Tema-Livre 01: Uma escola para todos: A Gestalt-terapia fertilizando o solo para contribuir com o arvorar da educação inclusiva


Clarissa de Arruda Nicolaiewsky


O mundo em que vivemos está repleto de exemplos. Exemplos de desrespeito, desonestidade, desafeto, desumanização. Para arrancar o mal pela raiz é preciso transformar a base: a educação. A instituição escolar é hoje concebida como espaço sócio-político, tendo o dever não apenas de garantir o acesso à cultura e ao conhecimento, mas, especialmente, de formar cidadãos.

Para que a escola forme cidadãos que possam transformar a sociedade é imprescindível que, primeiramente, ela própria se transforme: que não mais espere que todos os alunos aprendam da mesma forma e sejam sempre “bem-comportados”, que não mais espere que os alunos se interessem por conteúdos desinteressantes e sem sentido, que não mais acredite que o único motivo do fracasso escolar está na subnutrição, na família, no aluno. O fracasso escolar, tão presente nas estatísticas nacionais, não é simplesmente uma conseqüência de dificuldades intrínsecas dos alunos, resultando também de dificuldades do próprio sistema escolar, como metodologias inadequadas e currículos inflexíveis, que ignoram as diversidades socioeconômicas e culturais da população atendida (Glat & Blanco, 2007).

Tendo em vista a presença de tais crenças no ambiente escolar, faz-se necessária uma mudança urgente de paradigma (Mantoan, 2006). A transformação da escola atual em uma escola de qualidade, que ensine a todos, se fará possível na medida em que os profissionais da educação puderem rever suas crenças acerca da escola e de seu papel.

A humanização da instituição escolar se faz tão necessária que diversos documentos internacionais, diretrizes e leis foram criados e legitimados para que tal mudança se dê . Embora inicialmente houvesse a preocupação em garantir o direito à educação de pessoas com deficiência, atualmente percebe-se uma ampliação na conceituação, na qual os direitos se estendem àqueles com necessidades educacionais especiais, ou seja, a todos os alunos, já que qualquer pessoa em processo de aprendizagem pode, em algum momento, necessitar de recursos específicos para que seu aprendizado seja efetivo (Brasil, 2001).

Se imaginássemos a educação inclusiva como uma plantinha recém germinada, poderíamos comparar com uma estaca o papel de tais documentos, que teriam como função direcionar o crescimento dessa nova planta. Sabe-se, no entanto, que uma planta só crescerá forte e saudável se houver nutrientes suficientes no solo. De pouco adianta ela ser direcionada se não tiver força para crescer. Precisamos fertilizar o solo e, para tal feito, utilizaremos os pressupostos da Gestalt-terapia já que ricos em abundância e, portanto, bastante propícios para deixar nosso solo fértil, o que garantirá, assim, o arvorar dessa nova prática educacional.

Ademais, os preceitos relacionados à educação inclusiva, a saber: respeito às diferenças, viabilização de recursos pedagógicos apropriados, promoção do crescimento global dos educandos, desenvolvimento de um ambiente acolhedor e promotor de amizades (Carvalho, 2005; Mantoan, 2006; Strully & Strully, 1999), estão em concordância com a teoria e a prática da abordagem gestáltica.

As dificuldades encontradas na implantação da educação inclusiva podem ser divididas em três âmbitos: barreiras físicas, atitudinais e educacionais. As primeiras se referem à necessidade de promoção da acessibilidade, tanto do espaço físico, como dos sistemas de informação e de comunicação (Fernandes, Antunes & Glat, 2007). Como as barreiras físicas dependem da disponibilidade de recursos financeiros, embora com o uso da criatividade seja também possível diminuir tais dificuldades, focaremos apenas as barreiras atitudinais e educacionais, já que relacionadas com os profissionais que atuam no ambiente escolar.
Segundo Carvalho (2005), as barreiras atitudinais dizem respeito às crenças e preconceitos relativos às características biopsicossociais dos indivíduos que terminam por promover atitudes excludentes e, para que a inclusão aconteça, não basta a existência de decretos, pois a rede de significações construída ao longo dos anos por cada pessoa é muito complexa, sendo necessária uma série de ressignificações na percepção que se tem do outro para que o acolhimento a todas as crianças se efetive.

A Gestalt-terapia, tendo sido influenciada pelo Humanismo, entre outras vertentes filosóficas, estimula a prática de um novo olhar, que vê o outro como ele é e o aceita com todas as suas características (Aguiar, 2005; Yontef, 1998). A realização de um trabalho em grupo com a equipe escolar onde, a partir de vivências, cada um possa perceber seus sentimentos e crenças a respeito das crianças com deficiência ou com dificuldades de aprendizagem poderia facilitar a prática deste novo olhar. A aceitação destes sentimentos é o primeiro passo para que os mesmos possam ser transformados. Além disso, o olhar gestáltico atenta principalmente às capacidades de cada indivíduo. Essa crença positiva no homem, que é repleto de potencialidades (Ribeiro, 1999), nos impulsiona a apostar nas possibilidades de crescimento de cada pessoa, elemento fundamental para uma educação de qualidade. Curtas e filmes de longa-metragem que mostram as infinitas capacidades de indivíduos com deficiências podem ser utilizados para incentivar reflexões e ressignificações na equipe escolar.

Ademais, a família é uma parceira vital no processo de inclusão. A relação inicial da criança com cada responsável é fundamental para a construção de seu autoconceito e, portanto, deveria ser acolhedora e nutritiva. Ainda assim, muitos pais chegam à escola pouco informados, tendo desenvolvido uma postura de descrença com relação às possibilidades de seu filho. O desenvolvimento de trabalhos em grupo com familiares, tendo como objetivo a tomada de consciência de seus sentimentos acerca de seus filhos através de vivências embasadas pela Gestalt-terapia tem se mostrado uma ferramenta importante para a promoção de relações onde as potencialidades sejam observadas e desenvolvidas (Aguiar, 2007).

Outro ponto importante da abordagem gestáltica é a percepção da singularidade do ser humano, o que minimiza a importância dada a rótulos e diagnósticos e facilita a atenção integral ao aluno para a promoção de seu crescimento global. Lançar mão de atividades com sons, imagens, movimentos, e que despertem sentimentos e promovam a reflexão contribui para o desenvolvimento global dos educandos e permite a inclusão de crianças com diferentes deficiências. Estimular diversas funções de contato durante o processo de ensino-aprendizagem pode facilitar, ainda, uma flexibilização da fronteira de contato. Segundo Benevento (2002), a dificuldade de aprendizagem interrompe o funcionamento saudável do organismo e contribui para a formação de mecanismos de evitação de contato. É freqüente uma criança com dificuldade de aprendizagem ir restringindo seu contato com o meio, evitando ler para não evidenciar sua dificuldade e deixando de perceber pistas do meio que permitiriam a resolução daquela situação didática proposta. Ocorre, assim, um desencontro entre as habilidades da criança e a demanda da tarefa, sendo que o aprendiz comumente apresenta dificuldades em acessar seu próprio conhecimento espontaneamente e coordenar suas habilidades de forma efetiva (Benevento, 2002). Seria papel do educador, portanto, facilitar a modificação das escolhas estratégicas do aprendiz para a resolução da tarefa e, conseqüentemente, para a construção daquele determinado conhecimento.

Para a eliminação destas barreiras educacionais, relativas às dificuldades do âmbito pedagógico, é necessário, primeiramente, compreender melhor como se dão os processos de aprendizagem (Carvalho, 1999). Também é fundamental respeitar o ritmo de cada criança, caminhando ao lado dela ao propor atividades onde, com a mediação do educador e/ou dos recursos escolhidos, seja possível ao aprendiz realizar aquela tarefa com êxito. Além disso, a motivação é peça-chave para que o aprendizado aconteça. Uma educação de qualidade pressupõe a criação de ambientes prazerosos e respeitosos, onde se lançam mão de propostas pedagógicas que desafiem e façam sentido para os alunos, para que a resolução de suas situações-problema proporcione a construção de conhecimento e favoreça o auto-conhecimento (Carvalho, 1999). O interesse e a necessidade (no sentido daquilo que é importante naquele momento, daquilo que o sujeito quer fazer naquela situação) impulsionam para o aprendizado, já que é através deles que o aluno direciona sua percepção para o objeto de conhecimento (Dusi, Neves & Antony, 2006). Intervenções que façam uso da inversão de papéis e da dramatização, ao possibilitarem ao educador se colocar no lugar dos educandos, percebendo assim, suas dificuldades, assim como proporcionarem a reflexão de sua própria prática, podem ser um meio eficaz para a melhoria das respostas educativas na escola.

Vale ressaltar que, somente através de uma relação onde haja aceitação genuína, é possível estabelecer um processo de aprendizagem realmente significativo (Elias, 2000; Rogers, 1961). Concluindo, a abordagem gestáltica oferece as ferramentas necessárias para que, arado o terreno e adubado o solo, a inclusão venha a ser uma árvore frondosa, proporcionando sombra fresca e frutos saborosos a todos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AGUIAR, L. (2005). Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. São Paulo: Livro pleno.

BENEVENTO, J. (2002). Confluent/Constructivist treatment of children with learning/behavior disorders. In: G.

HEELER & M. McCONVILLE (orgs). The heart of development: Gestalt approaches to working with children, adolescents and their worlds. Vol. 1: Childhood. Gestalt Press.

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CARVALHO, R. E. (2005). Educação inclusiva com os pingos nos “is”. 3ª. Ed. Porto Alegre: Mediação.

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UNESCO (1990). Declaração Mundial de Educação para Todos e Plano de Ação para Satisfazer as Necessidades Básicas de Aprendizagem.

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