Tema-Livre 07: Sede de afeto: reflexões a partir do atendimento a uma paciente psicótica
Izabela Guedes
RESUMO
A partir do relato clínico do atendimento a uma paciente psicótica, pretendo questionar não só de que forma o terapeuta se implica no crescimento das relações que estabelece com seus clientes, mas também promover algumas reflexões, tomando como base conceitos da Gestalt-terapia, quais sejam: contato, fronteiras de contato, psicodiagnóstico e fenomenologia.
Logo que me deparei com o tema “Possibilidades e impasses da Gestalt-terapia na humanização”, imediatamente fiquei inquieta com essa dúvida: de que forma, no meu dia a dia de trabalho, no encontro cotidiano com meus clientes e suas dores existenciais, lido com as dificuldades desse encontro, como por exemplo, a angústia da impotência, o meu reconhecimento na aflição do outro, a minha condição demasiadamente humana? Como posso me implicar no crescimento das relações que vivo como terapeuta? De que forma é possível contribuir para que cada indivíduo encontre sua maneira de ser livre? Transformar _formar novas feições_ é um grande desafio! Modificar-nos, expandir-nos, recriar-nos a cada instante, esse é um dos papéis que ocupo nesse lugar de psicoterapeuta: vislumbrar potencialidades que podem transformar pessoas, vidas. E assumir a responsabilidade de estar junto ao outro nesse processo de resgate de humanidade é uma tarefa ao mesmo tempo hercúlea e fascinante. É me dar conta do quanto me reúno com minha própria humanidade e acreditar, acima de tudo, na possibilidade de nos curarmos através da relação, da troca, pois é aí que nos reconhecemos como iguais: seres sedentos de afeto, de laços, de calor humano.
Diante de tantas interrogações e da absoluta certeza de que cada indivíduo possui talento criativo próprio para lidar com seus sofrimentos psíquicos mais profundos, escolhi apresentar este estudo a partir da minha experiência no atendimento a uma paciente psicótica, a qual vem sendo acompanhada por mim desde junho de 2007, encontrando-se em processo de psicoterapia individual. Considero importante contextualizar o caso sobre o qual me debrucei, antes de refletir sobre a teoria. A referida paciente trata-se de uma mulher L. de 43 anos atualmente, casada, mãe de 2 filhos _de 24 e 20 anos_ e avó de uma menininha de pouco mais de 2 anos. Possui pai e mãe vivos e 6 irmãos, afirmando se orgulhar do amor que todos têm uns pelos outros. Há histórico de doença mental na família de origem, sem diagnóstico e tratamento. L. chegou à terapia relatando sentimentos de profunda tristeza e pavor de morrer, assim como vários conflitos com o marido e filhos. Na primeira entrevista, não manteve contato visual algum e demonstrou desorientação espaço-temporal, além de contar crenças bizarras. Decididamente, parecia uma pessoa bem estranha!
A partir desta prática, pretendo abordar alguns conceitos apresentados pela Gestalt-terapia, relatando como tais embasamentos têm sido instrumentos aliados ao meu fazer terapêutico, fornecendo-me suporte técnico-emocional para lidar com a realidade muito peculiar da cliente em questão. Neste momento, pergunto: de que maneira o contato e suas fronteiras, assim como o psicodiagnóstico e a fenomenologia norteiam minha aproximação desse indivíduo que aparece rompido em seu relacionamento com o mundo e na relação consigo próprio, em estado de profunda solidão e isolamento?
Segundo Laing (1982), para se compreender o processo de enlouquecimento é preciso compreender o outro em seu contexto existencial. É importante perceber que a experiência de uma pessoa sobre si própria talvez seja muito diferente do conceito que eu tenho sobre a experiência dessa pessoa. Assim, é preciso se reorientar no esquema do outro, o que “é talento óbvio e pré-requisito indispensável no trabalho com os psicóticos.” (p.25) Quando nos esvaziamos de expectativas, sem esperar nada do psicótico, é neste não-lugar que algo acontece, é onde ele busca configurar-se na tentativa de resgatar algum senso de integridade. O psicótico não consegue ter um relacionamento espontâneo, natural, criativo, pois sendo o seu self empobrecido, sente apenas o vazio e a falta de valor da vida interior.
Estar em
contato com alguém exige reconhecer que há um outro que não
sou eu, o que requer separar-se para, só então, poder reunir-se
novamente. Isto parece não ser possível ao psicótico, pois
este permanece imerso no paraíso simbiótico, de onde não
saiu devido à falta de suporte externo. Assim, diante dessa impossibilidade
de se construir enquanto unidade, com dúvidas sobre sua autonomia, o
psicótico evita estabelecer contato e passa a “viver” fechado
dentro do seu mundo, o qual recheia com alucinações que servem
para substituir a experiência concreta. Exemplificando como isto acontece,
segue um breve relato trazido pela cliente em uma das sessões: um dia,
muito assustada com uma séria briga que seus filhos haviam tido, L. “viu”
uma fogueira onde uma cabeça queimava, sem conseguir identificar à
qual dos seus dois filhos pertencia. Ficou apavorada, julgando ser um sinal
de que um deles seria castigado em seu lugar, pois se considera uma pessoa suja
e cheia de pecados, afirmando em várias ocasiões, com absoluta
certeza, que caso aconteça algo com pessoas da sua família, será
por culpa única e exclusivamente sua. Alguns dias após este episódio,
enquanto tomava banho, L. pediu ao marido que ligasse o forno. Ele o fez, imaginando
que a esposa iria cozinhar algo, mas qual não foi seu susto quando, mais
tarde, encontrou-a abaixada no chão da cozinha, com a cabeça dentro
do forno. Tirou-a imediatamente de lá e perguntou o que era aquilo, ao
que ela respondeu que a temperatura quente era boa para esticar a pele e que
ela precisava deste tratamento em função de estar envelhecendo.
Ao examinarmos este episódio juntas, L. demonstrou surpresa ao olhar
para essas duas situações não como fatos isolados, mas
sim interconectados, reconhecendo ali um grande sentido quanto à sua
maneira de estar no mundo.
“Eu estou sozinho, mas ainda assim preciso encontrar você para viver.”
(POLSTER, 2001, p. 111). Esta frase sintetiza bem a idéia de que é
preciso estabelecer contato a fim de desenvolver inteiramente a nossa identidade.
É através do contato que o indivíduo se expressa ao mundo
e dele se alimenta. Sorrir, cheirar, tocar, ver, falar, receber... Tudo isso
nos possibilita sentir que estamos vivos. Logo, sem contato, o indivíduo
permanece como um ser morto, se esforçando para buscar seus próprios
meios para tentar manter a si mesmo com vida. Porém, restam apenas o
vazio, a pobreza e o desespero em se preservar das constantes ameaças
à sua precária existência. A ambigüidade das fronteiras,
no psicótico, se expressa através de vivências intercorporais
primárias e a totalidade da experiência é dividida em diversas
partes, como se cada experiência se ligasse por tênues fios, dando
a sensação de ser uma pessoa fragmentada, incompleta. E “é
apenas pela função de contato que a percepção de
nossas identidades pode se desenvolver plenamente.” (POLSTER, 2001, pág.
112)
Yontef (1998) afirma que “o diagnóstico ajuda a terapia humanística. Enquanto eu não consigo esclarecer as questões diagnósticas de um paciente, minha compreensão dele e de sua auto-experiência ficam reduzidas.” (p. 272) Nesse sentido, faz toda a diferença para a psicoterapia a maneira como avalio, primeiramente, esse universo existencial, já que para cada diagnóstico específico recomenda-se um tipo de intervenção clínica. Enquanto um neurótico precisa ser frustrado na sua manipulação neurótica, a fim de que possa criar uma nova experiência, é justamente essa frustração que o psicótico não suporta. Ainda de acordo com Gary M. Yontef (1998), “o processo diagnóstico é a busca de significado. Na teoria da Gestalt-terapia, significado é a relação entre figura e fundo.” (p. 283) Partindo dessa afirmativa, na relação com os psicóticos, o terapeuta se presta a esta condição de fundo _o que requer suportar o seu próprio vazio_ para oferecer ao paciente a possibilidade de se estruturar frente às experiências que julga como ameaçadoras.
Outro fundamento da Gestalt-terapia, a fenomenologia, enquanto método descritivo, permite-nos construir, gradativamente, o significado do material que é trazido para a sessão terapêutica, tomando todo o cuidado para não interferir com “a prioris”, sejam eles de caráter subjetivo ou teórico. Do psicoterapeuta é requerido manter seus valores, crenças e necessidades “entre parênteses”, suspendendo seu julgamento na compreensão daquilo que se apresenta. É simplesmente ater-se aos fenômenos como eles se mostram, sem interpretá-los e/ou julgá-los. É acompanhar o fluxo da energia que brota de um mundo completamente desconhecido e oferecer sua presença para fazer a viagem juntos, “desde que tal participação contemple a prioridade da relação que se estabelece: que esta possa servir ao indivíduo que procura a terapia, para que ele alcance, autonomamente, sua satisfação, seu reequilíbrio organísmico”. (RODRIGUES, 2004, p. 154)
Após uma cuidadosa avaliação psicológica e psiquiátrica, e medicada não mais como “portadora de síndrome de pânico” _diagnóstico inicial proferido pelo clínico-geral com quem ela se consultava_ L. ganhou qualidade no contato, adquirindo um suporte fundamental no caminho do reconhecimento e responsabilidade por sua “doença”. Atualmente, está fazendo aula de piano e participando de um grupo em unidade do CAPS, na cidade onde mora. E também está arriscando mais, aprendendo a se relacionar com o seu corpo de outra forma.
Na verdade, a experiência no trabalho com esta cliente tem me demonstrado é que os jargões psiquiátricos, que afirmam ser a psicose um transtorno mental caracterizado por desintegração da personalidade, conflito com a realidade, alucinações, ilusões, falha no ajuste social ou biológico, inadaptação, perda de contato com a realidade etc, servem para que se evite pensar a doença em termos de liberdade, escolha e responsabilidade. Acredito que a minha responsabilidade, como terapeuta, é dar o suporte necessário para que a cliente se perceba como aquela que escolhe qual papel ela quer assumir: a de doente ou a de potencialmente capaz de adquirir saúde e melhor qualidade de vida. O convite é lançado, mas apenas ela pode decidir de qual lado realmente deseja viver!
Os impasses precisam acontecer para nos lançar no mundo das inquietudes e para nos fazer querer deixar o “status quo”. Seja no lugar de terapeuta, seja no do paciente, os desafios, os empecilhos, as angústias servem como molas propulsoras para o crescimento. Estamos no mundo, onde tudo e todos se transformam a todo instante. O tempo nos pertence, assim como a liberdade de re-escolher _sempre_ o que e quem somos. Acreditar nesta possibilidade verdadeira de mudança e aceitar as diferenças a partir do que cada um escolhe para sua vida, me enche de esperança não só quanto à verdadeira possibilidade de crescimento individual, como também no sentido de uma sociedade mais generosa, tolerante e humanizada.
Referências Bibliográficas
YONTEF, Gary M. – Processo, Diálogo e Awareness. Ensaios em Gestalt Terapia – São Paulo: Summus, 1998
POLSTER, E. e M. – Gestalt Terapia Integrada – São Paulo: Summus, 2001
RODRIGUES, H. E. – Introdução à Gestalt Terapia – Petrópolis, RJ: Vozes, 2000
MULLER-GRANZOTTO, M.J. e R.L. – Fenomenologia e Gestalt Terapia – São Paulo: Summus, 2007
LAING, R.D. – O Eu Dividido – Petrópolis: Vozes, 1982
LAING,
R. D. – O Eu e os Outros – Petrópolis: Vozes, Lisboa: Centro
do Livro Brasileiro, 1986