merecedor daquilo e acaba excluído das relações escolares.
Essas definições também acabam sendo importantes na medida
em que há uma confusão grande por parte de quem avalia e pode
intervir - como é o caso dos professores - entre o assédio moral
na escola e uma simples brincadeira. É preciso estar atento porque no
segundo caso não há sofrimento nem angústia em nenhuma
das partes envolvidas, já na existência de um comportamento no
estilo do bullying há muita dor presente. Portanto, o que nos interessa
é o estilo de relação que é desigual e que, por
causa disso, é agressiva.
O que acontece hoje é
que o alvo do assédio é excluído e tratado como objeto.
Essa posição na relação faz com que seu ocupante
não esteja em igualdade de possibilidades, é como se fosse um
objeto, passa por um processo de desumanização, por isso vai servir
para o autor das agressões para um interesse próprio, só
um lado se beneficia e o outro não é incluído na relação.
A primeira vista parece que o alvo é confirmado na relação
porque pelo menos é digno de uma agressão, mas o que acontece
na realidade é que o agredido não é alvo do ódio
do assediador, mas sim de um interesse de uso. Enquanto o agredido tem dificuldade
de manipular o meio para satisfazer suas necessidades, o agressor faz isso com
mais facilidade, usando inclusive seu alvo para sua satisfação,
ocasionando nesse estilo de relação um desequilíbrio na
fronteira de contato entre os dois, um é invadido e o outro é
o invasor.
Então, numa relação
dessas encontramos os seguintes personagens: o autor, o alvo e as testemunhas.
Essas três instâncias estão interligadas para que uma situação
de bullying ocorra. O autor de forma geral é impulsivo, agressivo, é
geralmente mais forte que seu alvo, quer dominar e controlar, humilhar e intimidar,
causando danos emocionais, físicos ou materiais ao outro. Através
desse comportamento obtém ganhos sociais e materiais. Lopes Neto e Saavedra
(2003) colocam que esse sujeito é forjado por influências subjetivas,
familiares, escolares e sociais, assim como os demais indivíduos envolvidos
nesse cenário. Lopes Neto (2005) define que o alvo é um aluno
exposto, de forma repetida e durante algum
tempo, às ações negativas perpetradas por um ou mais alunos.
Em geral não dispõe de recursos para reagir, é tímido,
inseguro, frágil, tem poucos amigos e não tem esperança
em sua vida. Tem baixa autoestima e, não raro, se acha merecedor de maus-tratos.
Por fim, temos as testemunhas, que durante a ação garante um dos
ganhos do autor, que é o reconhecimento social de seus pares. Essa massa
de pessoas não age de forma direta no bullying, mas também não
faz nada para evitá-lo ou denunciá-lo.
Ainda temos a classificação do bullying em direto e indireto. O primeiro ocorre no entre, ou seja, na relação que se estabelece num dado momento através de agressões físicas e verbais. O indireto trata-se da disseminação de histórias desagradáveis e vexaminosas, normalmente caluniosas, a respeito do alvo. Essa difamação, hoje em dia, tem o apoio da internet, que é uma ferramenta poderosa e rápida para tal objetivo, sendo identificado como cyberbullying.
Para poder compreender melhor o tema que será discutido nessa apresentação faz-se necessário a explicitação e descrição do cenário em que se engendra. Como esse trabalho tem como fundamentação a gestalt, também não faria sentido avaliar algum construto em figura destacado de seu fundo correlato. Avaliando a figura isolada, corremos o risco de analisar a questão ignorando sua relação com as características contemporâneas. Adotando uma postura que não conta com o fundo para compor a questão, podemos até mesmo ficar longe de uma solução possível para o problema, já que ficamos sem uma parte importante da análise, tornando difícil de avaliar como se construiu o bullying, foco desse trabalho.
Os fatores pós-modernos, classificação de Bauman (1999) para nossa realidade atual, influenciam as relações e principalmente como nossa sociedade desenvolve uma postura que tende a agressão, a violência e a exclusão. Nossa sociedade atual funciona com uma interação pouco saudável, dificultando a fluência entre formação e destruição de figuras e precisamos avaliar como a escola se insere nesse cenário. Rapidamente, então, temos como claras características de pós-modernidade a compressão tempo-espaço, a globalização, a privatização do meio público, o neoliberalismo, a objetificação do ser humano e a distância entre as pessoas, fragilizando os laços entre as mesmas. Essas características atravessam todo o tecido social tocando tudo que se encontra nele.
Para definir como as pessoas se relacionam nesse cenário, lançarei mão de uma teoria bem familiar e importante para a Gestalt-terapia, a Teoria de Campo. Essa formulação trata do modo de ser dos sujeitos em seu meio social e dos eventos psicológicos que são passíveis de observação, ocorrendo na fronteira de contato entre o organismo e o meio, que são partes de um todo. Esse par dialético se estabelece em conjunto e se influenciam mutuamente, impossibilitando sua separação e o estabelecimento da teoria de que uma parte é vítima da outra, numa situação de desequilíbrio organísmico.
A partir dessa perspectiva, podemos pensar a temática apresentada incluindo o ambiente nas reações do organismo e vice-versa, terminando por fazer uma análise de campo. Portanto, temos uma sociedade, nos moldes já descritos, e pessoas influenciadas por ela e constituindo a mesma. Nesse percurso percebemos que agressores e agredidos têm dificuldades de hierarquizar suas necessidades para satisfazê-las a contento, já que o primeiro repete um comportamento hegemônico em nossa sociedade, enquanto que o segundo sofre seus efeitos, mas também não consegue se desvencilhar desse estilo de interação. Os dois não encontram uma forma de contato que possa satisfazer as necessidades de ambos, impedindo que a relação seja saudável.
Acho que o entendimento dessa dinâmica é importante principalmente para entendermos o bullying em nossas escolas, porque me parece uma repetição dessa descrição entre os mais jovens, no ambiente de convivência da idade deles, a escola. Isso pode acontecer porque, como ressalta Robine (2006), nossas necessidades e desejos não se dão apartados do mundo, são influenciados pelo contexto. Temos um fundo de possibilidades e elegemos figuras que são mais pertinentes de acordo com o contexto, estas se destacam do meio de acordo com o princípio da dominância, que representa a tendência de uma tensão forte que prevalece no campo.
Quando as figuras que sobressaem
do fundo têm uma sucessão natural, significa que estamos aware
de nossas necessidades que são possíveis naquele momento. Se isso
não ocorre dessa maneira a figura cristaliza e o indivíduo começa
a repetir algum comportamento de forma automática. Algo parecido ocorre
com a forma como nosso meio está constituído, se temos um padrão
de funcionamento social fixado e repetido pela maioria, o sujeito pode facilmente
ser capturado e começar a da escolha que fez.
funcionar da mesma forma sem estar aware.
A cristalização de um modo de funcionamento social é explicada
por Robine (2006) como uma confluência patológica com o fundo,
se estabelece um par figura-fundo fixado. Com isso, concluí-se que quanto
mais aware estamos de nossa vivência, menos confluentes com o fundo estamos
e, de modo oposto, mais confluente. Pensando em termos de uma sociedade consumista,
superficial e violenta, podemos supor que uma vivência predominantemente
confluente patológica vai replicar tais valores por todo tecido social,
abrindo espaço para toda sorte de problemas relacionais.
A partir desse contexto percebemos que não existe um problema escolar isolado, como se fosse uma nova moda ou um novo vírus, mas somente um alinhamento aos mecanismos relacionais que essa sociedade possui. Sociedade essa que promove a exclusão do diferente, os “fora do padrão” não são confirmados em sua existência e são tratados como inferiores. E quando a diversidade não é acolhida, a desigualdade é legitimada (CHALITA, 2008, p. 128).
No ambiente escolar isso
tudo é traduzido dessa maneira: “Raramente se via uma atitude solidária
espontânea entre alunos. Acreditamos que o egoísmo, a falta de
habilidade para negociar a satisfação de seus desejos, a falta
de atividades interativas entre eles e de opções de lazer determinavam
toda essa rebeldia e toda essa agressividade que, não encontrando outra
via de expressão, eram deslocadas para o comportamento violento, manifestado
especialmente contra os mais frágeis.” (FANTE, 2005, p. 69)
Enfim, a meu ver, esse é o cenário em que as relações
contemporâneas se
engendram. A partir dessa contextualização fica mais claro o pertencimento
do fenômeno bullying a um todo maior de relações não
sendo responsabilidade somente do autor do ato. Este está inserido nesse
contexto e também sofre, de alguma forma, por participar dessa construção,
se comportando de maneira cristalizada nesse encaixe de relação.
O suporte das teorias e
práticas da Gestalt-terapia se transforma em fonte
de linhas de fuga para essa situação, propondo uma compreensão
desse
modelo de sociedade ao qual todos estamos sujeitos, trazendo com isso uma responsabilização
de todos com a questão e a possibilidade de escolher continuar a repeti-la
ou pensar em novas formas. A proposta da apresentação trata-se,
então, à luz da Teoria de Campo, sendo o contato
de compreender o fenômeno bullying com tal entendimento, por si só,
o disparador para outras formas de ser que possam começar a rodar a sociedade
no sentido contrário do que assistimos hoje, caminhando numa direção
mais solidária, que conte com homens, nas palavras de Perls, autosuficientes.
Referências Bibliográficas
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LOPES NETO, A.A. Bullying – comportamento agressivo entre estudantes. J. Pediatria (Rio J.) vol.81 n°.5 suppl. Porto Alegre: 2005.
LOPES NETO, A.A.; SAAVEDRA,L.H. Diga não para o Bullying – Programa de Redução do Comportamento Agressivo entre Estudantes. Rio de Janeiro: ABRAPIA, 2003.
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